Pular para o conteúdo
publicidade
Edição 60

Insegurança jurídica, a outra pandemia

Não pode haver Estado de Direito e economia de mercado para valer com esse STF que é o maior exterminador de confiança dos últimos tempos

Ubiratan Jorge Iorio
-

“O juiz não é nomeado para fazer favores com a justiça, mas para julgar segundo as leis.”
Platão

Tinha razão Nelson Rodrigues ao dizer que até para atravessar uma rua e chupar um picolé do outro lado é preciso ter confiança, conhecer o terreno em que se está pisando com incerteza mínima e segurança máxima possível. Pois a virtude da confiança, inspirada, entre outros atributos, pela segurança jurídica, é também uma das exigências da vida em sociedade, já que sua ausência destrói amizades, namoros e casamentos, impede trocas voluntárias, acordos e acertos e prejudica as atividades econômicas mais simples, como vender, comprar, emprestar, empregar, poupar, investir etc.

Um dos motes empregados a três por dois como espécie de declaração de boas intenções é o pomposo Estado Democrático de Direito, locução empolada e imponente e que é replicada aqui e ali, lá e acolá e — para combinar com sua “pose” — algures e alhures. É quase uma palavra de ordem, uma senha recitada para ganhar admiração, curiosamente utilizada na maioria das vezes por pessoas cujos próprios atos revelam pouco apreço pela lei e pela democracia. Os instrumentos legais e o sistema democrático pressupõem, afinal, a existência de segurança jurídica, uma qualidade que se assenta em três colunas: a da previsibilidade e qualidade das normas; a da certeza de sua aplicação; e a da baixa incidência de ações judiciais, um trio que não se encontra — para insistir na linguagem afetada — nenhures, ou seja, em nenhum lugar do Brasil.

No ano de 2020, em um total de 128 países, ocupamos a 67ª posição no ranking mundial de segurança jurídica, segundo o World Justice Project Rule of Law Index, a principal referência mundial de fontes originais e independentes que pesquisam o chamado Estado de Direito. O índice é elaborado a partir de pesquisas nacionais com mais de 130.000 famílias e 4.000 profissionais e especialistas jurídicos. Embora ocupemos uma classificação intermediária, um pouco acima da primeira metade do total de países (52% de 128), nem por isso devemos descuidar das preocupações. Primeiro, porque pioramos em relação ao ano anterior, quando ocupávamos a 58ª posição. Segundo, com certeza quase absoluta, a situação tenderá a se agravar em 2021.

Trata-se de um problema crônico em nosso país, com raízes históricas fincadas em um Estado que já desembarcou em Cabrália estabelecendo regras arbitrárias e beneficiando grupos específicos, em detrimento do bem comum. São tradicionais entre nós as incertezas quanto à aplicação de cipoais cada vez mais complicados e inextricáveis de leis e regulamentações, mutações constantes no labirinto de normas sobre tributação, tarifas sobre comércio exterior e relações de trabalho. Isso sem falar em cinco processos de impeachment abertos contra presidentes da República desde 1945 (Getúlio Vargas, Carlos Luz, Café Filho, Fernando Collor de Mello e aquela senhora estocadora do ar em movimento), em uma revolução (1930), um golpe (1937), um contragolpe (1964), um namoro curto com o parlamentarismo (de 1961 a 1963) e nas várias mudanças de moeda e “pacotes econômicos” — entre os quais cinco crimes fatais contra a ordem econômica, os congelamentos de preços cometidos entre 1986 e 1991.

Ora, segurança jurídica é a antítese desse quadro, é estabilidade política, é critério nas regras do jogo e nas relações judiciais, é ausência de mudanças arbitrárias em leis, normas e regulamentos e é uniformidade em sua interpretação. Não foi por outra razão que o ex-ministro da Fazenda tucano Pedro Malan disse que no Brasil até o passado é imprevisível, um oximoro bem a propósito.

