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Edição 260

Bagunça estranha

Sem garantia do devido processo legal, a cidadania brasileira se torna de segunda classe

Adalberto Piotto
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Quem hoje é capaz de prever algo no Brasil com alguma garantia de acerto? Refiro-me à segurança jurídica para investimentos e processos judiciais, às garantias constitucionais da liberdade de expressão, da economia de mercado e da inviolabilidade da propriedade privada. Para ficar só no lado econômico, limito este meu questionamento às regras claras e democráticas que não serão alteradas por uma ou outra conveniência política de algum dos três Poderes, quando qualquer um destes se sentir atingido em seus interesses diante desse interminável revisionismo seletivo que atormenta o país. Na vida real, dos brasileiros que trabalham, que investem, ninguém.

Na extensa lista de fatos recentes que contrariam o maltratado interesse público ou que se sobrepõem a ele nessa estranha bagunça, o desvirtuamento do papel do Estado está comprometendo a vida brasileira tal como ela vinha acontecendo antes disso tudo. Sem previsibilidade do que é legal ou não, do que se pode ou não fazer, da garantia do devido processo legal, a cidadania brasileira se torna de segunda classe. É como se o parágrafo único do artigo 1º da Constituição, que diz textualmente que “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”, não existisse, não valesse, não dissesse o que diz claramente ou fosse de aplicação relativa. O jurista Leonardo Corrêa, da Associação Lexum — que defende a liberdade e a separação dos Poderes —, diz que “a Constituição é a lei que governa os que nos governam”. Incomodado com a lei que o governa, o Supremo Tribunal Federal, com seu ativismo, decidiu reinterpretar o texto constitucional e se imiscuir em tudo da vida do país. Moderação, recato e apreço ao texto da lei deram lugar a ministros-celebridades que não se cansam de aparecer em entrevistas, palestras, eventos sem fim e que dão muita opinião fora dos autos. Para esse STF ativista, as regras constitucionais, mesmo sendo regras, ensejam sempre uma reanálise. E reanálises constantes são a morte do Estado de Direito. Se o Supremo diverge, põe-se para reanálise. É quando o milagre da volta da previsibilidade acontece com votos de maiorias aparentemente consolidadas, afinal, não faltaram sinais de como votariam em suas falantes aparições públicas.

Réplica da Constituição em frente às sedes dos Três Poderes simboliza o papel da carta Magna na defesa da democracia | Foto: Rubens Gallerani Filho/ Audiovisual/PR

Isso não pode ser normal. E não é. Mas continua seguindo esse curso temerário.

A última “inovação” suprema foi o entendimento que ampliou o alcance do foro por prerrogativa de função. Agora o deputado, o senador ou qualquer outra autoridade que tiver “direito” a foro privilegiado sempre terá seus casos julgados pela Corte, mesmo que já tenha deixado o cargo. A naturalidade com que o STF altera um texto constitucional e legisla sem ter prerrogativa para tanto fez o jurista André Marsiglia dizer que “o Supremo virou patrão do Congresso”. Em suma, sugere-nos o seguinte: como um parlamentar vai votar de forma independente se o juiz de seu processo poderá ficar no seu encalço a vida inteira? E, como já estará sendo julgado no Olimpo, não tem duplo grau de jurisdição, não tem para onde recorrer. Um nobre deputado e senador sentirá como é a vida de um réu do 8 de janeiro.

Dado esse disparate geral, caberia aqui uma segunda pergunta: quem em sã consciência, que não seja a turma do bilionário cineasta e da atriz do filme Ainda Estou Aqui, ambos em transe sobre direitos civis no presente, ou da turma vil do “sem anistia”, acha que ainda estamos vivendo numa democracia plena? E essa dúvida bate de frente com a capacidade do país de viver na plenitude a sua vida civil e desatar o nó econômico em que se encontra. Não há liberdade econômica que resista sem prévia liberdade de expressão, porque dela se depende para um simples questionamento. E esse é um ponto que deveria juntar mais gente para defender o Brasil e sua Constituição. Mas não junta. Por quê?

E não faltam motivos. Listo alguns a seguir:

Coisa julgada: o Supremo destruiu o ato jurídico perfeito em questões tributárias. Ao mudar o entendimento de uma lei, não mudou só o futuro. Determinou igualmente a retroatividade do pagamento dos impostos, mesmo que decisões transitadas em julgado favoráveis a empresas e contribuintes os isentassem. A sanha arrecadatória do atual governo explica. Cadê o Congresso?

Alteração na composição do Carf: sob o efeito alucinógeno da liberação bilionária de emendas parlamentares, deputados e senadores deram de volta ao governo petista o voto de minerva no órgão. Em caso de empate de contendas sobre tributos, o governo decide a favor dele e contra o contribuinte. Mais Brasília, menos Brasil. Nas mãos de um governo do PT, é uma temeridade administrativa.

