A firme rejeição a indicações meramente políticas para cargos no Poder Executivo foi promessa de campanha de Jair Bolsonaro. O compromisso, reafirmado quando o presidente tomou posse, em janeiro de 2019, esteve presente em frequentes discursos. As recomendações de nomes não seriam aceitas nem mesmo de aliados. Transcorreram quinze meses, uma pandemia entrou na equação política, 33 pedidos de impeachment foram apresentados ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, autorizou a abertura de inquérito para apurar se houve tentativa de interferência política na Polícia Federal. De modo que um fator importante passou a interferir no cálculo: o fator Centrão, o bloco político tido como fisiológico, que negocia votos no Parlamento em troca de cargos em ministérios, secretarias, autarquias, departamentos, fundações e, claro, a liberação de verbas para emendas parlamentares em favor das bases eleitorais. Ressurge no Brasil, portanto, o conhecido presidencialismo de coalizão.
Pelas estimativas do Planalto, em breve será possível contar com 253 deputados, quase metade dos 513.
Nas últimas duas semanas, autorizados pelo presidente, os militares iniciaram uma aproximação com líderes de partidos como MDB, PSD, PL, PTB, Avante, Republicanos, Progressistas, PSC e Patriotas. As negociações ainda estão em curso, mas o governo sinaliza boa vontade. Três objetivos estão no radar do Planalto: ter uma base no Congresso capaz de ajudar a tocar o país depois da pandemia de covid-19, manter as contas públicas em ordem e assegurar que eventuais pedidos de impeachment e de abertura de processo penal contra o presidente não prosperarão.
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[Sobre impeachment, leia os artigos de J. R. Guzzo e Augusto Nunes]
“Quando converso com alguém, de partidos outros, vocês [da imprensa] falam que estou oferecendo cargo. Me acusem, tudo bem, mas com racionalidade”, disse o presidente Jair Bolsonaro, na manhã da terça-feira 28 de abril, no Palácio da Alvorada. “Converso praticamente com todos os parlamentares. Quando falo com o pessoal do PP… Eu já fui mais de dez anos do partido. Por que que eu não vou conversar com nomes do PP, já que foram meus colegas por 15 anos? Qual o problema? Eles que votam. Se eles têm algum pecado, o eleitor do Estado é que deve tomar providência. Eu não estou aqui para julgar, condenar, acusar, pedir cassação de qualquer parlamentar.”
As indicações do Centrão vêm sendo avaliadas pela equipe técnica dos ministros-generais Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e Braga Netto (Casa Civil). O Gabinete de Segurança Institucional analisa cada nome como se fizesse uma investigação da Polícia Federal. A Controladoria-Geral da União foi incumbida de garantir mecanismos de controle para identificar atos suspeitos por parte dos futuros nomeados. E o Planalto, embora garanta que tratará os apadrinhados como aliados, também informa a disposição de exonerar rapidamente aqueles apanhados em irregularidades.
Cargos e verbas
O governo escolheu poucos articuladores para atuar no jogo com o Centrão. Bolsonaro chegou a orientar parlamentares próximos, que se tornaram interlocutores informais com o grupo. Um dos líderes do Centrão, o deputado Arthur Lira (Progressistas-AL), mantém diálogo permanente com alguns desses articuladores. Lira está de olho em órgãos como o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, cujo orçamento anual é de R$ 54 bilhões, e o Departamento Nacional de Obras contra as Secas, que administra R$ 1,1 bilhão.
[Sobre Arthur Lira, leia também a reportagem O homem que manda na Câmara]
Líder do Progressistas no Senado, Espiridião Amin (SC) é cauteloso ao falar sobre distribuição de cargos. “Não falo sobre esse assunto porque não vou indicar nenhum nome. O Bolsonaro vai dizer que não negocia, mas ele negocia, sim. A vida é feita de negociações, todo mundo negocia”, diz o senador.
De acordo com a estratégia em curso, o general Luiz Eduardo Ramos terá reuniões regulares com representantes do Centrão para tratar não apenas de cargos, mas também da liberação de emendas parlamentares.