Os efeitos da multipolaridade jurídica sobre as atividades econômicas são desastrosos, mas a nuvem de incertezas que produz não turva apenas a economia, porque se estende à aplicação das leis penais, à segurança física dos cidadãos e às suas próprias vidas. É desalentador escrever isto, mas no Brasil não existe império da lei, se a entendermos como um conjunto de normas gerais de justa conduta, claras, simples, válidas para todos, de ladrões de quintal a ex-presidentes e ministros corruptos. Regras estáveis e prospectivas certamente não surgem a partir de quimeras como as embutidas na Constituição Federal de 1988. Nascem de valores, usos, costumes e tradições aceitos pela população. Demarcam deveres e direitos. Estimulam o trabalho em vez de onerá-lo. Desestimulam o crime, em vez de abrir-lhe convidativamente portões, pórticos, portas e pernas e até imputá-lo às vítimas.

Nas atividades econômicas, a segurança jurídica é um requisito imperioso, que não garante o sucesso nem assegura a prosperidade, mas cuja falta certamente estorva o empreendedorismo e, portanto, o progresso. Quem contrata um novo funcionário, se a legislação trabalhista pode ser alterada ou interpretada de acordo com os humores de diferentes juízes? Ou compra um imóvel, caso o contrato de compra e venda seja sujeito a mudanças? Ou cria uma empresa importadora, na presença de dúvidas quanto a mudanças futuras na política comercial ou cambial? Ou, ainda, quem se atreve a abrir um estabelecimento comercial perto de uma área dominada pelo tráfico, sabendo que a polícia está sendo impedida de atuar contra os traficantes “donos da área”?

O STF contribui para a elevação do Custo Brasil

Resumindo, podemos evocar o sábio aviso de São Paulo aos coríntios (1º Cor. 14:18), de que quando só saem sons confusos da trombeta — e a sonoridade da trombeta da Justiça em nosso país tem sido uma algazarra insuportável! — nenhum soldado se apresenta para o combate, tratando de seguir a Lei de Murici e cuidar apenas de si.

É óbvio que para a economia funcionar bem, o empreendedorismo florescer e gerar prosperidade e as decisões relevantes para o crescimento econômico — que são as de longo prazo — serem incentivadas, é preciso que o Estado cumpra o seu papel de zelar pela segurança jurídica, provendo um mínimo de tranquilidade para que os atores da economia busquem seus objetivos escolhendo os meios naturais existentes. Em outras palavras, a segurança jurídica contribui para reduzir incertezas e riscos que travam o ambiente de negócios e dá suporte a decisões econômicas simples, como o que consumir, quanto investir, o que vender. Portanto, é condição necessária para a existência da economia de mercado, que é a única estrada para o progresso conhecida até hoje.

As dificuldades de interpretar normas confusas, de adequar-se a regras complicadas e escapar de imprevistos desagradáveis são tantas e tamanhas que obrigam muitas empresas a manter setores jurídicos pesados, com muitos advogados, ou a incorrer em custos de terceirização. Isso implica perda de competitividade, que se incorpora a um dos conhecidos e aparentemente eternos inimigos do nosso futuro, o Custo Brasil.

Que tal um exemplo, extraído de uma assustadora golfada de semelhantes, de como a insegurança jurídica impõe prejuízos à atividade econômica? Em março passado, a famosa rede de churrascarias Fogo de Chão foi obrigada pela Justiça a reintegrar funcionários que demitira em 2020, em consequência do impacto brutal da pandemia. Pois não é que, além do absurdo de obrigar a empresa a readmiti-los, que equivale a um estranho meter-se a dar ordens em casa alheia, a Justiça do Trabalho estabeleceu multa de R$ 17 milhões para a empresa, por “danos morais coletivos”? A decisão confirmava a liminar obtida pelo Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro em junho do ano passado, que determinara a reintegração dos funcionários. E, para completar, a sentença determinava ainda uma multa diária de R$ 10 mil por trabalhador, caso a empresa descumprisse as obrigações impostas pela interpretação de uma legislação sabidamente confusa.

A liminar de maio de 2020 baseou-se no argumento de que houve demissão em massa sem justa causa, sem pagamento de verbas rescisórias, ou apenas com o pagamento de parte delas para alguns empregados e, ainda, que não houve negociação com o sindicato da categoria, o que, para as leis trabalhistas, é irregular, pela grande quantidade de demitidos. Na nova decisão judicial, lê-se uma pérola como as que só o conceito de “justiça do trabalho”, derivado de Mussolini, pode produzir: “Considerando-se que as dispensas coletivas superam o âmbito individual de um trabalhador, atingindo uma coletividade de empregados que, junto com suas famílias, perdem sua fonte de sobrevivência, estamos falando, sim, de um ato coletivo, inerente ao direito coletivo do trabalho e não apenas do direito individual do trabalho”.

