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Edição 05

A legalização da boçalidade

Tiranetes cometem arbitrariedades sob o olhar catatônico de ativistas de direitos humanos e, supostamente, dentro da lei. Que democracia é essa?

Guilherme Fiuza
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Duas mulheres e seus filhos — uma menina e um menino de 14 anos — foram presos na orla do Rio de Janeiro. As crianças são atletas juvenis de natação e haviam atravessado um trecho do mar de Copacabana, sem permanecer na faixa de areia. A polícia abordou o grupo e, mesmo sem nenhuma  resistência, o prendeu e enfiou num camburão.

O objetivo alegado pelas autoridades é evitar o contágio por coronavírus. Eram duas crianças nadando no mar e, na mesma hora, diversos adultos circulando pela orla. Praia é areia, mar e calçada? Quantos metros para dentro e quantos para fora? O vírus gosta mais de nadar sozinho ou de caminhar em grupo? Ele respeita os que a polícia não aborda (especialmente jornalistas) e ataca os que a polícia escolhe? Ou os que o governador manda escolher?

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Seja como for, nunca se viu nada parecido em tempos democráticos, ou supostamente democráticos. Cumprir uma medida sanitária com vários homens armados atirando sumariamente duas cidadãs pacíficas e suas crianças num camburão é um atentado estatal. É uma coação violenta. E é, se tolerado pelas instituições que guarnecem a democracia, a oficialização da brutalidade.

O escândalo de Copacabana — mais um da série que se espalha pelo território nacional de forma assustadora — saiu de graça para os agressores.

 Mais uma vez, não se vê reação alguma das diversas entidades humanitárias nacionais e internacionais, essas que vivem anunciando a volta da ditadura no Brasil para amanhã, mas que não veem o pau comendo hoje. Ou melhor: fingem que não veem, escondidas e voluntariamente amordaçadas em seu confinamento vip. Que vexame.

A própria Organização Mundial da Saúde, matriz da recomendação de distanciamento social, já alertou para a questão de que a medida não pode ser aplicada indiscriminadamente em todo o planeta. As duas variáveis para a relativização do lockdown são claras: áreas que estiverem fora dos focos principais da pandemia e que tiverem população socialmente vulnerável — dependendo de circulação para seu sustento imediato. O Brasil está nos dois casos.

Mas os tiranetes locais, que diziam seguir a OMS e a ciência, agora não querem mais saber de nenhuma das duas. Querem prender e arrebentar fingindo que estão salvando vidas, tentando enganar o maior número possível de distraídos, amedrontados e otários para impor sua politicagem na marra.

Os governadores do Rio e de São Paulo, por exemplo, assumiram o cargo em 1º de janeiro de 2019 já agindo ostensivamente em função de seu fetiche presidencial. Ambos fizeram questão de não disfarçar. A covid é só mais uma aliada. Trancar o país e barbarizar as pessoas, na lógica dessas mentes doentias, é um passaporte dourado para o poder central. Simples assim. A simplicidade mental, aliás, é característica inata de todo androide.

Jogar crianças em camburão fingindo combater epidemia não é problema nenhum para eles.

Mas deveria ser para o resto da sociedade, que parece mergulhada num surto de catatonia — hoje certamente mais amplo e perigoso que o do coronavírus. Governadores, prefeitos e autoridades locais em geral ameaçam todos os dias a população com a iminência do colapso hospitalar. Ninguém demonstra a curva de progressão epidêmica que esgotará a curto prazo os leitos de UTI. Proliferam pedidos por mais hospitais de campanha ao lado de hospitais ociosos. Já há uma força-tarefa para apurar desvios e superfaturamentos nas verbas emergenciais — sim, os vermes estão entre nós. E a população paralisada diante da TV.

A OMS morde e assopra. Fez as ressalvas ao lockdown total, ao mesmo tempo em que solta alertas genéricos de que o pior da epidemia ainda pode estar por vir — tipo de manchete valiosa para Dorias, Witzels, Caiados, Barbalhos e terroristas associados do pânico viral. Quanto mais tempo de tranca, melhor a ruína — e você achava que só existia ruína ruim.

Ou o Brasil se liberta agora do sequestro, ou vai acabar tendo de mendigar a subsistência a seus algozes.

19 comentários
  1. Remulo Maia Alves
    Remulo Maia Alves

    Excelente artigo, claro expõe o que estamos vivendo com a pandemia. Com discurso de salvar vidas, os tiranetes (todos sabem quem são) vindos do executivo, judiciário com apoio do legislativo, têm uma oportunidade ímpar para agirem politicamente e tentam de forma hercúlea derrubar o presidente Bolsonaro a todo momento. Fiúza pra mim, é hoje, o maior cronista do jornalismo brasileiro. Parabéns.

  2. LUCIANO MARTINS DE SA OLIVEIRA
    LUCIANO MARTINS DE SA OLIVEIRA

    Muito boa reflexão sobre os riscos às liberdades individuais, que são relegadas a plano secundário nesse nosso Brasil.

