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Edição 55

O orçamento da insensatez

Ao parirem a assombração orçamentária, os lídimos representantes do povo mandaram às favas a responsabilidade fiscal. Sobra para o pagador de impostos

Ubiratan Jorge Iorio
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“Os dois pilares do governo democrático são a primazia da lei e do orçamento.”
Ludwig von Mises

Nestes tempos insólitos, nada mais parece ser capaz de nos surpreender. Somos diariamente abastecidos com relatos de decisões estapafúrdias, atitudes disparatadas e condutas bizarras, de intensidade e estranheza inaceitáveis, em um ambiente de incerteza e insegurança jurídica sem precedentes. A tarefa desgastante de buscar alguma racionalidade nesses fatos só nos fornece uma resposta, que é a carência absoluta de limites éticos e legais consagrados pela tradição e indispensáveis para conformar as ações humanas em busca de poder às requeridas por uma sociedade livre e virtuosa.

Um dos exemplos mais recentes do manicômio em que se transformou a política no Brasil é a polêmica entre o Legislativo e o Executivo provocada pelo Orçamento da União para 2021 que o Congresso aprovou no final de março. Trata-se de uma obra indecorosa, peça inacreditável de cinismo, em que os representantes do “povo” — ou seja, dos pagadores dos impostos que os sustentam — arreganham seus pontudos dentes não apenas sobre o Executivo, mas para qualquer ser, ou coisa, que ouse atrapalhar seus intentos de se locupletarem com o poder. Não importam as mortes, o pânico, a clausura e os problemas econômicos associados à pandemia, nem o momento gravíssimo que o país e o mundo atravessam, porque o que realmente os motiva são intentos individuais e corporativos.

A obra dos ilustres congressistas vem sendo chamada de peça de ficção — como a própria Secretaria do Tesouro Nacional já classificou. O orçamento aprovado no Parlamento é um retrocesso na incruenta e extremamente difícil batalha do controle das contas públicas, a tal ponto que, antes mesmo da sanção presidencial, a discussão já bateu às portas do Tribunal de Contas da União. É algo pouco comum, porque, em geral, o órgão só analisa orçamentos depois de publicados no Diário Oficial.

Enfeixam a polêmica dois elementos bem definidos e que tornam mais penoso do que o razoável o trabalho de formular e executar o Orçamento da União. O primeiro é o injustificável nível de despesas obrigatórias ou não discricionárias que engessam permanentemente o Executivo, que hoje atingem impressionantes 95% de todo o orçamento federal. São gastos que o governo não pode suprimir, nem contingenciar ou mesmo adiar, tais como folha salarial, Previdência, transferências para Estados e municípios e despesas com a dívida pública. E o segundo, vigente desde 2016, é a regra do teto de gastos, que impede o crescimento acima da inflação das despesas totais dos três Poderes da República. A norma impõe aos formuladores do orçamento o requisito salutar de que qualquer aumento nas despesas obrigatórias deve ser compensado por cortes correspondentes nas despesas discricionárias.

O núcleo da polêmica está na estimativa de despesas obrigatórias, uma vez que o Parlamento decidiu desviar parte desses gastos, remanejando-a para o custeio de emendas parlamentares. Mais precisamente, a peça aprovada no Congresso transferiu R$ 26,45 bilhões das despesas obrigatórias para as emendas, “sem nenhuma justificativa técnica robusta”, como afirmou o secretário do Tesouro. Desse montante, R$ 23,5 bilhões originalmente estavam vinculados a despesas com benefícios previdenciários, abonos salariais e seguro-desemprego.

Prevalece, entre economistas e outros observadores isentos do teatro brasiliense, a percepção de que a preocupação principal dos parlamentares foi defender — com o garbo e a valentia dos soldados de Leônidas, mas com as armas e a astúcia do Chapolin Colorado — as suas emendas, que são o seu meio de amealhar recursos subtraídos dos pagadores de impostos para projetos em suas bases estaduais e municipais. O problema é que, ao se empenharem nessa batalha, lançaram mão de expedientes extremamente criativos, facilmente identificáveis como ad hoc e sem a desejável anuência do Ministério da Economia. Há unanimidade quanto ao irrealismo da estrovenga contábil produzida, o que significa que, para tornar exequível a regra fiscal, a equipe econômica do governo será forçada, rapidamente, a executar bloqueios substanciais indesejados de despesas.