Bom número de deputados julga as emendas que autorizam gastos em favor de suas bases tão importantes quanto as nomeações, ou até mais.
As movimentações deram munição à base bolsonarista de raiz, que agora quer mais atenção. Num café da manhã na última quarta-feira, 29 de abril, 22 parlamentares do PSL ouviram do presidente Bolsonaro e do ministro Luiz Eduardo Ramos que suas demandas serão prioritárias. Atendendo a pedidos insistentes do partido, o Executivo sinalizou que mapeará petistas e técnicos identificados com a esquerda para repassar os cargos ao PSL.
Hoje, segundo dados do Ministério da Economia, existem 10,4 mil cargos comissionados de livre nomeação, os chamados DAS (Direção e Assessoramento Superior). Muitas dessas vagas ainda são ocupadas por pessoas ligadas a partidos que não fazem parte da base do governo, como o próprio PT. Como o número exato de “infiltrados” continua um mistério, Ramos prometeu um levantamento criterioso.
MDB e DEM
Com uma das maiores bancadas do Congresso (34 deputados e 13 senadores), o MDB sinalizou ao Planalto que não pedirá cargos em troca de apoio. Em encontro com Bolsonaro, o presidente da sigla, deputado federal Baleia Rossi (SP), disse que o partido pretende se manter independente e os parlamentares votarão conforme a pauta apresentada. Rossi confirmou o compromisso de apoiar a agenda econômica do ministro Paulo Guedes.
Outro partido importante que não embarcará integralmente no governo é o DEM, que conta com 28 deputados e seis senadores. A maioria dos parlamentares apoia Rodrigo Maia. Depois dos conflitos entre Maia e Bolsonaro, uma adesão total seria inaceitável. O presidente do DEM e prefeito de Salvador, ACM Neto, esteve reunido na última semana com Bolsonaro para tentar algum tipo de acordo, mas não houve avanços significativos.
A conta do Planalto
Pela contabilidade da Casa Civil e da Secretaria de Governo, há potencial para a rápida construção de uma base consistente. Somando-se apenas as bancadas na Câmara de partidos do Centrão (Progressistas, PL, PSD, PTB, Avante, Republicanos, PSC e Patriotas) mais 22 parlamentares fiéis do PSL, será possível contar com 202 deputados. O Planalto aposta que dá para adicionar a esse número metade das bancadas do MDB e do DEM. Seriam mais 31 votos. Há ainda cerca de 20 parlamentares de partidos diversos que estão descontentes com suas siglas e podem embarcar no Aliança pelo Brasil ou defendem uma agenda semelhante à do governo federal. Na lista, estão nomes como Marco Feliciano (sem partido-SP), José Medeiros (Podemos-MT), Rodrigo Coelho (PSB-SC), Paula Belmonte (Cidadania-DF) e Rosana Valle (PSB-SP).
Assim, o governo trabalha com a perspectiva otimista de criar uma base de ao menos 253 deputados, quase metade dos 513.
No Senado, a situação é ainda mais favorável. Os partidos do Centrão somam 25 votos e o presidente Davi Alcolumbre (DEM-AP) praticamente atua como representante do Planalto, ao lado de Fernando Bezerra (MDB-PE) e do líder do governo no Congresso, Eduardo Gomes (MDB-TO). Com as articulações bem encaminhadas, o governo obteve a simpatia de pelo menos metade da bancada do MDB e de outros senadores que têm uma atuação independente de seus partidos, como Marcos do Val (Podemos-ES), Chico Rodrigues (DEM-RR), Marcos Rogério (DEM-RO) e Roberto Rocha (PSDB-MA). Eis a conta simples: com 25 do Centrão, mais 20 senadores de outras bancadas, o governo teria 45 votos — maioria simples entre os 81.
