Não faz tanto tempo assim que ninguém podia prever com exatidão o que havia em barriga de grávida, urna eleitoral e cabeça de juiz. O primeiro enigma foi aposentado há muito tempo pelos avanços tecnológicos: hoje, descobre-se em poucas semanas de gestação se é menino ou menina. Se as eleições forem limpas, também o segundo mistério pode ser decifrado por pesquisas eleitorais criteriosas. Ainda é difícil imaginar o que decidirão jovens juízes que acabam de ingressar na magistratura, mas até turistas vindos do Afeganistão, de passagem pela Praça dos Três Poderes, sabem como votarão os ministros do Supremo Tribunal Federal: contra tudo o que pode coincidir com interesses, pontos de vista e preferências da imensidão de brasileiros rebaixados pelos ministros a extremistas de direita.
Os doutores em tudo resolveram que, no País do Carnaval, não existem as cinco grandes tribos políticas catalogadas em nações normais: extrema esquerda, esquerda, centro, direita e extrema direita. Aqui, foram erradicadas a direita e a extrema esquerda. Sobraram a esquerda, a extrema direita e o centro (quando fecha contratos com o PT), ou centrão (quando se junta ao “bolsonarismo golpista”). A soma dessas vertentes vale menos que zero se confrontada com os superpoderes dos generais togados. “O protagonismo do Poder Judiciário é uma marca do nosso tempo que veio para ficar”, avisou o ministro Flávio Dino na semana passada.

Para que a insolente previsão de Dino saia do campo dos sonhos, será preciso revogar o artigo 1º da Constituição de 1988, segundo o qual “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”. Ele sabe a diferença entre conseguir um cargo no Legislativo ou no Executivo e arranjar uma vaga na cúpula do Judiciário. Para virar deputado estadual, governador do Maranhão e senador, ele precisou de milhares de votos. Para tornar-se o primeiro ministro comunista da história do STF, bastou tapear um presidente da República. “Existe a figura do agente não eleito”, improvisou Gilmar Mendes para justificar as incessantes invasões promovidas pelo Pretório Excelso em territórios pertencentes aos outros Poderes.
Decano do Supremo, Gilmar lidera o quinteto que o governa, completado por Luís Roberto Barroso, Dino, Moraes e Toffoli. Ele planeja, os demais executam — com a chancela, por ação ou omissão, dos eminentes colegas. Cármen Lúcia, órfã profissional atualmente aos cuidados do mentor Gilmar, deixou de achar que cala boca já morreu. Luiz Fux, único juiz concursado, esqueceu o que sabia. Advogado particular de Lula, Cristiano Zanin ainda não esgotou o estoque de demonstrações de gratidão ao padrinho. André Mendonça e Nunes Marques continuam engatinhando em silêncio. Hoje bem menos falante, Edson Fachin finge não enxergar o monumento à dissimulação que o transformou no coveiro da Operação Lava Jato.

