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Edição 33

Como descobri o Brasil

Foi por meio das aventuras de um personagem infantil chamado Billy Bunter que tive contato com a ideia de Brasil

Theodore Dalrymple
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A primeira vez que tomei conhecimento da existência da Argentina — The Argentine, como a chamávamos na Inglaterra naquela época — foi pelos selos. Em especial, eu me lembro dos de Eva Perón: e com base neles achei que ela era a mulher mais linda e gloriosa do mundo.

A primeira vez que tomei conhecimento da existência do Brasil foi diferente. Foi por meio de um livro chamado Billy Bunter in Brazil (Billy Bunter no Brasil). Como o objetivo do livro era mais entreter do que educar, a descrição do país era um pouco rasa. Ele foi publicado no ano de meu nascimento, 1949, e eu o li dez anos depois.

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Aluno ficcional de um colégio interno, Billy Bunter era gordo, míope e burro. Ele usava óculos redondos de armação grossa e era conhecido como “Fat Owl”, ou Coruja Gorda. E era sempre alvo das piadas dos colegas de classe. Bunter também tinha uma origem social inferior em relação a eles, o que o fazia compensar de um jeito estúpido, gabando-se da magnífica casa dos pais, que na verdade era bastante modesta. Ele constantemente pegava dinheiro emprestado dos demais porque não tinha nada, ainda que afirmasse constantemente que ia receber dinheiro na próxima remessa do correio. Sempre que encontrava um bolo, ele cortava uma pequena fatia e comia o resto.

Naqueles tempos, eram poucas as crianças muito gordas — eu só me lembro de duas na minha infância inteira — e a obesidade ainda era considerada uma falha individual (ou talvez culpa das “glândulas” da criança), em vez de uma questão de saúde pública, como é agora. Billy Bunter era gordo porque era guloso, e nenhuma outra explicação era necessária.

Billy Bunter foi inventado como personagem em 1908 pelo autor Frank Richards, que, sob uma variedade de nomes, acredita-se ter escrito mais palavras do que qualquer outro autor na história da humanidade — cerca de 100 milhões, pelo que se diz, ainda que imagino que ninguém as tenha contado com exatidão. As histórias de Billy Bunter continuaram populares na Inglaterra até a revolução cultural dos anos 1960. Meu pai as tinha apreciado tanto na sua infância quando eu na minha.

Mentiroso, desonesto, egoísta, ganancioso e burro. Mas também curiosamente inocente

George Orwell escreveu um ensaio famoso criticando histórias como as de Billy Bunter, que afirmava serem esnobes e conservadoras. Mas Frank Richards era um homem inteligente e de boa formação, apesar do fato de só ter escrito histórias infantis, e respondeu a Orwell, sem dúvida ganhando a discussão. Richards disse que escrevia apenas para entreter as crianças de forma inocente; e o fato de crianças de todas as classes sociais terem gostado de suas histórias durante quarenta anos sugeria que ele tinha sido bem-sucedido. (O autor teria sido um homem muito rico, se não fosse um devoto da roleta e não gastasse boa parte de seu dinheiro em um cassino em Monte Carlo.)

Ainda que Frank Richards tivesse escrito suas histórias por meio século, Billy Bunter nunca cresceu nem teve nenhuma mudança. Sua idade e seu caráter, seu jeito de se vestir, seus hábitos, suas expressões e seus gostos eram exatamente os mesmos cinquenta anos depois de sua primeira aparição: sua atemporalidade era o que ele tinha de tão reconfortante. Apesar de mentiroso, desonesto, egoísta, ganancioso e burro, também existia algo curiosamente inocente nele. Mesmo com suas falhas e seus defeitos, não havia nada de fato detestável em Billy Bunter. Pelo contrário, ficávamos felizes com sua existência porque ele aumentava nossa alegria de viver. Havia esperança para nós; nossas falhas e imperfeições não significavam que não tínhamos valor.

Olhando para trás mais de sessenta anos depois, hoje vejo que existia um elemento considerável de crueldade quando ríamos de Billy Bunter, que era tão digno de dó quanto de zombaria. Pobre Bunter! Ele talvez nunca tivesse se sentido bem consigo mesmo, sempre cercado por garotos mais magros, mais inteligentes e mais ricos, confrontado dia após dia com a própria inferioridade. Mas as crianças são cruéis e muitas vezes riem do outro sem consideração por nada mais profundo.

