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Foto: Reprodução/Revista Oeste
Edição 67

Deixem os Jogos Olímpicos em paz

Separar esporte e política é tão importante quanto separar Estado e igreja ou governo e economia

Ana Paula Henkel
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Desde os meus 8 anos, idade da primeira experiência com o sentimento olímpico, quando assisti à Olimpíada de 1980, pus na cabeça que um dia eu representaria o Brasil nos Jogos Olímpicos. A cerimônia de despedida em Moscou, com o inesquecível ursinho Misha chorando numa coreografia feita pelo próprio público nas arquibancadas, foi apenas o começo de um longo namoro e casamento com o esporte.

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Décadas se passaram, a Olimpíada de Los Angeles, em 1984, nos deu a geração de prata no vôlei masculino num jogo inesquecível, exatamente contra os donos da casa. Veio Seul, em 1988, e nossa seleção feminina começou a ganhar traços de protagonismo. Barcelona, em 1992, foi a minha primeira Olimpíada e até hoje não sei explicar o que senti no desfile de abertura no maravilhoso estádio olímpico em Montjuïc, onde vimos a pira olímpica ser acendida com uma flecha de fogo. Então chegou 1996, e Atlanta nos colocou na história com a primeira medalha olímpica para o vôlei feminino. Ali, na encruzilhada entre aposentar e continuar, ainda consegui esticar até Atenas, em 2004, e Pequim, em 2008.

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E por que essa volta olímpica (com o trocadilho mesmo)? Porque, por mais que um atleta olímpico apaixonado pelo seu esporte e pelo seu país enumere quantas vezes participou de uma Olimpíada, todas são únicas. A idade pode trazer certa maturidade técnica, mas o frio na barriga, o dia que aquela mala de uniformes com a bandeira do Brasil chega à sua casa, o orgulho que é andar pela Vila Olímpica com a nossa bandeira estampada… ouvir nosso hino… tudo isso, por mais experiente que você seja, é único e traz — sempre — a sensação de “primeira vez”. Depois do nascimento do meu filho, ainda não encontrei nenhum sentimento parecido com o de estar no pódio e ouvir nosso hino.

Nessas andanças pelo mundo durante quase 25 anos no esporte, conheci muita gente, fiz bons amigos e mergulhei em outras culturas. Cada uma com sua característica. Mas ali, nos Jogos, por mais apaixonado que você seja pela Itália, pela Grécia ou pelos Estados Unidos, o sentimento de amor profundo pelo seu país — com todos os defeitos que ele tem — é insuperável. E isso não é só do brasileiro, é geral. É como se estivéssemos numa guerra sem violência, sem armas, sem animosidade, mas todos de prontidão em seus exércitos para defender seu país.

Um dos pontos marcantes nesses anos de estrada no esporte sempre foi o orgulho que os norte-americanos tinham por sua pátria, sua bandeira, seu hino. Vê-los orgulhosos de seus símbolos me fez mais brasileira, acredite. Também queria que todos, e principalmente eles, vissem o meu orgulho pelo Brasil. O orgulho mostrado por aqueles ianques era incômodo, bonito, irritante, hipnotizador. Mas foi apenas quando me mudei para os Estados Unidos que pude entender o que era aquilo. Estudei profundamente a história norte-americana e ficou claro. Nada veio fácil para os norte-americanos. Tudo foi construído com trabalho, vidas, guerras, lutas, conflitos e muito sangue derramado. Até uma guerra civil houve, quando uma parte do país disse não à imoralidade da escravidão. É, até hoje, a guerra que mais tirou vidas norte-americanas.

Gwen Berry atraiu a atenção de todos após virar as costas à bandeira norte-americana durante o hino nacional

Foi assim que pude entender que o respeito que tinham por mim, ou por qualquer um que chega a este país e trabalha duro, conectava-se com o orgulho que sinto pelo meu país de origem, minha medalha olímpica e minha trajetória de anos de muito trabalho até ela.

Mesmo nesse clima de alta competição, o esporte — em especial durante os Jogos Olímpicos — sempre foi um campo no qual diferenças são abandonadas. Qualquer desavença política ou religiosa era tratada como um figurante, que mal aparece num filme bom. Roteiro que, de quatro em quatro anos, deixa histórias de superação e enredos dramáticos de derrotas e vitórias espetaculares. Inimigos geopolíticos dão ao mundo esperança de paz durante aquelas duas semanas de “trégua”. Mas o que mudou? Infelizmente, algo vem atingindo a alma olímpica, o espírito de que o orgulho que pode levar a tantas guerras também pode semear a paz. E isso vem sendo demonstrado da maneira mais estúpida possível.

Com todos os ingredientes de uma nação próspera — próspera porque é livre —, vivendo no país mais democrático do mundo e com riquezas em abundância, é difícil entender o ódio que muitos desta geração afetada têm aos Estados Unidos. A América não é perfeita, nenhuma nação é, mas é livre, é democrática, é viva, é rica em recursos para o real progresso do indivíduo.