Impeachment e processo penal
Com a nova base, o governo tem condições de frear movimentos em favor de um eventual impeachment. Os congressistas sabem que não há ambiente político, social ou econômico para que um pedido de impedimento consiga avançar. Para o Centrão, o cálculo político é simples. Impeachment não se faz sem povo nas ruas, não existem condições para mobilizações populares e Jair Bolsonaro tem uma base fiel de aproximadamente 30% do eleitorado. Base esta já consolidada semanas antes das eleições de 2018. As pesquisas de intenção de voto indicavam esse piso, que cresceu com o tempo a partir da adesão de outros grupos políticos, como os chamados “lava-jatistas” (apoiadores do ex-ministro Sergio Moro), os antipetistas e os liberais de centro que não contavam com outro candidato competitivo. Ou seja: mesmo se esses grupos de eleitores de ocasião abandonarem o bolsonarismo, a base de raiz persistirá.
Outro componente importante diz respeito às eleições municipais deste ano.
Com ou sem Fundo Eleitoral, o novo presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Luís Roberto Barroso, já afirmou que não pretende adiar as eleições para 2021 por causa da covid-19 — nem os parlamentares querem isso. A partir de agosto, portanto, o Congresso entra em recesso branco e todos os políticos passam a dirigir a atenção integralmente para as disputas nas bases eleitorais. Simplesmente, não haveria tempo suficiente para viabilizar um processo de impeachment — no caso da ex-presidente Dilma Rousseff, o início se deu em dezembro de 2015, um ano não eleitoral, e decolou na retomada dos trabalhos legislativos, em 2016; foi um semestre inteiro de discussões.
Se o panorama político demonstra a inexequibilidade de um impeachment, os caminhos jurídicos para remover Bolsonaro de sua cadeira são igualmente complexos. Mesmo que sejam reunidas provas contra o presidente em alguma das três investigações em curso no Supremo Tribunal Federal — relacionadas a fake news e a declarações do ex-ministro da Justiça Sergio Moro sobre suposta interferência política na Polícia Federal —, há etapas a cumprir depois dessa fase. Primeiramente, a Procuradoria-Geral da República (PGR) teria de reunir as provas e decidir apresentar denúncia contra o presidente. Depois, Bolsonaro somente seria processado caso a abertura de ação penal fosse autorizada pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara e, em seguida, pelo plenário, com dois terços dos votos a favor. Tem mais. A denúncia, uma vez aceita, voltaria ao STF, onde teria de contar com a maioria dos votos.
Na PGR, há o sentimento de que o procurador-geral da República, Augusto Aras, dificilmente apresentará denúncia contra o presidente. E, com o Centrão já no jogo do Planalto, as possibilidades de impedimento ou condenação numa ação penal são mais que improváveis. São absolutamente remotas.
Movimento natural
A aproximação de Bolsonaro com os partidos do Centrão é avaliada como natural, dado que o sistema político brasileiro foi constituído como presidencialismo de coalizão, como avalia o advogado eleitoral e analista político Acácio Miranda. “O Poder Executivo brasileiro precisa ter força no Parlamento para poder governar. Sem uma base, as pautas não avançam. Isso não é exclusividade do governo federal. Acontece nos governos estaduais e até nos municipais”, comenta.
“O presidente Bolsonaro teve muita dificuldade no primeiro ano de mandato justamente por ir contra o modelo de coalizão, e por isso repensa seu governo. Seja qual for a ideologia do presidente, o Centrão sempre vai querer compartilhar o poder. Então, o que Bolsonaro vai fazer não é novidade”, completa Miranda.
Os chamados ministros palacianos, aqueles que despacham no Palácio do Planalto, garantem que o presidencialismo de coalizão que passa a vigorar terá semelhanças com o modelo que o país experimentou nos governos Itamar Franco (1992-1994) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), baseado em acordos legítimos e democráticos. O que se viu posteriormente, nos governos petistas (2003-2016), foi a mera compra de votos mediante operações criminosas como o Mensalão e o Petrolão.
Uma semana após a saída do ex-ministro da Justiça Sergio Moro, a sensação no Palácio do Planalto é que o governo ganhou duplamente com o episódio. O Centrão viu na saída de Moro uma sinalização favorável do governo e, do outro lado, o presidente não viu reduzir-se significativamente sua base de apoio popular. Na prática, o governo perdeu um grande ministro, mas pode ter ganhado uma grande base parlamentar. Agora, cabe ao eleitor vigilante acompanhar o xadrez político do Centrão.
