A partir da semana que vem, o Supremo Tribunal Federal (STF) começará o julgamento de um dos casos mais emblemáticos do 8 de janeiro: o de Débora dos Santos. A cabeleireira de 39 anos ficou conhecida por escrever, com batom, a frase “perdeu, mané” na estátua da Justiça. Ela vai completar dois anos de prisão preventiva, tendo ficado enjaulada por metade desse período sem denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR). Débora foi privada também do regime domiciliar, benefício que pleiteava para cuidar dos dois filhos menores. Se condenada, pode pegar até 17 anos de cadeia. A mão pesada que caiu sobre Débora não poupou sequer o autista Jean da Silva, de 28 anos, também envolvido no protesto. Embora não tenha sido sentenciado, o catador de material reciclável de Juara (MT) passou seis meses na Papuda e só saiu de trás das grades com uma tornozeleira eletrônica. Ele conseguiu a absolvição há alguns dias, graças a uma reportagem de Oeste que chamou a atenção do ministro Alexandre de Moraes para um parecer da PGR favorável à soltura do jovem, encaminhado ainda em fevereiro de 2024, mas que estava parado no STF.
O martírio de Débora e Silva se estende a incontáveis inocentes, entre eles moradores de rua, gente doente e idosos sexagenários, cujas vidas acabaram suspensas há mais de dois anos. Nesse período, uma dessas vidas acabou ceifada pela tirania do STF, a do empresário Cleriston da Cunha, o Clezão, que virou símbolo do protesto. Apesar dos incansáveis apelos da defesa, ele morreu na cadeia em decorrência de um mal súbito (leia o artigo de Ana Paula Henkel). No tribunal, os julgamentos continuam como se nada tivesse acontecido, e sem qualquer prazo para acabar.

Ponta do iceberg
Esses casos mais notórios do 8 de janeiro são apenas a ponta do iceberg. As arbitrariedades continuam ocorrendo em uma série de processos não tão conhecidos, que afetam os réus e suas famílias. O pesadelo permanece mesmo depois do trânsito em julgado. É o caso de Rodrigo Moro Ramalho, de 36 anos, que viajou a Brasília na expectativa de um ato pacífico. Acabou condenado a passar os próximos 14 anos de sua vida no cárcere. Para evitar a pena injusta decretada em abril de 2024, decidiu se mudar para uma cidade da Argentina. Ramalho deixou para trás a mulher e dois filhos pequenos. Tanto a esposa quanto as crianças têm ossos de vidro, uma doença que impossibilita a pessoa de realizar atividades simples. Ao superar algumas dificuldades na vida nova, Ramalho começou a ir à igreja e a fazer alguns bicos. O recomeço foi bruscamente interrompido pela prisão, em novembro passado, quando tentou renovar a estadia temporária no país. Ramalho não sabia que a Justiça argentina havia decretado a prisão dele e a de outras 60 pessoas, em virtude de um pedido do governo brasileiro, que quer a extradição do grupo.

Atualmente na penitenciária Ezeiza Penal Colony, na Província de Buenos Aires, Ramalho está passando por sérios problemas de saúde. Segundo a mãe dele, o filho rompeu os ligamentos do joelho há duas semanas. Embora tenha recebido atendimento médico, as dores continuam a ponto de os parentes suspeitarem da necessidade de cirurgia. As poucas notícias relacionadas a Ramalho são transmitidas por um advogado, que cuida do caso sem cobrar nada. Em dificuldades financeiras desde a prisão, ele não tem como pagar a própria defesa, tampouco ajudar a família como fazia no passado, quando era garçom e motorista de aplicativo. Sua mulher também não consegue acessar as contas bancárias do marido, por haver um bloqueio judicial de bens determinado por Moraes em 2024.
A situação de Juliana de Barros, de 34 anos, é um pouco mais dramática. Ela teve de encarar a cadeia antes mesmo do trânsito em julgado. Apesar da condenação a 17 anos de prisão, determinada pelo STF em 16 de dezembro de 2024, a mulher ainda poderia recorrer em liberdade. A Corte nem sequer apreciou os embargos de declaração impetrados em 20 de janeiro deste ano. “O término do julgamento do mérito da presente ação penal e o fundado receio de fuga da ré, como vem ocorrendo reiteradamente em situações análogas nas condenações referentes ao dia 8/1/2023 (…), autorizam a prisão preventiva para garantia efetiva da aplicação da lei penal e da decisão condenatória deste STF”, informou trecho do mandado de prisão. A advogada de Juliana, Valquíria Durães, afirmou que a dona de casa vinha seguindo corretamente as medidas restritivas. Hoje, ela se encontra em uma cadeia em Luziânia (GO).
Casada, Juliana, tem três filhos menores. A mais nova, de 7 anos, depende da mãe, por ter problemas cardiovasculares. O outro filho, de 9, tem complicações respiratórias. O filho mais velho, de 17 anos, apresenta quadro de depressão, agravado pela prisão da mãe e pelo suicídio recente do pai. “Juliana se dedica integralmente ao lar, exercendo com zelo e responsabilidade suas funções”, contou a advogada. “Cristã, orienta sua vida pelos princípios da fé, pautando suas ações na honestidade, respeito e solidariedade. É uma mulher ética que valoriza sua família.” Assim como Ramalho, a dona de casa esperava uma manifestação sem qualquer tipo de violência ou vandalismo.