Depois de um ciclo político que trouxe a banalização da história e suas palavras, a ressaca desse movimento é a politização de tudo. O esporte já dava sinais de que não iria escapar à “idiotização” política, com frases repetidas como as de papagaios e atletas de importantes campeonatos como a NBA ajoelhando-se — literalmente — para a palhaçada do politicamente correto, e para os sequestradores de almas que precisam entrar em algum balaio coletivista. Agora, essa nova repulsa parece chegar à esfera olímpica.

Depois de vermos atletas da NBA e NFL ajoelhando-se durante o hino nacional norte-americano (e testemunharmos as respectivas audiências despencarem), e empurrando a ideia desmiolada a outros países, atletas que participarão da Olimpíada de Tóquio, que se inicia em 23 de julho, começam a mostrar que os protestos políticos podem chegar aos campos e arenas no Japão. O Comitê Olímpico Internacional atualizou suas diretrizes para os Jogos, e as recomendações sobre a Regra 50 do COI, totalmente endossadas pelo Conselho Executivo da instituição juntamente com a Comissão de Atletas, afirmam que “nenhum tipo de manifestação ou propaganda política, religiosa ou racial será permitida em quaisquer locais ou outras áreas olímpicas”. O COI promete punição a quem infringir essa regra. A ver.

Gwen Berry entrou para a equipe olímpica norte-americana no arremesso de martelo. Depois de terminar em terceiro no último fim de semana, atrás de DeAnna Price e Brooke Anderson, ela atraiu a atenção de todos ao virar de costas para a bandeira norte-americana durante a execução do hino nacional. Ela então colocou sobre a cabeça uma camiseta com os dizeres “atleta ativista” enquanto era tocado The Star-Spangled Banner. Em meio ao escrutínio público e comentários de que Gwen não deveria representar os EUA nos Jogos, ela declarou: “O hino não me representa. Nunca representou. Meu propósito e minha missão são maiores do que o esporte. Estou aqui para representar aqueles que morreram devido ao racismo sistêmico”. O racismo é uma pauta justa na sociedade. Mas o racismo real, não o “racismo sistêmico” que atletas negros milionários acham que existe, “enraizado” em todo homem branco na América. América esta tão racista que colocou um presidente negro na Casa Branca por oito anos.

Vários legisladores democratas e republicanos, assim como veteranos militares, pediram que Gwen fosse removida da equipe olímpica, citando que o único propósito de um atleta olímpico é representar seu país. A alegação dos veteranos de guerra é que, se Berry está tão envergonhada da América, então não há motivo para ela competir pelo país. Apesar de alguns confetes da mídia militante, a atleta também recebeu fortes críticas de atletas negros, como o ex-jogador da NFL Jack Brewer: “Só penso como é crescer como uma criança na escola, quando você ouve o hino nacional, o sentimento que ele dá em você e o respeito que você tem. A bandeira não deve representar a perfeição, mas a bandeira é a família — a família norte-americana —, o país que compartilhamos. Todos estão tentando trabalhar pelo mesmo objetivo. Isso é que seu país representa. É como entrar em sua casa e dar um tapa na sua mãe. Isso não faz sentido. Eu não entendo”.

Faço uma distinção óbvia entre o direito de qualquer esportista de se manifestar politicamente, o que todos podem (sou a primeira a apoiar), e a invasão de agendas político-partidárias em competições esportivas, dividindo um espaço reservado para a união de atletas, torcedores, culturas, povos e nações. Tenho certeza de que o saudoso Barão de Coubertin, pai dos Jogos Olímpicos da era moderna, se revira no túmulo toda vez que o espírito olímpico e esportivo é sequestrado por políticos oportunistas, dirigentes esportivos e atletas desmiolados — muitas vezes podres de ricos —, induzidos ou mal informados, que usam as competições, um território pacificador, como arma puramente política.

Pela imensa força e capacidade do esporte de propagar mensagens, competições e atletas não ficam imunes de ser usados como veículos para pautas políticas e ideológicas. Tem lá sua ironia uma ex-esportista que agora estuda e escreve sobre ciência ser contrária à politização do esporte. Mas acredite: separar esporte e política é tão importante quanto separar Estado e igreja ou governo e economia.

Preservar um dos últimos territórios de real e profunda congregação — sem politização — é preservar as boas sementes para um futuro que germinará o diálogo. Deixem os Jogos Olímpicos em paz.

Leia também “A fraqueza explícita diante dos adversários”

27 comentários
  1. Laura Teixeira Motta
    Laura Teixeira Motta

    Ana Paula, que bom poder contar com a sua mente e o seu empenho por uma sociedade decente. Nossa gratidão e admiração eternas.

  2. MARCELO GONÇALVES VILLELA
    MARCELO GONÇALVES VILLELA

    Excelente argumentação.

