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Truth Social, plataforma de mídia social criada pela Trump Media & Technology Group (TMTG) | Foto: Shutterstock
Edição 257

Uma afronta à Constituição

A ilusão de Alexandre de Moraes foi achar que o mundo inteiro seria a casa da mãe joana jurídica na qual ele transformou o Brasil

Flávio Gordon
-

“Sabemos muito bem, na América, que não se pode obter
um mandato democrático censurando opositores
ou colocando-os na prisão, seja o líder da oposição,
uma humilde cristã rezando em sua própria casa,
seja um jornalista tentando reportar as notícias.”
(J.D. Vance, vice-presidente dos EUA)

No livro Sovereignty or Submission: Will Americans Rule Themselves or Be Ruled by Others?, o historiador John Fonte destaca o posicionamento americano tradicional no que se refere à adesão a tratados internacionais. Segundo ele:

“Durante a maior parte do último meio século, o Departamento de Estado dos Estados Unidos tem rotineiramente qualificado a ratificação americana de tratados internacionais com ressalvas de que os EUA não validarão qualquer disposição que viole a Constituição dos EUA. Se houver um ponto de conflito entre um tratado internacional e a Constituição dos EUA, a Constituição prevalecerá sobre a convenção internacional.”

Livro Sovereignty or Submission: Will Americans Rule Themselves or Be Ruled by Others?, do historiador John Fonte | Foto: Divulgação

Fonte descreve aí a essência da concepção americana de soberania nacional. Embora tenha sido largamente abandonada nas últimas administrações do Partido Democrata, a de Barack Obama (o primeiro presidente “pós-americano” dos EUA) e a de Joe Biden, ela está sendo retomada com toda força neste segundo mandato de Donald Trump.

Dessa perspectiva, a soberania nacional não implica qualquer tipo de isolamento dos assuntos internacionais, nem a renúncia a um papel ativo na promoção da cooperação internacional ou na participação em acordos internacionais vinculantes. Ela também não se traduz, necessariamente, na oposição a organizações internacionais como as Nações Unidas. Seu significado consiste na afirmação de que os Estados Unidos não abrirão mão do direito de participar dos assuntos internacionais como um Estado-nação soberano, cujo poder de se autogovernar deve permanecer intacto. Nesse sentido, os poderes do governo americano devem ser limitados não pelos desejos de outras nações, mas apenas por sua própria Constituição, vista pelo povo americano como a lei fundamental pela qual deve ser julgada a legitimidade de todas as outras leis, tratados e acordos.

A ideia de “Nós, o Povo” — as célebres palavras que inauguram a Constituição americana — é fundamental nesse conceito de soberania. Tal como idealizada pelos Pais Fundadores, a soberania reside primeiramente nos cidadãos de uma nação, “dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis”, e não no seu governo. Eis o que John Fonte chama de “soberania Filadélfia” ou “soberania democrática”, cujo significado é a soberania de um povo livre e autogovernado. Eis o cerne do modelo de governo idealizado e desenvolvido pelos fundadores da Constituição dos EUA durante a Convenção de Filadélfia, em 1787, segundo o qual, diz Fonte, “são os cidadãos que detêm a autoridade política suprema”.

Em suma: a Constituição é a lei suprema à qual o povo americano está sujeito. Qualquer coisa que entre em conflito com a Constituição não pode ser vinculante nem para o povo americano nem para o governo americano, que existe para servi-lo.

Soberania da Constituição nacional

Essa concepção bate de frente com a ideia de “governança global”, que tem na União Europeia o seu primeiro e mais prototípico experimento, e cuja proposta de nova ordem mundial implica a superação mesma do conceito de soberania nacional. Do ponto de vista do Direito, a ideia de “governança global” implica a necessidade de uma lei internacional que se imponha às constituições nacionais. Citando John Fonte mais uma vez, “os globalistas consideram a ‘nova’ lei internacional, que encarna os últimos (e mais progressistas) conceitos de direitos humanos globais e formais universais, como sendo superiores a toda lei nacional ou constituição de qualquer nação democrática”.