Os congressistas não aprovaram um orçamento, mas um hino ao inexequível

O Congresso, de olho nas eleições de 2022, prodigamente cortou R$ 26,45 bilhões em gastos da União para inflar as emendas previstas para 2021, aumentando-as para a inacreditável soma de R$ 46 bilhões. Para exemplificar, R$ 10,2 bilhões foram remanejados para obras do Ministério do Desenvolvimento Regional nos Estados e R$ 8,6 bilhões para ações de saúde pública, despesas de interesse dos futuros candidatos a deputado, senador, governador e presidente da República, em que se incluem, diga-se, algumas figuras do próprio governo.

Note-se que antes da aprovação do orçamento o Ministério da Economia já havia alertado para o fato de que, para impedir o estouro do teto de gastos, teria de bloquear cerca de R$ 17,5 bilhões em despesas não obrigatórias. A ser consumada a aleivosia proposta, o gasto ficará acima do teto em um valor, para efeito de comparação, equivalente ao da totalidade dos recursos para pagar o auxílio emergencial, aprovado por emenda constitucional.

Ao parirem a assombração orçamentária, os lídimos representantes do povo mandaram a responsabilidade fiscal às favas, elaborando um orçamento fake, abastecido por um arsenal de triste lembrança: contabilidade “criativa”, pedalada fiscal, transferência de despesas para a iniciativa privada e outros ardis e maquiagens para burlar o teto de gastos, liberando irresponsavelmente recursos acima dos amparados pela lei e pelas finanças do país, com o único objetivo de satisfazer desejos políticos e interesses corporativos. O estratagema usado foi voltar aos tempos de criança, sentar no chão e brincar de fazer de conta, despejando ao vento o argumento infantil de que várias despesas obrigatórias estavam superestimadas e, portanto, poderiam ser cortadas e — voilà! — redirecionadas para as emendas.

Eis alguns dos artifícios a que recorreram nossos parlamentares: (a) redução de R$ 13,5 bilhões na previsão para os gastos previdenciários (que, como vimos, são obrigatórios); (b) corte de R$ 7,4 bilhões na previsão de gastos com o abono salarial, ardil que soa como pedalada, já que transfere para o ano seguinte a realização das despesas; (c) diminuição de R$ 2,6 bilhões na estimativa de gastos com o seguro-desemprego (que, como também sabemos, não são discricionários); é um corte extremamente ilógico e imprudente, em face da esperada necessidade de aumento dessas despesas em consequência dos efeitos das políticas de isolamento do tipo “Fique em casa” defendidas por alguns governadores, muitos prefeitos e por não poucos parlamentares; (d) redução de R$ 1,35 bilhão na previsão de pagamentos de subsídios agrícolas; (e) mudança na forma de pagamento do auxílio-doença (também uma despesa obrigatória), a ser aprovada legalmente, para que as empresas passem a pagar esses valores com recursos próprios, sendo depois reembolsadas com abatimento em tributos devidos, artifício que reduziria em R$ 4 bilhões a projeção de gastos.

No último dia de março, o relator do Orçamento enviou ofício ao presidente Bolsonaro informando-o de que o Congresso decidiu “cancelar” R$ 10 bilhões previstos para emendas parlamentares no texto original. Porém, mesmo reconhecendo que o corte é significativo, a aparente demonstração de boa vontade está longe de ser suficiente para resolver a impossibilidade de cumprimento do orçamento proposto. No ofício, o senador responsabilizou o governo e disse que esses cancelamentos foram pedidos pelo próprio Executivo e se aplicam às áreas de infraestrutura, desenvolvimento regional, cidadania, justiça, agricultura, turismo e ciência e tecnologia.