Revisão de benefícios tributários ao setor produtivo: em que pese o fato de que qualquer benefício possa ser reavaliado para averiguar sua efetividade, a motivação do governo Lula, perdulário e colecionando rombos, foi só fazer caixa para tentar fechar as contas. Cadê a tal sociedade civil organizada?

Bolsas assistencialistas sem porta de saída: empresários no país inteiro têm reclamado da falta de mão de obra. Beneficiários de programas sociais evitam o vínculo formal de trabalho, um direito garantido por lei, em troca do dinheiro depositado pelo governo. A oferta de emprego, de renda muito maior que qualquer bolsa, deveria ser a saída para o beneficiário. O governo populista prefere o cabresto. Este é um caso em que o barulho do populismo encobre a razão.

Mais uma bolsa: o Pé-de-Meia, uma nova bolsa do governo Lula para estudantes, foi concebido por uma pedalada fiscal. O TCU advertiu o governo, mas criou a excrescência da pedalada “até segunda-feira”: deu três meses para o governo colocar o gasto no Orçamento. Cadê o rigor da lei?

Luiz Inácio Lula da Silva, presidente da República, durante encontro com estudantes para anúncio de pagamento da primeira parcela do Programa Pé-de-Meia, no Palácio do Planalto | Foto: Ricardo Stuckert/PR

Diplomacia partidarizada: nunca na história do país o Itamaraty ficou tão exposto pelas escolhas e discursos erráticos do presidente Lula na seara internacional. É hoje persona non grata em Israel, por exemplo, e comemorado pelo Hamas. Ideologizado e sem pragmatismo, afastou o Brasil de seu tradicional equilíbrio nas relações exteriores ao deixar em segundo plano a sua habilidosa diplomacia técnica. Em meio a uma guerra comercial e à proeminência da Casa Branca, o secretário de Estado de Donald Trump, Marco Rubio, já falou com dezenas de nações, mas não com o Brasil. Milhares de empresas exportadoras que precisam de liderança diplomática são prejudicadas.

Estado Democrático de Direito X Supremo: a supressão dos direitos constitucionais da liberdade de expressão e até da inviolabilidade de parlamentares, do devido processo legal, da garantia do contraditório e da ampla defesa de opositores coloca o país na mira de Washington e do mundo por agressão aos direitos humanos e por perseguição política. Investidores sérios e estado de exceção não se conversam.

Corrupção em alta, um retrocesso: o Brasil teve sua pior nota no Índice de Percepção de Corrupção, da Transparência Internacional. Em 2024, o país teve nota 34 (de 0 a 100) e ficou em 107º lugar. No final de 2023, primeiro ano do governo Lula, já havia caído dez posições.

Governo sem rumo e radicalizado: a reforma ministerial, que poderia trazer um fôlego ao governo no Congresso, passou o pior recado possível com a nomeação da deputada petista Gleisi Hoffmann para a pasta das Relações Institucionais. Radical, com pífio trânsito no Parlamento e crítica do pouco que a política econômica do governo tenta acertar, a decisão de Lula surpreendeu até aliados.

Gleisi Hoffmann, secretária de Relações Institucionais | Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

R$ 3,5 bilhões em comunicação: a Secom e as estatais, como Correios, Caixa e Banco do Brasil, vão despejar bilhões de reais do pagador de impostos na mídia convencional para tentar melhorar a imagem de um governo ineficiente, incapaz e sem planos. Mas é nas redes sociais e plataformas digitais que o debate de verdade acontece e onde o governo Lula e o PT nunca tiveram hegemonia. É onde as pessoas mostram o preço explosivo da carne, dos ovos e do café, a falta de vacinas e de medicamentos nos postos do SUS e onde o ministro da Fazenda é chamado de “Taxad”.

É notória a acelerada desinstitucionalização do país, os ataques ao devido processo legal e à segurança jurídica de todos que seguem a lei. Até quando órgãos como a OAB, entidades de classe e juristas de renome que assinaram a Carta em Defesa da Democracia da Escola de Direito do Largo do São Francisco, da USP, gente que tem plena consciência dos abusos e ilegalidades, vão continuar em silêncio? Ao optarem pelo silêncio, seja lá pelo motivo que for, abandonam o país, a Constituição e seu povo. Como viver assim?

Hoje, são apenas a mídia independente e os brasileiros reais das ruas e das redes sociais que estão denunciando o arbítrio, a perda dos seus direitos, as afrontas ao Estado Democrático de Direito e lutando pelo Brasil. No qual querem viver e prosperar sem um Supremo que lhes usurpe a Constituição ou um governo que lhes tire o futuro.

Leia também “A América voltou. Recomenda-se negociar”

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