Tampouco foram poupados da ira do STF os presos nos acampamentos montados nas cercanias do Quartel-General (QG) do Exército. Em setembro do ano passado, Elynne Santos, de 51 anos, teve seu Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) cancelado em razão de a PGR apresentar “novas provas” ao caso. A PGR disse que a Polícia Federal (PF) encontrou 15 vídeos na galeria do celular de Elynne, mas apenas quatro, de conteúdo semelhante, foram descritos no parecer. Um dos conteúdos foi gravado nas proximidades da entrada do Congresso Nacional. Para a PGR, o material é evidência da participação da mulher nos supostos atos antidemocráticos. A defesa de Elynne contestou a decisão ao alegar que o laudo pericial da PF, citado pela PGR, já teria sido analisado antes da formalização do acordo. Mesmo assim, Moraes invalidou a negociação que havia sido homologada por ele.
O tormento é parecido com o do microempresário Marcos Moreira, de 41 anos, morador de Serra (ES). Também detido no QG, ele firmou um ANPP em novembro de 2024. Até agora, porém, a Justiça estadual não o intimou para dar início ao cumprimento das obrigações. Embora esteja sem tornozeleira, ele não pode acessar as redes sociais, necessárias para seu ofício de instalador de cortinas, o que prejudica as finanças. O homem usava a internet para divulgar seu trabalho. A advogada dele, Maria Margarida, relatou que Moreira passou a ter problemas psicológicos desde a prisão. No cárcere, recebeu ameaças de morte. Moreira também se dirigiu a Brasília para se manifestar contra o governo. Ele chegou à capital federal na noite do dia 8, quando tudo já estava quebrado, e acabou sendo levado pelas autoridades na manhã do dia seguinte, no QG.

Anistia já
O STF encerrou fevereiro com 480 condenados pelo 8 de janeiro a até 17 anos de cadeia. Até o momento, os ministros não indicaram qualquer tipo de recuo nos julgamentos. Interpelado a respeito de um perdão redutor de pena aos manifestantes, o decano do STF, Gilmar Mendes, asseverou que “nem essa hipótese deve ser considerada ou discutida”. Por isso, as manifestações marcadas para o dia 16 de março precisam demonstrar que já passou da hora a aprovação, pelo Congresso Nacional, de uma anistia ampla, geral e irrestrita aos envolvidos no ato.
A severidade do STF fez o Brasil regressar ao status de um país com presos e exilados políticos. A normalização e o resgate da democracia começam com a libertação das centenas de pessoas que, dia após dia, são atormentadas pelo chicote implacável do Poder Judiciário.
Leia também “A farsa do golpe”
Me dói o coração cada vez que penso nesses inocentes tendo que passar pela tortura do STF. Só uma coisa me consola, Deus tudo vê.
Mais um brilhante artigo de Cristyan Costa ,tem feito um trabalho incessante e primoroso para individualizar as histórias reais de presos do oito de janeiro .Depois de mais de dois anos,suas vidas continuam sendo destruídas por uma corte de justiça que jogou as leis no lixo e desrespeita nossa Constituição. Todos os ministros são coniventes com esses abusos e atrocidades,não salva um sequer.
Obrigado pelo prestígio de sua leitura, Teresa. Abração