O ano é 1974. O astronauta Steve Austin está no interior da nave M3-F5, pendurada na asa de um bombardeiro B-52 da Força Aérea americana. Àquela grande altitude, a nave é desligada do B-52. Mas Austin não consegue controlar a M3-F5, que cai no campo de testes. Ele é dado como praticamente morto.
Oscar Goldman, diretor da agência secreta de inteligência OSI, decide aproveitar a tragédia para realizar uma ousada experiência: “Senhores, podemos reconstruí-lo. Temos a tecnologia. Temos a capacidade de fazer o primeiro homem biônico do mundo. Steve Austin será esse homem. Melhor do que era antes. Melhor… mais forte… mais rápido”.
E assim, com um orçamento de US$ 6 milhões, Steve Austin é reconstruído. Ganha um olho esquerdo biônico com zoom, capaz de ver no escuro e detectar calor. Recebe pernas biônicas capazes de fazê-lo correr a 108 quilômetros por hora. No lugar de seu braço direito, ele tem agora uma prótese mecânica com a força de uma escavadeira.
Claro que em 1974 tudo isso aconteceu apenas no mundo da ficção, na série O Homem de Seis Milhões de Dólares, com Lee Majors no papel principal. A série fez tanto sucesso que gerou um spin-off, A Mulher Biônica, em 1976. A imagem de Steve Austin correndo em câmera lenta ficou tão icônica que crianças começaram a se machucar de verdade para tentar trocar pedaços de seu corpo por equipamentos biônicos.
“Ciborgue”, explicava a abertura da série, “é um ser humano no qual partes humanas originais tiveram que ser trocadas em melhor ou maior extensão por máquinas que cumprem as mesmas funções”. Passados 51 anos, US$ 6 milhões podem ser corrigidos para US$ 37 milhões. E o ciborgue já é uma realidade.
A revista britânica How It Works dedicou seu número 200 ao “humano de amanhã”. “Como fios e circuitos estão se misturando com vasos sanguíneos e nervos para mudar o curso da evolução humana” é sua chamada de capa.
Esqueletos externos
O artigo de Scott Dutfield lembra que, desde o início do século 19, engenheiros criaram “aparelhos mecânicos para imitar a função de membros perdidos”. Não é preciso chegar ao século 19. Antes mesmo já havia a figura do pirata da perna de pau, cujo membro original provavelmente foi devorado por um tubarão ou destruído por uma gangrena.
Com o tempo, aparelhos para surdez, pontes de safena e implantes dentários foram aceitos como normalidade. Mas, agora, estamos dando passos muito maiores. Conectamos nosso corpo a aparelhos numa época em que nosso cérebro já está ligado a modelos de inteligência artificial. Seremos cada vez mais ciborgues.
Pessoas com dificuldade de locomoção poderão usar exoesqueletos (ou “esqueletos externos”). Empresas como a Neuralink (de Elon Musk) já estão trabalhando com três voluntários que tiveram chips implantados em regiões específicas do cérebro para transmitir ordens. Eles conduzem seus pensamentos a computadores — que movimentarão máquinas ou escreverão textos. São os chamados BCIs (sigla em inglês para “interfaces cérebro-computador”).
Elon Musk declarou em 2017: “Com o tempo, acho que vamos ver uma aproximação cada vez maior entre a inteligência biológica e a inteligência artificial”. Isso significa algo como ter um Google, um ChatGPT ou um Grok na cabeça. Qualquer pergunta será respondida com extrema velocidade e alcance. Isso vai ser bom? Vai ser ruim? Depende do ser humano que vai usar esse potencial todo.
Este vídeo mostra Noland Arbaugh, o primeiro paciente com um chip Neuralink implantado no cérebro. Ele joga o game Mario Kart com a força de seu pensamento:
O soldado do futuro
Estudos feitos por militares dos Estados Unidos em 2019 levaram esse conceito um pouco mais longe. Se os sinais do cérebro podem ser transmitidos para um computador, por que não poderiam conectar um soldado a um drone, por exemplo? E mais: por que não poderiam gerar um novo tipo — eletrônico — de telepatia? Imagine um grupo de soldados em absoluto silêncio coordenando as ações só pelo pensamento?
Este vídeo do Exército americano imagina como seria esse soldado. Sua roupa teria um monitor de saúde e controle de temperatura. Seu exoesqueleto daria mais velocidade e capacidade de carregar peso, causando menos fadiga. Suas condições seriam transmitidas constantemente para drones e helicópteros para facilitar as decisões táticas das operações. Seu cérebro estaria conectado diretamente às armas, para uma melhor performance. Seu corpo estaria protegido contra ataques químicos e biológicos.
De volta à vida civil: a Mobius Bionics desenvolveu o braço LUKE, que conecta seu mecanismo aos nervos humanos que controlam as mãos, os pulsos e os cotovelos. Este vídeo mostra Sarah, uma mulher que perdeu um braço e uma perna num acidente de trem no Reino Unido. Ela usa o protético LUKE e explica que, quando deseja fazer algo, seu pensamento dá a ordem e a inteligência artificial “adivinha” o que deve ser feito. O intervalo entre o comando e a resposta ainda dura cerca de dez segundos, e com a ajuda da IA espera-se que esse intervalo desapareça. Todos os dias ela retira o braço para dormir e o carrega na tomada “como um iPhone”.
Imprimindo órgãos
Precisa de um nova bexiga, fígado ou rins? Imprima. Isso já está acontecendo, numa escala mais simples. Esta reportagem da NBC News mostra algumas experiências já realizadas em que impressoras 3D criam orelhas e narizes a partir de células de outras partes do corpo. Cientistas do Massachusetts Institute of Technology (MIT) já estão trabalhando com réplicas impressas de corações. O coração é construído de forma a ficar idêntico ao órgão original do paciente. Ao contrário dos transplantes atuais, esses órgãos originais não correm perigo de rejeição.
A era dos ciborgues não vai atender as pessoas apenas por questões médicas. Nossa transformação em máquinas vai passar também pelos aspectos mais simples da vida cotidiana.
Você implanta um chip do tamanho de um grão de arroz sob a pele. No chip estão registrados seus cartões de crédito e débito e demais documentos de identificação. Lá está também a chave eletrônica que vai abrir as portas de sua casa e seu carro. Você não precisa mais decorar senhas nem levar as chaves com você. O usuário se transforma em cartões e chaves. As tecnologias usadas para isso são a identificação por radiofrequência (RFID) e a comunicação por aproximação (NFC).
Olimpíada de ciborgues
Já existe até uma olimpíada de ciborgues desde 2016: a Cybathlon, que acontece na Suíça. Quer dizer, acontecia. A edição de 2024 aparentemente foi a última.
Segundo a matéria da How It Works, as provas incluem “corrida de prótese de braço, corrida de exoesqueleto, corrida com assistência de robô” e até uma disputa de quem consegue realizar mais tarefas comandando robôs com a força da mente. Este vídeo mostra cenas da última competição, que incluiu um entusiasmado representante do Brasil.
As palavras do personagem Oscar Goldman depois de 51 anos parecem cada vez mais atuais: “Temos a tecnologia. Temos a capacidade de fazer o primeiro homem biônico do mundo. Melhor do que era antes. Melhor… mais forte… mais rápido”.
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