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Edição 34

Nunca haverá uma primavera como aquela

Assim era a vida no Brasil que sabia praticar o convívio dos contrários

Augusto Nunes
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Os assombros daquela primavera começaram com a chuva de rã que teve como epicentro o jardim na frente da casa de Eulália Menon Montenegro. De pé na soleira da porta de entrada, com o semblante sereno de quem já não se surpreende com nada, ela olhava alternadamente para os pequenos objetos voadores que continuavam desabando na grama ou nas roseiras e para o sobrinho encolhido na cadeira de balanço austríaca, pálido de susto, com um gibi do Flash Gordon na mão direita, a esquerda agarrada ao braço de madeira e tentando decifrar o que estava acontecendo naquele fim de tarde de 27 de setembro de 1957. “Essa é a maior que já vi”, murmurou Eulália. Fez uma pausa e completou: “Quando chove rã, coisas estranhas acontecem em seguida”. Assim ela avisou que nunca haveria uma primavera como a de 1957, que começou com a tempestade de batráquios e prosseguiu com uma sequência de esquisitices, sempre envolvendo o céu, e acabou engolindo todas as estações seguintes até cessar, tão misteriosamente quanto chegou, no início da primavera de 1958.

Duas semanas depois da chuva de rã, soube pela minha mãe que a estrelinha que piscava no céu desde 4 de outubro era a primeira nave espacial lançada pelos comunistas russos. Não entendi direito por que a invenção do Sputnik 1 representava uma humilhação para os norte-americanos e uma ameaça à liberdade, mas alistei-me na guerra contra a Rússia e o restante da União Soviética ao descobrir que o Sputnik 2, com decolagem marcada para 4 de novembro, seria tripulado pela cadela Laika numa viagem só de ida. Vi nos jornais o olhar tristíssimo da cachorra condenada sumariamente à morte sem culpa e estava pronto para esquentar a Guerra Fria quando o povo do lugar quase caiu de costas com a cena de cinema: pendurada num paraquedas, uma cadela que só podia ser Laika saiu do meio das nuvens, aproximou-se sem pressa da superfície da terra, pousou na estradinha que começava onde as casas acabavam e foi recolhida por dois homens a bordo de um jipe que acelerou rumo a um destino ignorado. Os 10 mil moradores curaram a frustração com a certeza de que Laika não morreu. Voltou à Terra e aterrissou na cidade em que nasci.

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Os meses seguintes produziram assombros sempre vindos lá do alto. Miniaturas de paraquedas desceram do céu com a regularidade de um voo comercial, para presentear meus conterrâneos com abridores de garrafas da Antártica; um paraquedista contratado pela prefeitura para abrilhantar a festa do aniversário da  cidade saltando de um teco-teco e descendo bem no centro do campo de futebol foi traído pelos ventos e se enroscou de tal forma na mangueira do colégio das madres salesianas que só conseguiu chegar ao solo depois de socorrido por bombeiros de Araraquara; a imagem de Nossa Senhora refletida numa castigada lata de banha juntou no local do milagre uma multidão de devotos dispersada aos berros pelo padre Lourenço Cavallini; uma cratera de bom tamanho surgiu de manhã num trecho de terra que era plano até a noite anterior, provando que um disco voador visitara sem aviso prévio a Fazenda Paraguaçu; em setembro de 1958, enfim, um pequeno avião pousou na pista de terra da Fazenda Contendas — e Jânio Quadros apareceu em Taquaritinga. Entre tantas aparições estranhíssimas, nenhuma pareceu-me tão inverossímil. Ainda convalescendo do choque, ouvi meu pai comunicar que nós éramos janistas. Os outros, os adversários, esses eram ademaristas, pois o chefe da seita a que pertenciam se chamava Ademar de Barros.