Cabem, en passant, dois comentários: o primeiro é de puro respeito ao nosso idioma, pois o “sim” da sentença é redundante (embora tolerável), além do laivo senhorial; e o segundo, como tenta ensinar incansavelmente há séculos o liberalismo clássico, é que só faz sentido falar em direitos individuais e não em “direitos coletivos”. Como dizia um velho liberal, ônibus, metrô e trem, que são os “coletivos” mais conhecidos, não possuem direitos nem obrigações, que são atributos exclusivos de seus motoristas e usuários.

É evidente que a provisão de segurança jurídica é obrigação dos três Poderes: o Legislativo precisa elaborar leis claras e sem brechas para interpretações que deem margem a filigranas jurídicas e dribles à lei, tão a gosto de alguns operadores do Direito; o Executivo deve cumprir as leis e respeitar os direitos e deveres de indivíduos e empresas; e o Judiciário deve abster-se de decisões movidas por ideologias políticas, respeitar a Constituição, ser ágil nos julgamentos e evitar a qualquer custo mudanças inesperadas de jurisprudência. E — nunca é demais dizer — os três Poderes devem ser independentes. Alô, alô, responda, responda com toda a sinceridade: alguma dessas exigências rudimentares está sendo cumprida no Brasil?

Há diversos focos de insegurança jurídica no Brasil: os estruturais, como a quantidade absurda e de complexidade estonteante de leis, normas e regulamentos e a incerteza quanto ao andamento das reformas estruturais — a administrativa, a tributária e as privatizações; os conjunturais, como as dúvidas quanto aos desdobramentos da pandemia sobre a economia e a saúde, o abre e fecha protagonizado por certos governadores e prefeitos, a soltura de criminosos contumazes e a proibição de operações policiais contra o tráfico. Porém, sem dúvida, o maior exterminador de confiança nos últimos tempos tem sido o espetáculo de ativismo jurídico encenado no teatro da Corte Constitucional. O Tribunal exibe um concerto executado por músicos sem talento, em sucessivos movimentos de invasão às atribuições dos outros Poderes, de decisões arbitrárias sobre assuntos inteiramente fora de seu conhecimento e competência, todos em crescendo e com andamento prestíssimo. A apresentação avança diante de uma plateia estupefata, a ponto de vários juristas ilustres e respeitados a classificarem como desrespeito à Constituição Federal. Algo que, em definitivo, é absolutamente inaceitável.

Leia também “Cinco vezes em que o STF desorganizou o Brasil”


Ubiratan Jorge Iorio é economista, professor e escritor. @ubiratanjorge.iorio

14 comentários
  1. Aquiles Ferreira Nobre
    Aquiles Ferreira Nobre

    O STF contribui para a elevação do Custo Brasil – só isso? -> nananinanão!

    O Certo é: O STF contribui para a elevação da injustiça no Brasil, isto comprovado amiúde e muito comentado por diversas clasess e bem divulgado, internacionalmente inclusive; logo então, não só do custo Brasil, mas custando o Brasil todo. Se perdurar o domínio da toga política justiceira, logo logo vamos comer nada e vamos perder o que é nosso!

    Quanto ao custo, se já tivemos capacidade de comprar refinarias enferrujadas, sem seque um pio do STJ, pagar por benfeitorias e mega construções em outros países, sem sequer um pio do STJ, e até bancarmos salários e custos de cachaceiro alfabetizado funcional, e de estocadoras de vento e isso com muitos uivos do STJ; o Brasil suporta desaforo financeiro, mas o povo que paga impostos não suporta injustiças de justiceiros!

    Retirando-se o que é podre do local o local fica limpo!

  2. Itamar Batista de Castro
    Itamar Batista de Castro

    Excelente artigo.