Daí que, por exemplo, Estados Unidos e União Europeia tenham sempre se estranhado em relação à forma e à natureza de uma Corte transnacional como o Tribunal Penal Internacional (TPI). Para muitos soberanistas americanos, a função real do TPI não é a de levar criminosos à Justiça, mas emprestar dentes à governança global. Concede poderes de execução a um organismo internacional que não presta contas a nenhum eleitorado ou governo eleito — poderes que, em muitos aspectos, ultrapassam os de qualquer tribunal nacional devidamente constituído em um país democrático. De fato, pode-se compreender o TPI como um corolário lógico da ideia de jurisdição universal, que, no texto “The Dangerous Myth of Universal Jurisdiction” (um capítulo do livro A Country I Do Not Recognize), os juristas Lee Casey e David Rivkin definem como a proposta de que “qualquer Estado possa definir e punir certos crimes ‘internacionais’, independentemente de onde a conduta relevante tenha ocorrido ou da nacionalidade dos perpetradores ou das vítimas”. Ou, nas palavras de Thomas Sowell, como o próximo passo na busca pela “justiça cósmica”.

Estados Unidos e União Europeia sempre se estranham em relação à forma e à natureza de uma Corte transnacional como o Tribunal Penal Internacional (TPI) | Foto: Shutterstock

Pois esse confronto entre duas concepções do Direito — uma que afirma a soberania da Constituição nacional, outra que visa a uma jurisdição universal — está por trás da ação movida pelas redes sociais Rumble e Truth Social (de propriedade de Donald Trump) contra Alexandre de Moraes. Em entrevista recente para a CNN Brasil, por exemplo, o advogado americano Martin De Luca, que representa o Rumble e a Trump Media & Technology Group Corp. (TMTG) contra Moraes, deixou claro que o grande problema do réu é não saber os seus limites jurisdicionais e tentar afrontar os direitos garantidos pela Constituição americana — a começar pelo direito à liberdade de expressão. Em poucas palavras, a ilusão de Moraes foi achar que o mundo inteiro seria a casa da mãe joana jurídica na qual ele transformou o Brasil.

Ataque direto aos EUA

Assim está dito expressamente no texto da ação:

“O Rumble e a TMTG ingressam com esta ação para impedir as tentativas ultra vires do ministro Moraes de censurar ilegalmente empresas americanas que operam principalmente em solo americano. Atuando sob o pretexto do Supremo Tribunal Federal da República Federativa do Brasil (‘STF’), o ministro Moraes emitiu ordens abrangentes para suspender várias contas sediadas nos Estados Unidos (…) As Ordens de Censura, conforme emitidas, censuram o discurso político legítimo nos Estados Unidos, minando proteções constitucionais fundamentais consagradas na Primeira Emenda, entrando em conflito com o Communications Decency Act e desafiando princípios básicos de cortesia internacional. Além disso, as Ordens de Censura exigem que o Rumble, uma empresa sediada na Flórida, sem funcionários ou ativos no Brasil, designe um representante legal no Brasil exclusivamente para aceitar a notificação das Ordens de Censura e submeter-se à autoridade do ministro Moraes. O Rumble e a TMTG buscam conjuntamente uma decisão judicial que declare as Ordens de Censura do ministro Moraes inexequíveis nos Estados Unidos. Permitir que o ministro Moraes silencie um usuário vocal em uma plataforma digital americana colocaria em risco o compromisso fundamental do país com o debate aberto e vigoroso. Nem determinações extraterritoriais, nem excessos judiciais vindos do exterior podem se sobrepor às liberdades protegidas pela Constituição e pelas leis dos Estados Unidos.”

Depois de detalhar os diversos problemas de jurisdição e as tentativas de Moraes de burlar os mecanismos institucionais para fazer valer uma ordem judicial proveniente do estrangeiro nos EUA, os advogados recorrem significativamente a uma ordem executiva recentemente promulgada por Donald Trump, cujo alvo foi justamente o TPI, que teria violado a soberania jurisdicional americana. Segundo os advogados:

“A oposição histórica dos Estados Unidos ao ativismo judicial estrangeiro é ainda mais reforçada pela Ordem Executiva nº 14.203, emitida em 6 de fevereiro de 2025. Essa ordem ressalta o compromisso inequívoco do governo dos EUA em proteger seus cidadãos, entidades e aliados contra ações judiciais estrangeiras ilegítimas. Direcionada especificamente ao Tribunal Penal Internacional (‘TPI’), a OE nº 14.203 condena as tentativas do TPI de exercer jurisdição sobre cidadãos dos EUA ou de países aliados sem o consentimento dos Estados Unidos, classificando tais ações como um ataque direto à soberania e à segurança nacional dos EUA. A OE nº 14.203 estabelece um marco de política que rejeita tentativas judiciais estrangeiras de impor seus padrões legais de forma extraterritorial — especialmente quando esses padrões entram em conflito com as proteções constitucionais dos EUA e com normas jurídicas estabelecidas.”

