“No Brasil, empresa privada é aquela que é controlada pelo governo e empresa
pública é aquela que ninguém controla.”
Roberto Campos
Depois do desgaste provocado pela troca de comando da Petrobras, o governo, percebendo que era necessário aplacar os ânimos de sua importante base liberal, protocolou na Câmara dos Deputados o PL 591/21 e a MP 1.031/21, que tratam da privatização, respectivamente, dos Correios e da Eletrobras.
Decorrida a primeira metade do mandato, parece que é chegada a hora de, mesmo com todos os empecilhos existentes, o governo mostrar se pretende ou não levar a cabo o ambicioso projeto de desestatizações que até motivou a criação de uma secretaria especial para esse fim. Como dizíamos nos velhos e bons tempos em que os meninos brincavam com bolas de gude, precisamos saber se o jogo é à vera ou à brinca, ou seja, se a disposição para privatizar é para valer ou é só para divertimento.
É fato que, a partir da saída voluntária de Salim Mattar da Secretaria de Desestatização, não se pode garantir — Ministério da Economia à parte — a firmeza do governo quanto à necessidade de desestatizar suas empresas e, desde então, o que tem restado aos liberais é apenas torcer. Vou, então, repetir algo que já fiz muitas dezenas de vezes, que é gritar no deserto para mostrar que as privatizações “farão bem” para o brasileiro; em seguida, citar as enormes resistências ao seu andamento, existentes em várias frentes, que certamente levaram Mattar, que esperava vender em torno de R$ 1 trilhão de ativos de estatais apenas em 2019, a abandonar o governo em meados do ano passado; por fim, comentarei a timidez dos dois projetos que o governo levou à Câmara.
É preciso deixar claro que, quando afirmamos categoricamente que a privatização de todas as empresas estatais trará benefícios para os cidadãos brasileiros, não o fazemos por apego a qualquer ideologia, mas por uma dupla imposição: a da aritmética elementar e a do princípio moral milenar de respeitar todos os que sustentam o Estado pagando impostos.
É muito importante o leitor entender que privatizar (ou desestatizar) não implica apenas aumentar as escolhas dos consumidores, mas diminuir ou cortar as escolhas dos políticos; não exprime tão somente diminuir o desperdício de gastos públicos, mas aumentar os recursos em posse do setor privado, que os aloca de maneira muito mais eficiente e produtiva; não quer dizer simplesmente melhorar as finanças públicas, mas também “piorar” as dos políticos e seus grupos de interesse; e não denota meramente diminuir a corrupção, mas aumentar as liberdades individuais e o bem-estar da população. Empresas estatais não constituem “patrimônio” de nenhum povo nem são “estratégicas”! Significam, pura e simplesmente, maior poder nas mãos da classe política e de sindicatos.
Há pencas de argumentos políticos e econômicos em favor da privatização das estatais, mas em um artigo não é possível comentar um por um. É suficiente um argumento moral, que não pode nem deve ser esquecido: Estado e coerção formam um par perfeito e coerção significa ausência de liberdade ou restrições à liberdade. Muitos não conseguem ver isso, mas tolher a liberdade de iniciativa e de escolha de terceiros é um grave vício moral, que produz efeitos danosos e que se estendem às gerações futuras. A própria expressão empresa estatal é uma contradição, já que as estatais não são empresas, porque as verdadeiras empresas são ajuntamentos de fatores de produção com o objetivo de executar atividades empreendedoras, algo que, por definição, o Estado não pode conseguir, por uma questão simples de mútua exclusividade: falar em “empreendedorismo de Estado” é como afirmar que a Lua é quadrada.
De saída, a MP da Eletrobras já recebeu 570 emendas
Não é preciso pensar mais do que um ou dois segundos para responder à pergunta por que é muito difícil privatizar empresas ditas “públicas”. Primeiro, elas são portas sempre abertas para políticos indicarem protegidos ou vassalos para cargos em sua direção. Segundo, é nelas que está o butim das obras vultosas contratadas e do dinheiro mais farto do que o distribuído aos ministérios, além da possibilidade de que sejam cometidos desvios. Terceiro, os mantras do “patrimônio público” e da “soberania nacional” são mentirosos. Quando políticos e sindicalistas gritam “o petróleo é nosso”, “o minério de ferro é nosso”, “a geração de eletricidade é nossa”, “a Caixa é nossa”, “a entrega de cartas é nossa” etc., se estão sendo verdadeiros é porque usam o pronome possessivo referindo-se exclusivamente a eles, os únicos que ganham com o arranjo, pois o cidadão não é dono efetivo de nada. Tente, por exemplo, entrar no prédio de uma estatal qualquer sem se identificar na portaria. Sem ser fotografado e sem colar na lapela do seu blazer aquele adesivo de “visitante”. Você precisaria de tudo isso para entrar em uma propriedade que fosse sua?
Um quarto argumento falacioso é a teoria dos espaços vazios, segundo a qual determinadas atividades não despertariam o interesse de empresas privadas, cabendo então ao Estado criar empresas para explorá-las. É uma infantilidade. Se nos lugares mais distantes e de difícil acesso do país não faltam sabonetes, arroz ou papel higiênico, por que faltariam serviços de carteiros, postos de combustíveis e luz? Não é a presença do Estado que se faz necessária, mas simplesmente a ausência, nesses mercados, de barreiras de entrada e saída.
