Calamidades e situações de emergência sempre serviram de pretexto para políticos astutos com índole de ditador minarem as salvaguardas das liberdades individuais, geralmente amparados em suportes pretensamente científicos de economistas argutos com gênios controladores. Esse aviso de Hayek, escrito há muitos anos, poucas vezes foi tão apropriado como neste ano, em que o misterioso vírus de Wuhan se alastrou pelo planeta e provocou enormes pressões para o Estado tomar as rédeas dos costumes e o bridão da economia, com vistas a impor controles, ordens, proibições e punições de todos os tipos.
Precisamos ter cuidado nessas horas, para que a capacidade louvável de reconhecer um problema antes que se torne uma emergência não se transforme em manuseio político do que já não é mais uma premência, prolongando propositadamente o problema para obter benefícios permanentes, como se a essência de qualquer situação emergencial não fosse, por definição, a transitoriedade.
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Ao alertar sobre a ameaça à liberdade que representa o uso com fins políticos de situações de desespero, o filósofo e economista austríaco Friedrich Hayek (1899-1992) tinha em mente, entre outros alvos, os chamados programas sociais, que encarava como estacionamentos de altíssima rotatividade, para ser utilizados apenas enquanto uma necessidade real os justificasse. Porém, a verdade factual é que nada parece ser mais agradável aos políticos do que abraços e desejos de longa vida para esses programas, porque costumam render muitos votos sem impor os desgastes normalmente exigidos pelas ações de erradicação das verdadeiras causas do desespero.
“Emergências permanentes” costumam causar muitos estragos
Sejamos realistas. Caso os programas assistencialistas existentes no Brasil fossem extintos, parece evidente que os milhões de pessoas paupérrimas que foram beneficiadas por mais de vinte anos voltariam a ser muito pobres, significando que esses programas não atacaram as raízes da pobreza extrema. Sejamos, agora, mais explícitos: os governos desperdiçaram caminhões de recursos escassos durante mais de duas décadas.
A explicação para o fato de essas e outras propostas — como cotas, por exemplo — apresentadas inicialmente como emergenciais passarem a ser permanentes é dada pela práxis que orienta os agentes políticos, a do poder, sua busca e posterior manutenção. Ora, como nas democracias o poder requer sufrágios, há incentivos naturais para soluções fáceis e populares. Nestes dias mesmo, após o presidente Bolsonaro ter anunciado a suspensão do programa Renda Brasil, vários líderes políticos estão tentando convencê-lo a criar um novo e é muito fácil perceber a real intenção dessa aparente preocupação com os desassistidos, tendo em vista que estamos a dois meses das eleições municipais.
Na economia, as “emergências permanentes” costumam causar muitos estragos, resumidos em uma simples menção à fábula da corrida entre a lebre descuidada e excessivamente confiante e a tartaruga que, laboriosa e ciente de sua lentidão, termina vencendo a disputa. É fato que a teoria econômica é rica em narrativas fantásticas, que denotam incrível falta de conhecimento de como as coisas funcionam no mundo real. O problema é que as ideias de ficção econômica costumam ressurgir sempre que se configura algum contratempo relevante, fazendo voltar à tona argumentos surrados, como o de que é melhor combater crises de grande porte com a transferência para o governo da tarefa de criar demanda, na crença de que a oferta responderá a esse crescimento e, assim, a economia vai sair do purgatório e ir direto para o céu, que é pintado como sendo especialmente mais azul em anos eleitorais.
Só que há um probleminha com esse truque da armaria superpopulosa de mágicas “progressistas”: ignorar que, neste mundo velho de guerra, a tartaruga é sempre mais lenta e que a lebre jamais dorme no ponto. Vamos ver por quê?
A lebre estatal, na hora de torrar o nosso dinheiro, é mais rápida do que o gatilho de John Wayne
O crescimento sustentado é um aumento contínuo da capacidade de gerar oferta e, portanto, é um processo de longo prazo, lento pela própria natureza e que tende a ser ainda mais vagaroso na presença de entraves que punem o empreendedorismo e a geração de empregos, como o excesso e a instabilidade das regras do jogo, a floresta inextricável de burocracia e de tributos e a insegurança jurídica. Já a demanda é sempre veloz, porque responde imediatamente aos estímulos do governo. Basta, por exemplo, para usarmos a conhecida imagem de Milton Friedman, que o “helicóptero” do Banco Central despeje moeda sobre o país para que, desde que a predisposição a escolher entre consumir e poupar não se altere, consumidores e empresas aumentem imediatamente os seus gastos. E a velocidade da lebre, digo, da demanda costuma ser ainda maior quando é estimulada por gastos públicos. Sim, a lebre estatal, na hora de torrar o nosso dinheiro — que, afinal, é o que banca as políticas públicas —, é mais rápida do que John Wayne quando sacava seu Colt do coldre, enquanto a oferta lembra aquele simpático piloto brasileiro de Fórmula 1…
É inegável que em situações atípicas e desconhecidas como a deste ano, de choques expressivos de caráter mundial, que nasceram do travamento das cadeias de produção — portanto, vieram da oferta, mas depois se propagaram para a demanda —, faça sentido contar com medidas emergenciais de estímulos. Medidas que favoreçam tanto a oferta quanto a demanda e produzam temporariamente o oxigênio necessário para a atividade econômica continuar respirando. Porém, quando deixam de ser emergenciais e se tornam rotineiras, essas ações de intervenção do Estado na ordem econômica equivalem à suposição falsa de que a tartaruga conseguirá acompanhar a velocidade da lebre do início ao fim da corrida e que vão cruzar a linha de chegada juntas e talvez, até, de mãos dadas e sorrindo para as câmeras.