Rumble, plataforma de compartilhamento de vídeos | Foto: Shutterstock

‘As táticas coercitivas do ministro Moraes’

Concluem:

“Ao contornar o MLAT [Mutual Legal Assistance Treaty], a Convenção da Haia sobre Citação e Notificação e o processo de cartas rogatórias, o ministro Moraes deliberadamente ignorou os mecanismos estabelecidos de cooperação jurídica internacional. Esses instrumentos existem para equilibrar os interesses legítimos dos Estados soberanos, ao mesmo tempo que protegem contra a imposição de normas jurídicas estrangeiras que conflitam com as leis nacionais. As ações do ministro Moraes rompem esse equilíbrio, estendendo unilateral e ilegalmente a autoridade judicial brasileira para os Estados Unidos, sem o consentimento ou a supervisão das autoridades americanas. Tal conduta não apenas desrespeita a soberania dos Estados Unidos, mas também estabelece um precedente perigoso, minando a confiança nos processos legais projetados para facilitar a cooperação internacional de maneira legítima e respeitosa. As táticas coercitivas do ministro Moraes —incluindo forçar o Rumble a nomear advogados brasileiros sob ameaça de fechamento e da imposição de multas substanciais — agravam ainda mais a violação desses mecanismos. Suas ações revelam um esforço calculado para fabricar jurisdição e impor a legislação brasileira de forma extraterritorial, em clara violação dos princípios de comity e respeito mútuo que fundamentam o direito internacional. A emissão das Ordens de Censura pelo ministro Moraes está muito além do escopo de sua autoridade legítima e legal como ministro do STF (…) Os paralelos entre as ações do Tribunal Penal Internacional (TPI), condenadas na OE nº 14.203, e a conduta do ministro Moraes são evidentes. Ambos envolvem atores judiciais estrangeiros que tentam exercer jurisdição extraterritorial sobre indivíduos e entidades além de seu alcance legítimo ou sem o consentimento dos EUA. Assim como a OE nº 14.203 descreve as investigações e mandados de prisão do TPI contra cidadãos americanos como ilegítimos e uma ameaça à soberania, as Ordens de Censura do ministro Moraes buscam impor leis de censura brasileiras a empresas sediadas nos EUA, violando a liberdade de expressão protegida constitucionalmente e ultrapassando os limites legítimos da autoridade judicial (…) Em resumo, Rumble e TMTG mantêm-se firmes na defesa dos direitos à liberdade de expressão nos Estados Unidos contra a censura imposta por um Judiciário estrangeiro. O ministro Moraes não pode ditar os limites do discurso legal dentro dos Estados Unidos. Somente a lei americana — fundamentada na Primeira Emenda — deve regular e governar essas empresas sediadas nos EUA e suas operações em solo americano.”

Até aqui, dadas as circunstâncias políticas no Brasil, Moraes conseguiu violar impunemente as leis nacionais (lembrando que, posto que de modo não tão contundente como a americana, também a Constituição brasileira proíbe a censura prévia). Mas agora ele esbarrou com uma fronteira bem resguardada, tanto pela cultura política quanto pela história da nação cuja soberania legal ele tentou violar. Podemos antever capítulos interessantes no futuro dessa batalha entre soberanistas e globalistas jurídicos.

Moraes conseguiu violar impunemente as leis nacionais | Foto: Antonio Augusto/STF

Leia também “O racismo por outros meios”

1 comentário
  1. gilson roberto cardoso de oliveira
    gilson roberto cardoso de oliveira

    Não lembro qual dos “supremos” que disse durante a pandemia que entre a constituição brasileira e uma RECOMENDAÇÃO da OMS ficaria com a ultima.

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