O PL 591/21 que o governo enviou ao Congresso não viabiliza a privatização dos Correios, apenas autoriza a transformação da empresa em sociedade de economia mista. Além disso, considera que as encomendas do comércio eletrônico, como objetos postais, são passíveis de regulação pela Anatel, o que é outro absurdo, uma vez que se trata de um setor em franca expansão, cujas regras de mercado garantem o seu funcionamento. O PL é de uma timidez apavorante: sobejam argumentos econômicos, políticos e morais para que a ECT perca o monopólio e seja privatizada. Em pleno século 21, a anuência da seita formada por adoradores do Estado, sindicalistas e nacionalistas à manutenção desse monopólio não passa de um fetiche, pois não há fundamentos que a sustentem.
A MP 1.031/21, que trata da privatização da Eletrobras, também padece de muitos vícios. De saída, já recebeu 570 emendas de deputados e senadores, além de dois pedidos de devolução à Presidência da República, sob a alegação ridícula de que “não há relevância nem urgência no tema da privatização” por causa da pandemia. A MP, que já entrou cambaleante naquela casa da mãe joana, parece que vai sair de lá carregada. Só mesmo recorrendo a Nelson Rodrigues quando disse que o subdesenvolvimento não se improvisa, por ser uma questão de séculos.
Note-se que a MP tem sido alvo de diversas críticas: (a) a capitalização aumentará a influência do Estado no setor elétrico; (b) cria uma nova estatal para controlar outras duas; (c) estabelece a golden share, em que a União terá voz dominante sobre as questões estratégicas da empresa e os acionistas privados estarão sujeitos ao seu poder de veto; (d) impõe à Eletrobras a provisão de recursos para “políticas públicas” regionais, escolhidas por Comitê Gestor do Executivo e sem submeter-se ao orçamento da União determinado pelo Congresso; (e) robustece o modelo de subsídios pagos pelo consumidor de energia; (f) sinaliza para a concentração futura do mercado, uma vez que a Eletrobras Corporation, pelo seu grande porte e pelas características do setor, pode tornar inviável a presença de empresas competidoras.
Ambos os casos, portanto, reafirmam que, se privatizar é muito difícil, privatizar em um país que já nasceu de cima para baixo, ou seja, em que o Estado antecedeu a sociedade, ainda é façanha para Hércules. E o problema é que, sendo grego aquele herói, teríamos de apelar para seu substituto nacional, quem sabe o Saci-Pererê…
A impressão que se tem é que, por parte do governo, infelizmente — para usar o dialeto dos nossos treinadores de futebol —, está faltando “compromisso” com a privatização. Essa sensação fica ainda mais forte quando sabemos que, mesmo com a pandemia, várias empresas já poderiam ter sido privatizadas, entre elas a Casa da Moeda, o Serpro, a Dataprev, o Ceitec (Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada), a Emgea (Empresa Gestora de Ativos) e a ABGF (Agência Brasileira Gestora de Fundos Investidores e Garantias). Todas já estão prontas para ser vendidas, mas o governo não tem mostrado disposição nesse sentido. É uma pena, porque a oposição e os sindicatos rupestres, contando com a simpatia e o apoio do ativismo judicial, passam o tempo inteiro trabalhando metodicamente no sentido oposto. Vamos jogar à vera, presidente?
Leia também “O capitalismo sob ataque”
Ubiratan Jorge Iorio é economista, professor e escritor. @ubiratanjorge.iorio
Diogo Mac Cord, secretário especial para Desestatização, deu uma ótima entrevista para a OESTE há poucas semanas, mostrando como é difícil privatizar algo no Brasil, mas que está caminhando bem. Parece que o articulista discorda frontalmente dele, e acha que tudo depende do Bolsonaro… criticar é fácil
Como se fosse fácil privatizar qualquer coisa nesse país.
Votei no atual governom provavelmente votarei novamente, mas com certeza não passa pela cabeça do Presidente Bolsonaro privatizar o Estado. Essa foi a grande mentira de campanha.
concordo. Porém sem a articulaçao política fica difícil.
Esqueceu a EBC, a Valec, etc…monstros criados pelo PT
Parabéns pelo artigo. Queria tanto que este artigo fosse apenas ficção, mas infelizmente é real.
Difícil, mas vamos em frente, aos trancos e barrancos.
Vou morrer de velhinho e não vou ver nada acontecer!
Eta “brasil”. (Tem de ser com letra minúscula mesmo)
Economista Ubiratan diante de tudo que você tem assistido de boicote do Legislativo e Judiciário às importantes reformas estruturais tributaria, administrativa e politica, porque não sugeriu isso tudo ao “diplomata”(não fala palavrão) FHC que governou 8 anos com todos os conchavos políticos, domínio sobre a imprensa e excelente convívio com os tribunais.
Como idoso(75) ex tucano e outrora admirador de FHC e seus economistas do plano real, recomendo ler suas confissões nos “diários da presidência”, próprios para publicar “post mortem”. Não entendo quem o ressuscitou para combater o “governo” Bolsonaro, liderando agressivamente narrativas de ódio, com seus notáveis economistas que atualmente escrevem dramaturgias econômicas e pessoais.
Ajude-nos a sair dessa grave crise sanitária e fiscal e combata aqueles que até na PEC EMERGENCIAL, revoltados, não aceitaram conceder temporariamente privilégios que 95% de nossa população não tem, ao contrario esta desempregada ou mal empregada.