Pular para o conteúdo
publicidade
Edição 51

Privatizações: o jogo é à vera ou à brinca?

É preciso compromisso com a agenda privatista. O projeto de lei sobre os Correios é de uma timidez apavorante e a MP da Eletrobras sinaliza para a concentração do mercado e cria uma nova estatal

Ubiratan Jorge Iorio
-

 

“No Brasil, empresa privada é aquela que é controlada pelo governo e empresa
pública é aquela que ninguém controla.”

Roberto Campos

Depois do desgaste provocado pela troca de comando da Petrobras, o governo, percebendo que era necessário aplacar os ânimos de sua importante base liberal, protocolou na Câmara dos Deputados o PL 591/21 e a MP 1.031/21, que tratam da privatização, respectivamente, dos Correios e da Eletrobras.

Decorrida a primeira metade do mandato, parece que é chegada a hora de, mesmo com todos os empecilhos existentes, o governo mostrar se pretende ou não levar a cabo o ambicioso projeto de desestatizações que até motivou a criação de uma secretaria especial para esse fim. Como dizíamos nos velhos e bons tempos em que os meninos brincavam com bolas de gude, precisamos saber se o jogo é à vera ou à brinca, ou seja, se a disposição para privatizar é para valer ou é só para divertimento.

É fato que, a partir da saída voluntária de Salim Mattar da Secretaria de Desestatização, não se pode garantir — Ministério da Economia à parte — a firmeza do governo quanto à necessidade de desestatizar suas empresas e, desde então, o que tem restado aos liberais é apenas torcer. Vou, então, repetir algo que já fiz muitas dezenas de vezes, que é gritar no deserto para mostrar que as privatizações “farão bem” para o brasileiro; em seguida, citar as enormes resistências ao seu andamento, existentes em várias frentes, que certamente levaram Mattar, que esperava vender em torno de R$ 1 trilhão de ativos de estatais apenas em 2019, a abandonar o governo em meados do ano passado; por fim, comentarei a timidez dos dois projetos que o governo levou à Câmara.

É preciso deixar claro que, quando afirmamos categoricamente que a privatização de todas as empresas estatais trará benefícios para os cidadãos brasileiros, não o fazemos por apego a qualquer ideologia, mas por uma dupla imposição: a da aritmética elementar e a do princípio moral milenar de respeitar todos os que sustentam o Estado pagando impostos.

É muito importante o leitor entender que privatizar (ou desestatizar) não implica apenas aumentar as escolhas dos consumidores, mas diminuir ou cortar as escolhas dos políticos; não exprime tão somente diminuir o desperdício de gastos públicos, mas aumentar os recursos em posse do setor privado, que os aloca de maneira muito mais eficiente e produtiva; não quer dizer simplesmente melhorar as finanças públicas, mas também “piorar” as dos políticos e seus grupos de interesse; e não denota meramente diminuir a corrupção, mas aumentar as liberdades individuais e o bem-estar da população. Empresas estatais não constituem “patrimônio” de nenhum povo nem são “estratégicas”! Significam, pura e simplesmente, maior poder nas mãos da classe política e de sindicatos.

Há pencas de argumentos políticos e econômicos em favor da privatização das estatais, mas em um artigo não é possível comentar um por um. É suficiente um argumento moral, que não pode nem deve ser esquecido: Estado e coerção formam um par perfeito e coerção significa ausência de liberdade ou restrições à liberdade. Muitos não conseguem ver isso, mas tolher a liberdade de iniciativa e de escolha de terceiros é um grave vício moral, que produz efeitos danosos e que se estendem às gerações futuras. A própria expressão empresa estatal é uma contradição, já que as estatais não são empresas, porque as verdadeiras empresas são ajuntamentos de fatores de produção com o objetivo de executar atividades empreendedoras, algo que, por definição, o Estado não pode conseguir, por uma questão simples de mútua exclusividade: falar em “empreendedorismo de Estado” é como afirmar que a Lua é quadrada.