Bunter vai para o Brasil em 1949 e descobre uma terra prometida em comparação com a Inglaterra que deixou para trás, onde os alimentos ainda eram racionados. (Depois da guerra, o racionamento na Inglaterra acabou em 1953.) Bunter não tem nenhuma curiosidade sobre nada além do horário da próxima refeição. Infelizmente para o personagem, no entanto, ele fora convidado para ir ao Brasil, junto com outros de sua classe, por um colega, Lord Mauleverer, cuja família aristocrática tinha uma propriedade no Estado de Mato Grosso administrada por um primo, Brian Mauleverer. O local se chama Quinta Branca, onde as condições, para além da comida, não são exatamente do gosto do personagem. Em um passeio rio abaixo, por exemplo, Bunter, que está muito cansado (ele raramente vai a qualquer lugar que não seja a rede mais próxima), se senta no que considera ser um pedaço de tronco, mas na verdade é um enorme jacaré. Ele é alvo de insetos e suas picadas, o que Bunter considera injusto, sem nunca se dar conta de que o motivo é estar coberto de caldo de cana ou puxa-puxa.

A trama do livro é, como você pode imaginar, boba. Quando chega à Quinta Branca, a comitiva inglesa descobre que o administrador não está lá. Eles são recebidos por Martinho Funcho, o adjunto, charmoso e agradável de um jeito bajulador, mas que sequestrou e aprisionou Brian Mauleverer na esperança de ser apontado administrador em seu lugar e poder desviar os fundos da quinta para pagar suas dívidas no cassino mais próximo (o personagem obviamente tinha algo em comum com o autor). Funcho está em conluio com um bandido chamado O Corvo, mas, naturalmente, os destemidos estudantes ingleses salvam Brian dos brasileiros malvados e os entregam à Justiça. Só que, no fim, Bunter não quer ir embora do Brasil porque, ao contrário da Inglaterra, a manteiga é abundante no país. Billy Bunter não é nem patriota nem está com saudade de casa. Assim, ele precisa ser arrastado pelos amigos até o avião.

O livro foi a base bastante frágil de minha descoberta do Brasil. Mas sua releitura não foi uma perda de tempo completa. Além de um retorno nostálgico à infância, eu tinha esquecido que até mesmo no ano de meu nascimento o uso do termo nigger em inglês era inaceitável para pessoas decentes. Quanto Bunter se refere ao mordomo da quinta como “that nigger”, os colegas lhe dizem para não falar assim. Quando ele o faz de novo, um deles lhe dá um chute no traseiro. E, infelizmente para Bunter, é difícil errar seu traseiro.


Theodore Dalrymple é o pseudônimo do psiquiatra britânico Anthony Daniels. Daniels é autor de mais de trinta livros sobre os mais diversos temas. Entre seus clássicos (publicados no Brasil pela editora É Realizações), estão A Vida na Sarjeta, Nossa Cultura… Ou O Que Restou Dela e A Faca Entrou. É um nome de destaque global do pensamento conservador contemporâneo. Colabora com frequência para reconhecidos veículos de imprensa, como The New Criterion, The Spectator e City Journal.

 

9 comentários
  1. Maria Tereza de Souza Coutinho
    Maria Tereza de Souza Coutinho

    Adorei!

  2. Antonio E Rezende
    Antonio E Rezende

    Só agora comecei a acompanhar os textos de Dalrymple e estou boquiaberto como se tivesse achado um veio de pedras preciosas.

  3. Otacílio Cordeiro Da Silva
    Otacílio Cordeiro Da Silva

    Uma boa história. Conheci algumas pessoas assim. Evidentemente, como todos nós, servem para compor o palanque do mundo. E, o que é melhor ainda, sem a babaquice do politicamente correto de hoje, que tenta de toda forma emagrecer o mundo segundo a sua bula.

  4. Thais de Melo Queiroz
    Thais de Melo Queiroz

    Dear Sir Theodore Dalrymple,
    Please, tell us about your second discovery of brazil. How and when did you discover that you had thousands upon thousands of fans in this strange land of ours? sorry for my bad english, i’m still learning it.
    Hugs,
    Thais de Melo Queiroz.

  5. Hamilton L Moreira E Família
    Hamilton L Moreira E Família

    Excelente texto.

  6. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Texto prazeroso.

  7. Francisco Pessoa de Queiroz.com
    Francisco Pessoa de Queiroz.com

    Leitura leve, agradável.Muito bom.

  8. Silas Veloso
    Silas Veloso

    Hahaha, muito bom! Me lembrei do Bolinha e turma das histórias em quadrinhos, cheios d defeitos e encantos, q apenas viviam plenamente, sem querer pregar lições d moral

    1. Jorge Luiz Soares Ribeiro
      Jorge Luiz Soares Ribeiro

      Excelente, como de costume.

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