“Niment under stesich groser Ding,
die im zu thun unmuglich sindt.”
[“Aquele a quem os deuses querem destruir,
primeiro deixam-no louco.”]
(Antigo provérbio alemão)
No passado, a Quaresma era um tempo forte de reflexão, conversão, perdão e caridade, marcado por símbolos religiosos e pela busca de obediência à Lei de Deus. Hoje, sinais e exercícios quaresmais quase desapareceram das igrejas. O sentido de conversão, caridade e humildade diminuiu na sociedade e ainda mais na mais alta Corte, cujo plenário se reúne sob a imagem de Cristo crucificado e no qual ocorrem tantas desmedidas. Onde segue a Quaresma? Na natureza e na produção agropecuária. Aleluia!
Na natureza, as quaresmeiras florescem no tempo da Quaresma, daí seu nome. A Igreja Católica identificou símbolos quaresmais nessas plantas da enorme família das melastomatáceas (69 gêneros e 1.436 espécies no Brasil), típicas da Mata Atlântica e presentes em outros biomas. Na florada, a quaresmeira (Tibouchina granulosa) reveste-se de cores quaresmais, do roxo ao púrpura, sinais de mortificação e luto. Anuncia a proximidade da Paixão de Cristo e da Páscoa. O gênero Tibouchina é muito utilizado em paisagismo e jardins. As cores do manacá da serra (Tibouchina mutabilis), na mesma planta, vão da Quaresma à Páscoa. Suas flores roxas (morte) em alguns dias tornam-se lilases (luto) e logo brancas (ressurreição). Nesse período de abstinência e sobriedade, cabe observar: flores de quaresmeiras e manacás da serra não têm perfume. O modelo vegetal da quaresmeira ilumina corações e a Mata Atlântica de roxo, branco e lilás. E não é só ela.

Ainda na natureza, no final do verão, florescem diversos maracujás, da família das passifloráceas (20 gêneros e 630 espécies, sobretudo lianas). São plantas cheias de simbolismos eclesiais. Em inglês, francês, italiano e alemão, por exemplo, o maracujá é chamado de fruto da paixão. Não é a paixão dos casais. É a Paixão de Cristo. Essa designação inicial dos maracujás foi criada, por volta de 1610, pelos missionários jesuítas na América do Sul, por suas semelhanças com objetos e marcas da Paixão de Cristo. O nome foi adotado por Lineu, na sistemática das plantas, em 1753.
Nessas trepadeiras, as garras ou gavinhas lembram os açoites e flagelos. Na flor, o formato dos três estiletes evocam os cravos da crucifixão. As cinco anteras correspondem às chagas no corpo de Cristo. O círculo de filamentos de cor roxa lembra a coroa de espinhos. O formato esférico da fruta evoca o mundo, a salvação do planeta: o fruto da Paixão. No Brasil, várias Capelas do Santíssimo são decoradas com pinturas de flores de maracujá, como na Matriz do Bom Jesus, em Monte Alegre do Sul.
Na agropecuária, a produção é pautada pela Quaresma. Os cristãos, na preparação para a Páscoa, buscam viver de maneira mais simples, jejuando, exercendo o autocontrole, perdoando e tendo uma reflexão espiritual mais intensa. Sobretudo às sextas-feiras, eles trocam a carne vermelha pela branca (peixes e frangos) e por ovos, verduras e legumes. É uma forma de penitência, de autocontrole e de honrar o sacrifício de Cristo.
Na Quaresma, a demanda por ovos e peixes aumenta e culmina com o bacalhau da Sexta-Feira Santa. Ovos, frangos e legumes, produtos de ciclo relativamente curto, exigem previsão, planejamento e aumento da produção pelo agronegócio em todo o país. Isso para garantir o abastecimento dos mercados e a chegada à mesa do consumidor.

Os supermercados, elo final entre produtores, agronegócio e consumidores (Revista Oeste, edição 133), se preparam para a Páscoa. Redes atacadistas e varejistas se antecipam e montam grandes estoques dos produtos mais consumidos na Quaresma e na Páscoa. No campo, o trabalho é intensificado para atender ao aumento de demanda, antes e durante a Quaresma.
Se os preços dos alimentos já estão altos, os dos ovos e da tilápia podem subir ainda mais, por causa da Quaresma e de uma oferta incapaz de suprir totalmente o mercado. Os valores de ambos atingiram recordes em suas séries históricas no primeiro trimestre, segundo o Cepea.
Na produção de ovos, a elevação do dólar e dos custos de produção, a inflação nos insumos e as altas taxas de juros levaram muitos avicultores ao descarte de galinhas poedeiras nos últimos meses. Resultado: redução da oferta e aumento do preço ao consumidor, com a demanda aquecida.
No caso da tilápia, seu ciclo de produção é relativamente longo. Para um animal atingir o tamanho de abate são necessários cerca de seis meses. Em agosto de 2024, no início do povoamento de tanques e criatórios, várias frentes frias chegaram ao Sul e Sudeste. Elas causaram mortalidade e atrasos no início do alojamento de alevinos e juvenis da tilápia. Além disso, as incertezas relacionadas à política e à economia levaram produtores a diminuir os investimentos e o número de alevinos alojados.
O maior contato com ovos, símbolos de vida e renascimento, está na origem de artes como a pintura e a decoração das cascas, muito presentes no Sul. Ou da confecção de ovos madeira, decorados com símbolos pascais: as pêssankas, da tradição eslava. Essa arte quaresmal culminou na criação de joias, os ovos de Fabergé, oferecidos pelos tzares Alexandre III e Nicolas II da Rússia às esposas respectivas, Maria Feodorovna e Alexandra Feodorovna, para a festa da Páscoa. O século 20 gerou o ovo de Páscoa, de chocolate. Seu preço supera o das pêssankas e evoca o das joias.

