Muito mais do que abrir uma janela de oportunidade, o plano do presidente Donald Trump para trazer a paz para o Oriente Médio botou a casa inteira abaixo. O plano inclui a transferência da população de Gaza (ou da maior parte dela) para outro país. Por um lado, a proposta é inusitada a ponto de parecer apenas uma provocação. Por outro força os envolvidos a pensar a partir do zero em uma solução que efetivamente ponha fim no sofrido conflito entre os israelenses e os palestinos de Gaza.
É preciso esclarecer aqui quem são os “palestinos”, uma vez que a Palestina nunca existiu como um Estado soberano independente. A região foi denominada com esse nome no século 1º pelo Império Romano, seu então governante. Depois de “trocar de mãos” várias vezes, a área permaneceu sob o Mandato Britânico de 1917 a 1947, habitada majoritariamente por dois povos: judeus e árabes, todos então denominados “palestinos”.
Para encerrar os crescentes conflitos entre os dois povos, a ONU votou, em 1947, a partilha do território, a qual criaria dois Estados, lado a lado: um para os judeus e outro para os árabes. Os judeus aceitaram a proposta, enquanto os líderes árabes da época a recusaram. Essa foi a razão pela qual apenas uma nação foi de fato criada em 1948: Israel.

Historicamente, todos os muçulmanos da região sempre se consideraram e foram considerados parte da grande nação árabe, compartilhando laços culturais, linguísticos e religiosos com os países vizinhos, como Egito, Síria e Jordânia. Essa identidade compartilhada, no entanto, não interessava à Liga dos Países Árabes, que fundou, em 1964, a Organização pela Libertação da Palestina (OLP).
Em 1967 aconteceu a Guerra dos Seis Dias, na qual os países árabes vizinhos atacaram conjuntamente Israel – e foram derrotados. Logo depois a OLP abriu um escritório dentro do campo de refugiados. Segundo Einat Wilf, coautora do livro A Guerra do Retorno, a entidade garantiu que, ali, “os palestinos desenvolveram uma consciência coletiva na qual eles se viam como um grupo étnico perseguido, tendo sofrido a maior calamidade da história da humanidade. Na escola, por exemplo, cantavam músicas sobre o retorno à Palestina”. A OLP acabou sendo legitimada em 1974 pela ONU ao receber status de nação observadora. Mais tarde, em 1993, como parte dos Acordos de Oslo, Israel reconheceu a entidade como legítima representante do povo palestino, em troca do reconhecimento do Estado de Israel pela liderança palestina.
Ideias fora da caixa
Donald Trump é um dos poucos líderes mundiais que compreenderam que o conflito entre Israel e Gaza não é motivado por questões territoriais, e sim pela ideologia fundamentalista islâmica, que não admite a existência de uma nação judaica soberana no Oriente Médio.
A mídia interpretou a declaração de Trump como um ultimato para a transferência forçada dos palestinos, o que ajudou a provocar um pânico generalizado entre estadistas, ativistas e ONGs de direitos humanos. Mas suas palavras foram claras: ele propõe que seja criado um programa por meio do qual o povo de Gaza sinta-se estimulado a deixar voluntariamente o território destruído por quase 20 anos de governo tirânico do Hamas para viver em um novo local. No qual possa, como ele disse, “viver em paz, para variar”.

Àqueles que se dizem ultrajados pela ideia de os palestinos abandonarem Gaza sob o pretexto de sua ligação histórica com a terra, Hillel Neuer, diretor da ONG UN Watch, fez uma interessante provocação em suas mídias sociais: “Se o 1,6 milhão de palestinos em Gaza são refugiados, então por que é errado que outros países os recebam? Se você diz que isso os desenraizaria de suas casas e terras em Gaza, então por que eles são chamados hoje de refugiados?”.
O plano de Trump
Em 4 de fevereiro, ao citar publicamente o plano da evacuação de Gaza pela primeira vez, Donald Trump sugeriu que Jordânia e Egito — países que recebem vultosa ajuda financeira dos Estados Unidos — absorvessem sua população. Os dois países rejeitaram a ideia de imediato.
Outros países estão sendo sondados para receber palestinos em troca de benefícios econômicos. De acordo com informações não oficiais, os Estados Unidos e outros parceiros estariam dispostos a oferecer pacotes de ajuda de aproximadamente US$ 14 bilhões para a absorção de 500 mil residentes de Gaza. Dentre os países especulados estão Marrocos, Indonésia e territórios da Somália que buscam financiamento e reconhecimento internacional.
Na realidade, Trump se baseou em dados concretos. De acordo com uma pesquisa realizada pelo Palestinian Center for Policy and Survey Research em setembro de 2023 (ou seja, antes do início da atual guerra), 44% dos jovens entre 18 e 29 anos desejam abandonar Gaza, e 31% da população geral manifestou a mesma aspiração. Os principais motivos citados estão relacionados a aspectos econômicos, políticos, educacionais e à corrupção.