Por isso, são muito preocupantes certas propostas escalafobéticas que têm aparecido desde que os brasileiros passaram a lavar as mãos com mais cuidado, esfregá-las com álcool várias vezes por dia e deixar os sapatos do lado de fora da porta de entrada. Refiro-me a sugestões como extinção do teto de gastos, aumento do valor e extensão do período do auxílio emergencial, maior presença do Estado na vida econômica e social, criação permanente de moeda, redução drástica da taxa básica de juros, controles de preços e abolição das preocupações com o equilíbrio fiscal e o endividamento interno. Se extravagâncias desse tipo já são condenáveis quando partem de políticos, sinceramente, é desalentador saber que ainda possam existir economistas que as sustentem, depois de séculos de fracassos.
A inflação monetária já está rolando, mas a inflação de preços depende da política monetária atual
As tentativas de promover “crescimento” por meio de aumento da demanda — sempre e no mundo inteiro — deram com burros, cavalos e asnos n´água. Não há sequer um caso de êxito, e o máximo que aconteceu foram períodos de expansão sempre passadiços, por não serem baseados em novos investimentos, mas em simples utilização de capacidade ociosa. Depois de alguns meses, a tentativa de expulsar a natureza sempre fracassa e a lebre fatalmente ultrapassa a tartaruga, o que significa o surgimento de um excesso de demanda que, depois de algum tempo, se for alimentado por bancos centrais cujos diretores creem que sua função é estimular a economia, causará inflação de preços, que chegará tão mais depressa quanto maior for a expectativa de que está para dar as caras.
A inflação monetária já está rolando, mas a inflação de preços depende da política monetária atual e de sua trajetória esperada para o futuro, que, por sua vez, depende da política fiscal de hoje e de sua trajetória prevista. Essa dependência é tão mais perigosa quanto maior é a relação entre a dívida pública e o PIB. Assim como colocamos roupas pesadas na mala quando viajamos para a Europa no inverno, quando os agentes econômicos, pela ausência de coordenação entre os regimes fiscal e monetário, esperam inflação no futuro, passam a agir defensivamente: quem vende aumenta imediatamente os seus preços, na esperança de ganhar mais, e quem compra aceita pagar preços mais elevados hoje porque receia ter de pagar ainda mais caro amanhã.
O governo não pode se render a sugestões estrambóticas de “permanência da emergência”, porque a recuperação de uma crise é um alho, mas o crescimento sustentado, um bugalho. E também porque é definitivamente inaceitável qualquer retorno ao triste passado de tolerância à inflação. A única permanência necessária é a do aprofundamento das reformas liberais, para que a relação dívida interna/PIB volte a cair como antes da pandemia, a taxa de juros possa manter-se em níveis baixos, a tartaruga fique mais veloz, a lebre não seja forçada a parar lá na frente e a economia possa crescer sem inflação.
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Ubiratan Jorge Iorio é economista, presidente do Conselho Acadêmico do Instituto Mises Brasil e professor associado (aposentado) da Uerj.
Intervenções e auxílios em momentos emergenciais, embora não desejáveis, são fundamentais em situações como a desta pandemia. O problema é que tais ações sempre geram frutos (popularidade), levando os governantes a flertarem com sua permanência. Espera-se que haja equilíbrio entre o que é necessário fazer e até onde deve ser feito.
Sem responsabilidade fiscal e com uma postura populista Bolsonaro vai jogar o Brasil novamente em um abismo, só que este à direita. A esperança é o Paulo Guedes.
Parabéns Professor. Texto objetivo e bem fundamentado. Não é só na Ciência Econômica que auxílios, bolsa e investimento a fundo perdido são danosos à sociedade, não! Veja o que o Gonzagão cantava: “…Mas doutô uma esmola a um homem qui é são, Ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão.” (Vozes da Seca)
Desculpe a franqueza mas, apesar de concordar em essência com o que defendeu, a fábula do coelho e da tartaruga ficou esquisita aqui
Vou tentar ler de novo rs rs rs