Ninguém prometia, como agora é moda, “unificar” as tropas que regressavam do front

A polarização, como se vê, nada tem de nova. A diferença é que nos anos 50, sobretudo nas pequenas cidades do Brasil, a temperatura política só rondava o ponto de combustão nas campanhas eleitorais. Antes e depois do tiroteio retórico nos comícios, os antagonistas praticavam com adorável naturalidade o convívio dos contrários. Mais: filhos de janistas e ademaristas dividiam todos os quintais — muitos se tornariam amigos de uma vida inteira — e mulheres dos candidatos rivais trocavam receitas enquanto os maridos trocavam chumbo verbal nos palanques. Se os líderes janistas e ademaristas fossem devidamente interrogados a respeito, talvez não conseguissem identificar as razões das desavenças. Em ambos os lados faltava um conjunto de ideias e princípios a defender ou a atacar. Havia apenas dois líderes populistas a venerar. “Confesso que tenho saudade do Ademar”, disse-me Jânio Quadros em 1980. Faz sentido: nenhum teria existido politicamente sem o outro. E nenhuma das seitas sobreviveu à morte física do sumo sacerdote. Quem vencia a eleição municipal, claro, garantia que governaria para toda a cidade, mas as coisas paravam por aí. Ninguém prometia, como agora é moda, “unificar” as tropas que regressavam do front.

Cabe a um candidato vitorioso pôr em prática o programa que defendeu, alcançar as metas que fixou e compreender que não se deve perder tempo com vinganças e desforras. A convivência civilizada depende dos eleitores: só existirá se ficar estabelecido que a democracia genuína é inseparável do convívio dos contrários. Os que sonham com a inexistência de gente que pensa diferente são órfãos de ditaduras à caça do regime de partido único. Todos os países livres (e mesmo os partidos) vivem divididos. Isso é da vida. O problema é enxergar em quem discorda um inimigo a exterminar. Mao Tsé-Tung, por exemplo, acreditava que “a política é a guerra sem mortos, e a guerra é a política com mortos”. Mais uma evidência de que o fundador da ditadura chinesa foi uma perfeita besta quadrada.

 

11 comentários
  1. R. T.
    R. T.

    Excelente! História e política em prosa de alto nível.

  2. Josmar D Pagliuso
    Josmar D Pagliuso

    Houve o caso de uma mesma ama de leite alimentar dois recém nascidos, um de família janista roxa (meu irmão) e outro de família ademarista idem.

  3. Antonio Carlos da Silva
    Antonio Carlos da Silva

    Quem não souber conviver com os diferentes está encarnado no planeta errado.
    DESPERTEM IRMAOS.

  4. Rosangela Deamo Medeiro Batista
    Rosangela Deamo Medeiro Batista

    Excelente Texto!!! Augusto Nunes sendo Augusto Nunes!!!!

  5. Agnes Vasconcellos
    Agnes Vasconcellos

    Mais um texto maravilhoso de ler como, aliás, maioria de seus textos, Augusto! Obrigada

  6. Jose Gustavo Lutz
    Jose Gustavo Lutz

    Muito bom e pertinente texto!

    1. Anselmo Conejo
      Anselmo Conejo

      … dizer que Mao Tse-Tung foi uma besta quadrada foi um tremendo elogio. Bestas quadradas são os que em pleno 2020 acreditam que o comunismo possa ser solução para um país. Obrigado Augusto Nunes por uma pérola de artigo. ???

  7. Carlos Augusto De Andrade Borges
    Carlos Augusto De Andrade Borges

    em Augusto, traços de Monteiro Lobato, e até gabriel g marques …

  8. Jeanne Abuhid
    Jeanne Abuhid

    comentário inteligente, sensivel!

    1. Luzia Helena Lacetda Nunes Da Silva
      Luzia Helena Lacetda Nunes Da Silva

      Perfeito
      Um retrato do real-maravilhoso / da realidade-fantástica do Brasil, do nosso mundo latino-americano.
      ADOREI

  9. Érico Borowsky
    Érico Borowsky

    Muito bom, Augusto!!!
    Abração!

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