O episódio que catapultou o psicólogo Jordan Peterson ao posto de celebridade intelectual internacional é exemplo de erros que não devem ser cometidos nem reproduzidos. O primeiro erro é ter como princípio usar os poderes do Estado para impor a sua vontade; o segundo erro é permitir que o Estado seja usado para impor a vontade de terceiros.
Em 2016, discutia-se no Parlamento canadense um projeto de lei de iniciativa do governo de Justin Trudeau que não apenas permitia que fosse possível declarar no documento pessoal a identidade de gênero, mas que obrigava — e aqui reside o problema — todo mundo a tratar o outro pela escolha, sob pena de punição com multa, treinamento antipreconceito ou até mesmo prisão. É inacreditável que o Canadá trate seus cidadãos como a China comunista trata os seus inimigos internos em seus “campos de reeducação” desde a revolução de 1949.
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Ao participar do comitê de discussão pública no Senado canadense, Peterson criticou a proposta não pela possibilidade de o indivíduo atestar legalmente o seu desejo, mas por impor a todos uma obrigação. O psicólogo disse que não teria e não veria problema em tratar qualquer indivíduo da maneira como ele preferisse, mas não queria ser coagido a fazê-lo. Estou completamente de acordo.
Há aqui uma dimensão ética inegociável: fazer algo porque a lei obriga não é a conquista de respeito social pela pessoa que usa a lei para ser respeitada; é, pelo contrário, usar a lei para simular um respeito que, lamentavelmente, não existe e que só é possível, de fato, de outra maneira que não pela coerção estatal. Uma coisa é usar a lei como instrumento de coerção para desincentivar ou punir condutas criminosas. Outra é fazer da lei o instrumento de violência para impor uma visão de mundo ou uma moralidade.
Aquele que hoje quer impor aos outros a sua escolha de gênero ou qualquer um de seus desejos não difere daqueles que, no passado, por exemplo, criminalizaram atos homossexuais. Há, aqui, apenas a inversão da lógica, não uma distinção da natureza autoritária da vontade ou do ato.
O conservadorismo almeja uma dimensão moral que alicerce uma vida satisfatória e benéfica
Se você tem como primeiro impulso defender a ideia segundo a qual aquilo que lhe agrada ou convém deve ser imposto por lei pelas instituições políticas e jurídicas, você não está disposto a viver em sociedade, que exige diálogo e convencimento. Sei que é chato e cansativo, que parece não dar resultado, mas são necessariamente autoritárias ou totalitárias as alternativas políticas ao fado de conviver com os contrários e lutar por aquilo em que se acredita.
Mas há um problema maior dessa tentação e postura: numa democracia, se você aceita a ideia de um Estado moralizador terá de aceitar, necessariamente, que seu antagonista defenda um Estado desmoralizador. Criado o cenário, teremos todos de enfrentar instituições políticas que, de tempos em tempos, corroem o tecido social e a confiança entre os indivíduos ao impor visões radicais de um mundo perfeito.
O filósofo John Kekes qualifica o conservadorismo como uma espécie de moralidade política não como uma política moralizadora (Kekes, John. What Is Conservatism? Philosophy 72, nº. 281, 1997). A dimensão política do conservadorismo está ancorada, segundo ele, na ideia de que arranjos políticos adequados permitem a constituição de uma boa sociedade; e a dimensão moral fundamenta-se na forma como se justificam esses arranjos para propiciar uma vida boa, que significa, de modo geral, vida satisfatória e benéfica.
Kekes explica que o objetivo fundamental do conservadorismo é preservar os arranjos políticos que se mostraram propícios à construção e preservação dessa vida boa. Por isso, quem for conservador poderá viver e defender uma vida moral, no sentido que o filósofo dá ao termo, mas não deverá querer impô-la a toda a gente.
Os conservadores devem evitar a tentação equivocada de estabelecer um Estado conservador que pretenda submeter todos a uma determinada moralidade, pois há o enorme risco de, numa sociedade baseada no pluralismo, o conservadorismo ser a causa do desequilíbrio e da desordem pela imposição de uma visão política e moral. Isso é o contrário de ser conservador.
“O Estado existe para proteger a sociedade, não para moldá-la”
Por outro lado e por razões semelhantes, não podem os conservadores cometer o erro de permitir que representantes de ideias rivais, antagônicas e destruidoras transformem as instituições estatais em instrumentos de um projeto de poder revolucionário, autoritário ou totalitário. Porque será impossível construir ou preservar uma boa sociedade ou uma vida boa se aos conservadores forem impostos arranjos políticos que impedem a sua constituição e promoção.
O uso do Estado para criação artificial de um determinado modelo de sociedade corrompe a natureza do relacionamento entre os indivíduos na vida em comunidade e atribui às instituições estatais o direito de modelá-la de acordo com os interesses do grupo que estiver no poder. O filósofo inglês Roger Scruton alertou acertadamente em Como Ser um Conservador (Editora Record, 2015) que “o Estado existe para proteger a sociedade, não para moldá-la de acordo com algum propósito que já não esteja implícito no tecido social”.
Como bem escreveu o tradutor Pedro Sette-Câmara em seu perfil no Instagram, “o ponto central é este: não se trata de o governo transformar em lei o que parece bom. Não se trata de o governo obrigar todo mundo a ‘fazer o bem’. Mas de simplesmente entender que há esferas — muitas — às quais o governo não deve ser convidado”. Exemplos de governo penetra são cada dia mais recorrentes nos países Ocidentais e aos conservadores cabe a responsabilidade de impedir a sua entrada e propor soluções para diversas questões que são usadas como justificativas para o intervencionismo estatal.
A reação de Jordan Peterson não impediu que a lei canadense fosse aprovada e que se tornasse exemplo de norma que molda a sociedade em vez de protegê-la. Em nome de uma demanda legítima pela oficialização do gênero no documento pessoal, Executivo e Legislativo canadenses submeteram todo o país ao silêncio obrigatório em vez de incentivar o respeito civilizatório.
Bruno Garschagen é cientista político, mestre e doutorando em Ciência Política no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa (Lisboa) e autor dos best-sellers Pare de Acreditar no Governo e Direitos Máximos, Deveres Mínimos (Editora Record).
Parabens Bruno Garschagen. Que texto hein?