Para que o plano seja implementado, será necessário consenso entre os envolvidos, planejamento, criação de oportunidades de trabalho e supervisão internacional para garantir os direitos dos emigrantes. Aos EUA caberia negociar com os palestinos e oferecer uma solução justa. Israel teria papel secundário, permitindo a saída dos palestinos de Gaza.
O lado de Israel
O primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu declarou estar comprometido com o plano de Trump que vai, segundo suas palavras, “criar uma Gaza diferente”. Nas últimas semanas, o ministro da Defesa, Israel Katz, anunciou a criação de uma comissão formada por representantes de diferentes ministérios e órgãos de Defesa em Israel que será responsável por organizar a saída voluntária de palestinos da Faixa de Gaza. O plano é apoiado por 80% dos israelenses, segundo a pesquisa do Israel Index of the Jewish People Policy Institute realizada em fevereiro, muito embora 30% dos entrevistados acreditem que ele seja inviável.

Segundo Reem Cohen, ex-oficial da Inteligência israelense e atual coordenador do Programa Israelo-Palestino do Instituto de Estudos de Segurança para Israel, “esse plano representa reduzir a pressão demográfica e de segurança na fronteira sul de Israel. Há outro aspecto importante: o fato de que, finalmente, o problema de Gaza poderá ser desvinculado de Israel e passar a ser visto como um problema do mundo, com a necessidade de envolvimento internacional”.
No entanto, boa parte do planeta não está enxergando assim — pelo menos por enquanto. Com uma agilidade inédita, 22 países membros da Liga Árabe se reuniram no Cairo, tendo como convidado o quase nonagenário Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestina, para formular um plano alternativo de reconstrução de Gaza. O projeto prevê cinco anos de trabalho e um orçamento de US$ 53 bilhões, cuja origem não foi especificada. As ideias foram condensadas em um documento de 112 páginas produzido pelos egípcios com imagens geradas por IA de casas, jardins e centros comunitários, um porto, um hub tecnológico, hotéis na beira da praia e um aeroporto. O território seria governado por uma representação palestina sob a liderança da Autoridade Palestina. A organização sobrevive da ajuda humanitária internacional, há anos conta com baixo apoio popular entre os palestinos e atualmente trava com o Hamas uma violenta guerra na Cisjordânia.
Tanto o governo americano quanto o israelense rejeitaram o plano egípcio imediatamente. O plano nem ao menos cita a exigência primordial de EUA e Israel, que é a saída do Hamas do poder. Já a União Europeia, abertamente contrária a qualquer mudança demográfica na região, o apoia; chanceleres da França, Alemanha, Itália e Grã-Bretanha se declararam favoráveis ao plano, assim como a ONU.
Para Dalia Ziada, analista política egípcia baseada nos EUA e membro sênior do Jerusalem Center for Security and Foreign Affairs, esse encontro não teve como objetivo encontrar uma solução real. “A ideia de Trump provocou pânico entre os países árabes, especialmente a Jordânia e o Egito. Por décadas, nenhum deles quis se envolver com Gaza. Agora todos querem, por medo de que os problemas de segurança nacional hoje enfrentados por Israel espirrem para seus países no momento em que palestinos começarem a se espalhar. Eles querem que esse problema continue sendo de Israel, da Europa e dos EUA.” Segundo ela, só há um caminho para Gaza: que o mundo em uníssono exija que todos os reféns israelenses sejam libertados, que o Hamas entregue as armas e o poder, e que Gaza seja reconstruída longe do ciclo de terror que se repete há décadas.
A Riviera americana
Donald Trump usou o termo “Riviera” para definir sua visão para Gaza depois do fim da guerra com Israel. O que provocou uma onda de críticas por evidenciar uma visão que seria exclusivamente prática de um magnata do real state, incapaz de considerar o impacto humano de sua proposta. Talvez haja bem mais do que isso por trás de seu plano, segundo comentou o pesquisador do Begin-Sadat Center for Strategic Studies, Mordechai Kedar: a Faixa de Gaza, com 40 quilômetros de costa, seria o local perfeito para a construção do grande porto previsto no projeto Corredor Econômico Índia-Oriente Médio-Europa (IMEC), cujo memorando de entendimento foi assinado em setembro de 2023 entre União Europeia, Estados Unidos, Arábia Saudita, Emirados Árabes, França, Alemanha e Itália.

Segundo Ted Deutch, CEO da organização judaica American Jewish Committee, importante think tank com base nos EUA, “o apoio do presidente Trump a Israel é bem-vindo, mas os comentários sobre ‘tomar o controle’ e ‘possuir Gaza’ são surpreendentes, preocupantes, confusos e levantam uma série de questões — entre elas, qual seria seu impacto sobre o acordo de libertação dos reféns”. O qual é, por sua vez, a maior preocupação de Israel no momento.
Ainda há muito chão pela frente.
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