  3. ANTONIO DE PADUA CRUZ045775823868
    ANTONIO DE PADUA CRUZ045775823868

    Que maravilhosa surpresa tive ao ler pela primeira vez o Ubiratan Jorge Iorio na Revista Oeste que assinei hoje. Devo admitir que os nomes do Augusto Nunes e do J. R. Guzzo, além de recomendações de amigos é que me trouxerem aqui. Mas o Ubiratan me ampliou a visão sobre o “Estado Democrático de Direito”, esta joia que nos presentou a Constituição Cidadã. Esplêndido artigo e com um arremate singular: “Alô, alô, responde, se gostas mesmo de mim de verdade. Alô, alô, responde, responde com toda a sinceridade “, cantavam Mário Reis e Carmen Miranda em 1.934, nesta deliciosa marchinha. Nós agora em 2022, também perguntamos aos nossos dirigentes: “Alô, alô, respondam…”.

  4. Fernando B. Monte-Serrat
    Fernando B. Monte-Serrat

    Parabéns pela corajosa “fotografia” do judiciário nestes dias. A suprema corte brasileira chegou ao “fundo do poço” de sua história, agindo mais como uma agência de militância política do que como guardiã da Constituição, que deveria ser. Contra fatos não há argumentos.

  5. Marco Aurélio Minafra
    Marco Aurélio Minafra

    A imagem do elefante-equilibrista é de uma crueza impressionante!
    Eis ai a “segurança jurídica” a que estamos submetidos.
    Ativistas políticos travestidos de luminares do Estado de Direito!
    Pobre Brasil!!!!!
    No seu texto, Augusto Nunes escalou o time do STF. Esse time já foi rebaixado à Série Z.

  6. Eloi
    Eloi

    Essa Revista Crusoé é a mais verdadeira que já li na minha vida. E olha que fui assinante da Veja, hoje em dia um lixo, por mais de 30 anos.

  7. Wilson Ferreira
    Wilson Ferreira

    Tem que ser feito uma reforma do STF a bem do nosso país. Começando pela substituição de pelo menos 7 ministros; Tem-se que redefinir atribuições do STF. Deve ser apenas uma corte apenas constitucional, como nos Estados Unidos. Não deve ser puxadinho dos Comunistas, Socialistas, Facistas e de todos os oposicionistas ao Governo Bolsonaro, que perdem no Congresso e recorrem ao STF o qual sempre lhes tem favorecido.

  8. Caubi Iram Ataide De Oliveira
    Caubi Iram Ataide De Oliveira

    No meu simples entendimento, o STF vem se comportando em total desrespeito às garantias basilares para uma eventual aplicação do artigo 142 da Constituição Federal: a garantia da Lei e da Ordem. Como vemos já demora o Poder Executivo em restabelecer a Lei e a Ordem em nosso país.

  9. Sebastiao Márcio Monteiro
    Sebastiao Márcio Monteiro

    Texto irretocável. Um triste retrato de nossa realidade. A barafunda que infelizmente sempre foi nossa companheira, tornou-se esse inferno em que vivemos hoje, fruto da atuação desmedida e tendenciosa de uma corte que não merece o título de suprema.

  10. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Excelente artigo.

  11. José Carlos Falcão De Andrade
    José Carlos Falcão De Andrade

    Todo crime tem um beneficiário. Toda essa zona promovida pelos de sempre no Brasil desde sempre só serve aos mesmos de sempre. Esse é o plano, portanto. A nós cabe baixar as orelhas e pagar essa conta. A saída? Só uma dose maciça de Libertarianismo pode nos tirar dessa escravidão.

  12. MARCELO GONÇALVES VILLELA
    MARCELO GONÇALVES VILLELA

    Texto irretocável.

  13. Mauro Maretto
    Mauro Maretto

    Infelizmente o STF se tornou, praticamente, o único poder no Brasil. Ele pode tudo. Manda prender, manda soltar. Principalmente soltar bandido e prender inocente.

  14. Antonio Daniel Cavalcante Guimarães
    Antonio Daniel Cavalcante Guimarães

    Um retrato do Brasil atual, um texto pra ler, refletir e compartilhar.

Do corre ao nocaute, Mirelle Moschella - Apresentadora Anterior:
Mirelle Moschella: ‘Tinha certeza de que não ia morrer do câncer’
Próximo:
Carta ao Leitor — Edição 213
Newsletter

Seja o primeiro a saber sobre notícias, acontecimentos e eventos semanais no seu e-mail.