Cabe lembrar, Parlamento à parte, que qualquer governo tem duas “equipes”, a política e a econômica. Espera-se que ambas atuem de modo cooperativo. No entanto, dado o cenário que se apresenta, é natural a impressão de que hoje estejam em curso alguns conflitos entre os dois grupos. A equipe econômica, tecnicamente embasada, colocou-se desde o início contra a proposta de orçamento e sugeriu que o presidente deveria, mediante vetos, reduzir o volume de emendas e, posteriormente, enviar ao Congresso um novo projeto de lei alterando a peça anterior e restabelecendo as despesas obrigatórias que foram cortadas. Além disso, propôs que as emendas remanescentes — ou seja, as que resistirem ao bom senso e à aritmética e permanecerem — sejam compensadas por cortes equivalentes em outras despesas discricionárias, que, aliás, estão no nível mais baixo da série histórica do Tesouro. Como se vê, trata-se de uma horta inteira de pepinos.

A verdade é que os congressistas não aprovaram um orçamento, mas um hino ao inexequível, um tributo à insensatez, um laudatório de desrespeito à legislação, visto que não cabe ao Congresso deliberar sobre o que é atribuição exclusiva do Executivo. Trata-se, em suma, de um monstro que vai paralisar o governo. E Deus queira que não tenha sido exatamente com essa intenção.

Mises, em seu livro Bureaucracy, de 1944, ao enfatizar a primazia da lei e do orçamento, estava alertando contra desvios da gestão democrática — exatamente os desvios que, quase oito décadas depois, estão acontecendo no Brasil: insegurança jurídica e licenciosidade orçamentária. Os cidadãos, que sustentam o Estado e seus tentáculos, já tão escravizados por medidas ditatoriais que governadores e prefeitos vêm adotando em nome da “saúde”, possivelmente serão convocados a exercer com mais esforço “patriótico” a sua função de “contribuintes”, pagando mais impostos para alimentar os animais de hábitos orçamentívoros.

Leia também “Quem paga a conta?”


Ubiratan Jorge Iorio é economista, professor e escritor. @ubiratanjorge.iorio

9 comentários
  1. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Ótimo artigo.

  2. miguel Gym
    miguel Gym

    Blá,blá,blá,blá,blá,………….

    1. Carlos Sergio Souza Rose
      Carlos Sergio Souza Rose

      Brilhante artigo. Sensacional os “animais de hábitos orçamentívoros”. Perfeito.

  3. Marcio Bambirra Santos
    Marcio Bambirra Santos

    Toda mudança é fruto da necessidade e da adaptação. Na natureza é assim, e na Economia também. O que causa espanto é a necessidade da classe política brasileira obrigar os cidadãos pagadores de impostos a serem mulas de carga, e eles se adaptarem, ad infinitum. Ótimo artigo.

  4. Maurilo Moura
    Maurilo Moura

    Sorry…. mas tudo isto ocorre por falta de uma LIDERANÇA EFICAZ no executivo. É só mais um exemplo de como as “coisas” não são “compartilhadas” neste Governo. Tenho realmente pena do Min. Paulo Guedes!!.

  5. MARCELO GONÇALVES VILLELA
    MARCELO GONÇALVES VILLELA

    Excelente artigo.

  6. Antonio Araújo Da Silva Lopes
    Antonio Araújo Da Silva Lopes

    Eu fico com ‘pena’ de Paulo Guedes; se esforça, se esforça, se esforça, pra no final os “bocudos” deputados abocanharem tudo q o povo paga de impostos. O desânimo é inevitável… O Brasil não tem jeito.

  7. Herbert de Moura Santos
    Herbert de Moura Santos

    Não sou economista, mas li e fiquei preocupado com tamanha insensibilidade dos congressistas. Espero que a área econômica junto com o executivo consiga resolver esta situação aparentemente proposital. Parece aquela situação vexaminosa e com ares de pegadinha.

    1. Marcelo Gurgel
      Marcelo Gurgel

      Com esse Conressistas não há Brasil que dê certo.

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