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Quantos parlamentares cada partido pode entregar?
(1) A pergunta chave é: é possível o Executivo Federal brasileiro governar sem se render ao “Presidencialismo de coalizão”,quer seja JB o presidente ou outro qualquer?
(2) Uma coisa é o JB, em campanha, dizer que não se renderá ao fisiologismo; outra coisa é a dura realidade dos fatos, dentro de uma dinâmica histórica imprevisível, após ser empossado no cargo de PR.
(3) Se nao, vejamos: (a) quem previu uma Gripe Chinesa com reflexos econômicos, sociais e políticos, dentro e fora do BR, com a envergadura que estamos testemunhando hoje, apenas 15 meses após o início do novo governo?
(b) quem poderia imaginar que Moro se renderia tão prematuramente a um projeto de poder pessoal, que inclui, necessariamente, seu descolamento do Governo atual para apresentar-se como algo novo, em 2022?
(c) quem poderia antever um ativismo judicial do STF ainda mais vigoroso, descarado, como o que é praticado hj?
(4) Enfim, campanha e governo são atos bem distintos depois que a cortina do teatro se abre a o jogo começa. Na democracia moderna, qualquer q seja seu formato, ter apoio do Legislativo é crucial. Por isso que o eleitor tem de votar no seu vereador/deputado/senador na esperança de que este apoiará seu candidato, quer no município/estado/país. Mas o sistema partidário do BR é um circo. Vejam, por exemplo, alguns dos parlamentares do PSL eleitos na esteira bolsonarista (Alexandre Frota, Joice Hasselman, Delegado Valdir, etc). Uma coisa é QUERER governar sem negociar com o centrão; outra bem diferente é PODER.
(5)Que JB use uma enorme lupa para acompanhar as ações dos indicados e demiti-los quanto houver indícios de corrupção. Simples assim.
Boa análise, acho que é um campo minado essa aproximação com a velha política, o que sustenta o presidente no cargo ainda, é o apoio popular, perdendo isso ele leva o cheque mate.
Parabéns pela materia. Acabei de assinar e foi a primeira que eu li. moro no exterior e ja sinto que fiz a escolha certa em me manter informado por aqui.
A analise eh mui boa e me parece fortemente coberta por evidencias, com credibilidade. Coisa rara na imprensa atual.
Como um pedido eu gostaria de ter mais informacoes de outros bastidores: como a quase crise institucional gerada pelo Alexandre de Moraes. O que isso significa, o que poderia acontecer?
Qual a forca real do presidente? Pq eh tao difícil governar?
Pq o cara nao consigue indicar um nome sem ser atravessado?
Qual o panorama em caso de tentativa de retirada do presidente?
Obrigado, bom trabalho e parabéns!
Show de reportagem. Não se vê este tipo de analise, realmente isenta, em outros veículos de comunicação. Parabéns. Estou muito feliz em ter cancelado minha assinatura da Cruzoé/Antagonista e assinado a Oeste.
Parabéns pela reportagem!
O Colega acima, Otacílio disse tudo.
Infelizmente quando votamos em Jair Bolsonaro não queríamos esse monte de sanguessugas do Centrão babando por cargos, orçamentos e emendas. Infelizmente essa auto defesa do Presidente pode acabar saindo cara demais.
Vamos torcer pra que o governo não entre de cabeça nesse jogo político pois senão repetiremos a tal velha política, que eu por exemplo, abomino.
Ademais, outro ponto: Perdemos Sergio Moro que ao meu ver era um dos dois pilares do governo federal.
Que Deus abençoe nosso país e que não passemos por tudo isso de novo.
Posso compreender perfeitamente a natureza dos últimos acontecimentos, visto pelo lado prático da coisa. Nada no mundo funciona perfeitamente conforme o encomendado – nem casamento, nem vida profissional, nem nada, exceto o setor de serviços. Na política não é diferente. O que não pode é parte boa da coisa, quando predominante, virar minoria, perder sua razão de ser. Aí já era.
Parabéns pela reportagem!