Depois de endossar meses a fio todas as decisões que transformaram a Lava Jato na maior operação anticorrupção de todos os tempos, Fachin estancou com uma formidável chicana a sangria que já rondava o STF. Numa sessão que tratava do escândalo de dimensões siderais, criou a Lei do CEP: tudo o que se fizera estava certo, mas fora feito na cidade errada. Se o pântano da corrupção se localizasse em Curitiba, onde se concentraram as investigações, seria drenado até a última gota de lama. Como a roubalheira multibilionária foi urdida e consumada em Brasília, era preciso começar tudo outra vez — na capital federal. Como já não havia tempo para isso, seria mais prático punir os xerifes e perdoar a bandidagem. Melhor tirar a Lava Jato do palco, tirar Lula da cadeia, tirar Bolsonaro da corrida presidencial, instalar Lula de novo no Planalto e proclamar a ditadura da toga com o amém do governo e o apoio do jornalismo estatizado.
O alvo da vez é o mais excitante para os inimigos da pacificação do Brasil: Jair Bolsonaro e seus parceiros no “golpe de Estado” cujo apoio logístico incluía um vendedor de algodão-doce serão julgados por uma Turma do Supremo. Favorecidos pela tibieza da Justiça Militar, subitamente convencida de que julgar oficiais das Forças Armadas é coisa para o STF, cinco bacharéis em Direito que não haviam julgado sequer um roubo de galinha quando ganharam uma toga decidirão o futuro do ex-presidente da República e dos comandantes de batalhões formados por moradores de rua, autistas, septuagenários enfermos e soldados rasos que nem estavam na Praça dos Três Poderes.
Era o pretexto que faltava para que se intensificasse a erupção liberticida anunciada pela tentativa de censurar a revista Crusoé, promovida por Toffoli e Moraes. Parece que foi ontem. Já se passaram seis anos. A ditadura do AI-5 durou dez. Entre 1968 e 1978, aliás, os ministros do STF esqueceram a democracia para defender o próprio emprego. Nenhum deles criticou o inchaço da Corte: os 11 togados viraram 16. E ninguém se indignou com o restabelecimento da composição original provocada pela cassação de cinco ministros. Todos alegaram que apenas respeitavam as regras da Constituição em vigor. Entre um pontapé num artigo e um soco em outra cláusula pétrea, é o que repetem os atuais ministros.


Fantasiados de socorristas da democracia em perigo, os integrantes do Egrégio Plenário desmontaram o sistema acusatório brasileiro, mutilaram a imunidade parlamentar, criaram o flagrante perpétuo, inventaram a prisão provisória infinita e o julgamento por lotes, transformaram a Corte em partido político, esfaquearam a liberdade de expressão, rebaixaram o Tribunal Superior Eleitoral a polícia de palanque, bloquearam centenas de contas bancárias, ressuscitaram a figura do preso político, forçaram centenas de inocentes a sobreviver no exílio, expulsaram das redes sociais difusores de verdades, transferiram para o acusado o ônus da prova, descobriram que tornozeleiras eletrônicas garantem a prisão fora da cadeia.
Não é pouca coisa. E não é tudo. A ditadura da toga sepultou o devido processo legal e o direito de ampla defesa — alicerces jurídicos respeitados até mesmo no Julgamento de Nuremberg, que puniu figurões da Alemanha Nazista que haviam sobrevivido à guerra. Advogados brasileiros não têm acesso aos autos do processo, e muitos são perseguidos ostensivamente por Alexandre de Moraes. Os generais de banda que juram morrer de amores pelo Estado de Direito instauraram no Brasil a era do medo. Mas renunciaram à vida social. Não aparecem sem cordões de segurança sequer em restaurantes que frequentavam ou em clubes dos quais são sócios. Fogem de voos comerciais. E não ousam dar as caras numa rua de qualquer cidade do país. Nos casos que administra, é verdade, Moraes consegue atuar simultaneamente como vítima, detetive, delegado, promotor, juiz e julgador de recursos. Mas a vida que leva não é muito diferente da vida dos condenados à prisão domiciliar.
A imensa maioria dos brasileiros não está gostando do que vê, quer a pacificação do país, está inconformada com o atual governo e não admite ser tutelada por doutores nos quais jamais votaria. Foram esses os mais claros recados das eleições municipais de 2024. No ano que vem, serão repetidos aos berros pelo Brasil que pensa e presta. Se conseguissem sair de casa, se voltassem a andar por aí, nossas sumidades togadas talvez desconfiassem que um movimento ainda em seu começo logo se transformará em campanha nacional — com uma única palavra de ordem: “Anistia já”.

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Acusam os outros de atentar contra o Estado Democrático de Direito. Então, para preservá-lo das ações que atribuem aos outros, resolveram acabar com ele.
Prestem atenção para os últimos presidentes do senado(escrevo em letras minúsculas porque eles são minúsculos de caráter): renan calheiros, rodrigo pacheco e davi alcolumbre. O QUE PODERIA DAR ERRADO COM ESTE TRIO?
Parece que as togas estão debochando de nossas caras, tal é o tamanho da arrogância e ousadia dos atos abusivos sobre o 8 de Janeiro. Todo o processo legal caiu por terra.