Tilápias ou bacalhaus, os peixes são símbolos polissêmicos de fertilidade por sua prodigiosa capacidade de reprodução e abundância de ovos. No Cosmos representam a 12ª e última constelação do zodíaco (19 de fevereiro a 21 de março). O peixe é um dos símbolos de Jesus Cristo e do Cristianismo. Marcaram o início do ministério de Jesus na Galileia (Lc 5,1-11), com uma pesca milagrosa. E o fim, antes da Ascensão. Após outra pesca milagrosa (Jo 21,1-14), Jesus consumiu o peixe como um alimento eucarístico, prova de sua ressurreição (Lc 24,41-43).
Em grego, Iktus (ἰχθύς), “peixe”, é o ideograma de Jesus Cristo. Cada uma das cinco letras é vista como inicial das palavras: “Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador”. Iktus: I de Iesus, “Jesus”; K de Kristos, “Cristo”; T de Theu, “Deus”; U de Uios, “Filho”; S de Soter, “Salvador”. Daí a presença de numerosas figurações de peixes em monumentos cristãos (pias batismais, igrejas, túmulos, altares etc.) e até em evangélicos automóveis.
“Quaresma” vem da contração de “quadragésima”, referente ao 40º dia, quando se encerra o período. Domingos não fazem parte da Quaresma. Na prática, a Quaresma não dura 40 dias. Estende-se sobre 46. No Ano da Graça de 2025, a Quaresma começou em 5 de março (Quarta-Feira de Cinzas) e vai até 17 de abril (Quinta-Feira da Paixão). Pela primeira vez em 1,7 mil anos, os cristãos, incluindo os ortodoxos, celebrarão juntos a Páscoa, em 20 de abril. A data coincidiu em seus calendários.
O jejum na Quaresma existe desde os primeiros séculos do Cristianismo. No Concílio de Laodicéia (363-364 d.C.) foi prescrito o uso de pão e frutas secas na Quaresma. A Igreja sugere abster-se de algo habitual: jejum de internet, celular ou redes sociais, por exemplo. E fazê-lo em todas as sextas-feiras da Quaresma. Para muitos, esse autocontrole é inimaginável. Atenção especial à humildade e ao perdão. Tempo de conversão e caridade.
Paradoxo atual, a Quaresma propõe um tempo oposto à desmedida e ao autoritarismo de juízes da alta Corte, cuja primeira obrigação seria defender e respeitar a primeira das leis, a Constituição. Tomados pela húbris (ὕβρις), alguns ultrapassam toda medida, agem com presunção e arrogância. O desprezo temerário pelo espaço pessoal alheio e a falta de controle dos próprios impulsos nos tribunais é a expressão da húbris, ou hybris, da mitologia grega: sentimento violento, descomedido, inspirado por paixões ideológicas. Aqui, como na tragédia grega, os inocentes pagam.
Avós, pais e mães inocentes, idosos e deficientes, passarão Quaresma e Páscoa em prisão, separados de seus filhos (órfãos de pais vivos) e familiares, condenados a penas absurdas e desmedidas, sem direito a ampla defesa e recursos processuais. São presos políticos. Vítimas invisíveis para boa parte da mídia e para os ditos defensores dos direitos humanos. Sob o silêncio e a omissão vergonhosa da Conferência Episcopal e da claudicante Ordem dos Advogados. Do Brasil, e não dos brasileiros.

Condenação ou anistia? Aristóteles definiu a húbris como humilhar a vítima, não por algo acontecido ou do qual tenha participado, mas por descaso e ódio em relação a ela. Não é vingança: acerto de conta por erro cometido. É desprezo total pelo Outro, achando poder “fazer tudo o que quiser”. Considerada doença por seu caráter irracional e desequilibrado, a húbris terminava severamente punida pelos deuses. Assim será. Aquele a quem os deuses querem destruir, primeiro deixam-no louco, entregue às Erínias.
A Páscoa é impregnada de imagens agrícolas. Os cristãos são estimulados a tornarem-se terra fértil para a semente da palavra de Deus, pregada de forma intensa na Quaresma (Lc 8,5-15). As cinzas impostas na abertura da Quaresma nada têm a ver com arrependimento de abusos carnavalescos. A Quarta-Feira de Cinzas olha para a frente no calendário. Não para trás. As cinzas são um chamado à fertilidade, à floração, à fecundidade e à essência.
O Sermão da Sexagésima foi pregado na Capela Real de Lisboa, em 1655, pelo padre António Vieira, o imperador da língua portuguesa. Da “parábola do semeador” (Lc 8,5), Vieira destacou logo o trecho inicial: “Saiu o que semeia a semear”. Não diz o evangelho, como em muitas traduções, “saiu um semeador a semear”, e sim “saiu quem semeia, a semear”. Há distância entre título e função. Dirigindo-se a Corte, realeza, nobreza, ministros de Estado e autoridades, Vieira explica essa distância tão atual: o semeador não semeia, o governo não governa, o pregador não prega, os bispos não pastoreiam e os juízes não julgam com justiça. Assim, aqui, estamos.
Conclui Vieira, e cada frase vale quanto pesa: “Veja o Céu que ainda tem na terra quem se põe da sua parte. Saiba o Inferno que ainda há na terra quem lhe faça guerra com a palavra de Deus. E saiba a mesma terra que ainda está em estado de reverdecer e dar muito fruto: Et fecit fructum centuplum”.
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Texto imperdível.