  3. Henrique Matheus Perex
    Henrique Matheus Perex

    Parabéns, Fiuza!

  4. Mônica
    Mônica

    Brasileiros sem pai, nem mãe. Não existe lei para o cidadão comum, só o abuso dos agentes mal preparados, com desvio de caráter. Não consigo assistir àquele homem que repetia para a mulher numa praça em Araraquara atacada por quatro guardas municipais: “Não resista!”

  5. Natan Carvalho Monteiro Nunes
    Natan Carvalho Monteiro Nunes

    Excelente, Fiuza. Diante disso tudo, fica cada vez mais evidente a seguinte frase: “não importa o que se faz ou o que se fala, o que importa é quem faz ou quem fala”. Ou o brasileiro desperta de uma vez para combater o mau jornalismo da grande mídia, os maus governadores/prefeitos, os inescrupulosos parlamentares, ou seremos sempre vítimas dessa máquina de moer, que impera no Brasil há décadas.

  6. suely m pfeifer
    suely m pfeifer

    Estou horrorizada .. o surreal sai na TV ao vivo e a cores e fica como normal, aceitável, corriqueiro .. o poder é uma droga que vicia e destroi referencias e parametros .. Gostaria muito de acreditar que a politica é algo nobre mas cada vez me dá mais nojo …

  7. Juarez Dezuani Dias de Oliveira
    Juarez Dezuani Dias de Oliveira

    Se você quer conhecer alguém realmente, lhe dê poder. Será revelador. Isso é absolutamente verdadeiro e expôs, na vitrine dos horrores da política nacional, caras e nomes que não esqueceremos jamais.

  8. Vania L M Marinelli
    Vania L M Marinelli

    Excelente artigo de repúdio à criminalidade governamental!

  9. Marcelo Hial
    Marcelo Hial

    Graças ao “vírus chinês”, bandidos estão sendo soltos, vários presos da “Lava Jato” já estão no conforto de suas casas, curtindo “prisão domiciliar”, e o cidadão de bem sendo preso e conduzido a delegacias das formas mais arbitrárias possíveis, em nome do “bem coletivo”, e tudo isso sem um “pio” sequer dos defensores de sempre dos “direitos humanos”, da “esquerdalha” festiva, que nasceu na década de 90 e se diz “extremamente traumatizada pela ditadura”, e demais hipocritas de plantao, que adoram denunciar a volta do “fascismo” entre nós … o Brasil, de fato, não é para amadores ….

    1. Andrea
      Andrea

      Acho que o povo brasileiro, desacostumado a ficar em casa, já entrou em depressão coletiva de fim de mundo. E isso é exatamente o que os ditadores esperam.

  10. José Carlos P Almeida
    José Carlos P Almeida

    Onde está o STF? Se mete em tudo.

    1. maria luisa Salomon
      maria luisa Salomon

      Aprecio muito sus colocacoes
      Fiuza

  11. Otacílio Cordeiro Da Silva
    Otacílio Cordeiro Da Silva

    Certa vez, no fim de uma entrevista, o então senador Roberto Campos foi gentilmente convidado a traduzir em uma palavra o que era o poder. E ele respondeu: “Efêmero”. Todo poder é efêmero. Mas a maioria de nossos políticos demonstra não dar muita bola pra isso não. Algo parecido com o que dizia uma música do saudoso Belchior: “Era feito aquela gente, honesta, boa e comovida, que caminha para a morte pensando em vencer na vida”.

  12. Jose Angelo Baracho Pires
    Jose Angelo Baracho Pires

    Estado democrático de direito e politicamente correto vem sendo substituído por “intervenção já “, “ética”, “fora STF” é “cansamos”, mas somos PERSISTENTES. Ah, resistência foi substituído. Precisava de cabra macho com apoio popular.

  13. MARIA EMILIA
    MARIA EMILIA

    O que mais espanta é que há poucos meses o zelo com a democracia, o estado de direito, as instituições, era quase um fetiche para a imprensa, os formadores de opinião, ONGs, etc, etc. De repente, bum: o medo de um vírus – de gripe, não um ebola ou HIV – justifica o silêncio ensurdecedor dessa turma de hipócritas.

  14. Renato S Jacob
    Renato S Jacob

    Excelente artigo. Parabéns

    1. Aluizio De Oliveira Gonçalves
      Aluizio De Oliveira Gonçalves

      Fiuza, está rodando um twiter em que você esculhamba com o Moro. É verdade ou fake?

      1. Leticia Dreux Mariani
        Leticia Dreux Mariani

        vai no twitter, procura por Guilherme Fiuza@GFiuza_Oficial
        Esse é o endereço oficial dele

    2. PAULO GOUVEA
      PAULO GOUVEA

      Saio de casa todos os dias e só estou trabalhando home office porque fui obrigado. Por mim, estaria indo trabalhar. O triste é que nem as pessoas mais esclarecidas, que não estão em grupos de risco e estão indignadas com esses abusos de cerceamento a liberdade, se dignem a desacatar essa reclusão absurda.

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