De saída, a MP da Eletrobras já recebeu 570 emendas

Não é preciso pensar mais do que um ou dois segundos para responder à pergunta por que é muito difícil privatizar empresas ditas “públicas”. Primeiro, elas são portas sempre abertas para políticos indicarem protegidos ou vassalos para cargos em sua direção. Segundo, é nelas que está o butim das obras vultosas contratadas e do dinheiro mais farto do que o distribuído aos ministérios, além da possibilidade de que sejam cometidos desvios. Terceiro, os mantras do “patrimônio público” e da “soberania nacional” são mentirosos. Quando políticos e sindicalistas gritam “o petróleo é nosso”, “o minério de ferro é nosso”, “a geração de eletricidade é nossa”, “a Caixa é nossa”, “a entrega de cartas é nossa” etc., se estão sendo verdadeiros é porque usam o pronome possessivo referindo-se exclusivamente a eles, os únicos que ganham com o arranjo, pois o cidadão não é dono efetivo de nada. Tente, por exemplo, entrar no prédio de uma estatal qualquer sem se identificar na portaria. Sem ser fotografado e sem colar na lapela do seu blazer aquele adesivo de “visitante”. Você precisaria de tudo isso para entrar em uma propriedade que fosse sua?

Um quarto argumento falacioso é a teoria dos espaços vazios, segundo a qual determinadas atividades não despertariam o interesse de empresas privadas, cabendo então ao Estado criar empresas para explorá-las. É uma infantilidade. Se nos lugares mais distantes e de difícil acesso do país não faltam sabonetes, arroz ou papel higiênico, por que faltariam serviços de carteiros, postos de combustíveis e luz? Não é a presença do Estado que se faz necessária, mas simplesmente a ausência, nesses mercados, de barreiras de entrada e saída.

O PL 591/21 que o governo enviou ao Congresso não viabiliza a privatização dos Correios, apenas autoriza a transformação da empresa em sociedade de economia mista. Além disso, considera que as encomendas do comércio eletrônico, como objetos postais, são passíveis de regulação pela Anatel, o que é outro absurdo, uma vez que se trata de um setor em franca expansão, cujas regras de mercado garantem o seu funcionamento. O PL é de uma timidez apavorante: sobejam argumentos econômicos, políticos e morais para que a ECT perca o monopólio e seja privatizada. Em pleno século 21, a anuência da seita formada por adoradores do Estado, sindicalistas e nacionalistas à manutenção desse monopólio não passa de um fetiche, pois não há fundamentos que a sustentem.

A MP 1.031/21, que trata da privatização da Eletrobras, também padece de muitos vícios. De saída, já recebeu 570 emendas de deputados e senadores, além de dois pedidos de devolução à Presidência da República, sob a alegação ridícula de que “não há relevância nem urgência no tema da privatização” por causa da pandemia. A MP, que já entrou cambaleante naquela casa da mãe joana, parece que vai sair de lá carregada. Só mesmo recorrendo a Nelson Rodrigues quando disse que o subdesenvolvimento não se improvisa, por ser uma questão de séculos.

Note-se que a MP tem sido alvo de diversas críticas: (a) a capitalização aumentará a influência do Estado no setor elétrico; (b) cria uma nova estatal para controlar outras duas; (c) estabelece a golden share, em que a União terá voz dominante sobre as questões estratégicas da empresa e os acionistas privados estarão sujeitos ao seu poder de veto; (d) impõe à Eletrobras a provisão de recursos para “políticas públicas” regionais, escolhidas por Comitê Gestor do Executivo e sem submeter-se ao orçamento da União determinado pelo Congresso; (e) robustece o modelo de subsídios pagos pelo consumidor de energia; (f) sinaliza para a concentração futura do mercado, uma vez que a Eletrobras Corporation, pelo seu grande porte e pelas características do setor, pode tornar inviável a presença de empresas competidoras.

Ambos os casos, portanto, reafirmam que, se privatizar é muito difícil, privatizar em um país que já nasceu de cima para baixo, ou seja, em que o Estado antecedeu a sociedade, ainda é façanha para Hércules. E o problema é que, sendo grego aquele herói, teríamos de apelar para seu substituto nacional, quem sabe o Saci-Pererê…

A impressão que se tem é que, por parte do governo, infelizmente — para usar o dialeto dos nossos treinadores de futebol —, está faltando “compromisso” com a privatização. Essa sensação fica ainda mais forte quando sabemos que, mesmo com a pandemia, várias empresas já poderiam ter sido privatizadas, entre elas a Casa da Moeda, o Serpro, a Dataprev, o Ceitec (Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada), a Emgea (Empresa Gestora de Ativos) e a ABGF (Agência Brasileira Gestora de Fundos Investidores e Garantias). Todas já estão prontas para ser vendidas, mas o governo não tem mostrado disposição nesse sentido. É uma pena, porque a oposição e os sindicatos rupestres, contando com a simpatia e o apoio do ativismo judicial, passam o tempo inteiro trabalhando metodicamente no sentido oposto. Vamos jogar à vera, presidente?

Leia também “O capitalismo sob ataque”


Ubiratan Jorge Iorio é economista, professor e escritor. @ubiratanjorge.iorio

9 comentários
  1. Eric Kuhne
    Eric Kuhne

    Diogo Mac Cord, secretário especial para Desestatização, deu uma ótima entrevista para a OESTE há poucas semanas, mostrando como é difícil privatizar algo no Brasil, mas que está caminhando bem. Parece que o articulista discorda frontalmente dele, e acha que tudo depende do Bolsonaro… criticar é fácil

  2. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Como se fosse fácil privatizar qualquer coisa nesse país.

  3. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    Votei no atual governom provavelmente votarei novamente, mas com certeza não passa pela cabeça do Presidente Bolsonaro privatizar o Estado. Essa foi a grande mentira de campanha.

  4. Marcello Cruz
    Marcello Cruz

    concordo. Porém sem a articulaçao política fica difícil.

  5. ISRAEL VIANA DE OLIVEIRA
    ISRAEL VIANA DE OLIVEIRA

    Parabéns pelo artigo. Queria tanto que este artigo fosse apenas ficção, mas infelizmente é real.

    1. Claudia Aguiar de Siqueira
      Claudia Aguiar de Siqueira

      Difícil, mas vamos em frente, aos trancos e barrancos.

  6. Mauro Costa Faria
    Mauro Costa Faria

    Vou morrer de velhinho e não vou ver nada acontecer!
    Eta “brasil”. (Tem de ser com letra minúscula mesmo)

  7. Antonio Carlos Neves
    Antonio Carlos Neves

    Economista Ubiratan diante de tudo que você tem assistido de boicote do Legislativo e Judiciário às importantes reformas estruturais tributaria, administrativa e politica, porque não sugeriu isso tudo ao “diplomata”(não fala palavrão) FHC que governou 8 anos com todos os conchavos políticos, domínio sobre a imprensa e excelente convívio com os tribunais.
    Como idoso(75) ex tucano e outrora admirador de FHC e seus economistas do plano real, recomendo ler suas confissões nos “diários da presidência”, próprios para publicar “post mortem”. Não entendo quem o ressuscitou para combater o “governo” Bolsonaro, liderando agressivamente narrativas de ódio, com seus notáveis economistas que atualmente escrevem dramaturgias econômicas e pessoais.
    Ajude-nos a sair dessa grave crise sanitária e fiscal e combata aqueles que até na PEC EMERGENCIAL, revoltados, não aceitaram conceder temporariamente privilégios que 95% de nossa população não tem, ao contrario esta desempregada ou mal empregada.

Anterior:
Raquel Gallinati: ‘Fui a primeira mulher a representar os delegados de São Paulo’
Próximo:
Carta ao Leitor — Edição 248
Newsletter

Seja o primeiro a saber sobre notícias, acontecimentos e eventos semanais no seu e-mail.