  3. Fabio Augusto Boemer Barile
    Fabio Augusto Boemer Barile

    Deveriam ter banido essa idiotinha da delegação norte-americana. Com supremacista racial, seja qual cor tenha, não se deve ter muita conversa não.

  4. Jorge Luiz Soares Ribeiro
    Jorge Luiz Soares Ribeiro

    Excelente artigo. A politização do esporte competitivo, principalmente nos Jogos Olímpicos, é nefasta e poderá levar ao fim da atividade. O estrago já se iniciou com a participação de atletas trans em competições femininas, uma verdadeira excrescência. Parabéns pela coragem de materializar o que pensam os verdadeiros atletas, ao contrário dos ativistas “politicamente corretos”..

  5. Cris Vigato
    Cris Vigato

    Excelente! Não entendo essa vergonha esse desdém c a bandeira, com o hino… até com a camisa de uma seleção.

  6. Daniel
    Daniel

    Boa reflexão do artigo. Para exemplificar ainda mais essa questão errada de política e esporte, transcrevo o excerto que se segue:

    “Durante duas semanas do mes de agosto de 1936, enquanto aconteciam os Jogos Olímpicos de Verão, a ditadura nazista de Adolf Hitler camuflou seu carater racista e militarista. O regime usou os Jogos Olímpicos para encantar espectadores e jornalistas estrangeiros com a imagem de uma Alemanha pacífica e tolerante.”

  7. Paulo Alencar Da Silva
    Paulo Alencar Da Silva

    Ana, você menciona no texto: …”alma olímpica”… e …”dar um tapa na mãe”… A reflexão deste sexagenário é que o problema está é na “alma humana”. Ela está se deteriorando. Quando era jovem lembro-me ser impensável uma ofensa como queimar ou rasgar a bandeira de seu país, ou desrespeitar seu hino, ou ofender a Deus (mesmo para os que nele não acreditavam), mais grave ainda seria desrespeitar a figura materna. O mais cruel dos criminosos apanhava de chinelo de sua mãe e ficava quieto. tudo isso na verdade resumia uma virtude e fundamento essenciais para o ser humano: o “Respeito”! Sem ele a alma se deteriora. É isso que vem acontecendo. Algumas pessoas das chamadas minorias, representadas por negros ou homossexuais e outros tantos, acham que injustiças históricas que muitas vezes nem os atingiram diretamente, mas ao grupo ao qual pretendem demagógica e hipocritamente representar (mas de fato não o fazem), significaria sua permissão para a perda total de respeito a tudo. Agora a “moda”é ofender ao Deus dos outros, rasgar bandeiras, rejeitas ensinamentos milenares sem nenhum fundamento, desrespeitar os hinos e passará a ser bater na mãe muito em breve. Daí pra pior. Se isso é progressivo, prefiro voltar pra cavernas.

  8. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Ótimo artigo. Parabéns Ana.

  9. Nelson de Carvalho Filho
    Nelson de Carvalho Filho

    A sua análise Ana tem minha total simpatia, e quem escreve este comentário é alguém que chora em filmes que tratam das difíceis conquistas do esporte. Deixem a política longe diasso!

  10. José Luiz Foureaux de Souza Júnior
    José Luiz Foureaux de Souza Júnior

    Bravo! Atleta e cidadã ciente do que pensa e escreve! Parabéns!

  11. Adelmo Sérgio Pereira Cabral
    Adelmo Sérgio Pereira Cabral

    Parabéns

  12. Marco Aurélio Minafra
    Marco Aurélio Minafra

    Obrigado querida Musa.
    Pela emoção e pelas lágrimas de orgulho em tê-la como referencial de leitura!!!
    Nossa Senhora Desatadora dos Nós te ajude a desenrolar os nós que a esquerda nos deu!!!

  13. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    O mundo está muito louco, e essa garotada querendo ser ativistas políticos sem saber porque e para o que.

  14. Nilson Octavio Campos Lobo E Silva
    Nilson Octavio Campos Lobo E Silva

    Muito bom! Parabéns e cada vez mais gosto do que escreves. Clareza, precisão e coerência!.

  15. Fabio R
    Fabio R

    Ana ótimo texto! Ele se junta a sua fala sobre homens trans no esporte.
    Esse maldito ativismo, está destruindo a sociedade.
    O alvo agora é o sexo masculino, ou melhor, a masculinidade.
    Tempos inexplicáveis!
    Mas como apoiadores Multi-Bilionários e controladores da economia e da liberdade…

  16. Ernesto Quast
    Ernesto Quast

    Parabéns pelo texto. Ana, gosto muito da forma como se expressa, ressaltando os pontos fortes e resgatando os valores e amor à nossa pátria, com tantos problemas, mas muito mais virtudes.

  17. Claudia Maria de Azevedo Soares Baptista
    Claudia Maria de Azevedo Soares Baptista

    Parabéns pelo texto, Ana!!! Um assunto lindo e bem sábio por quem já passou por esses momentos!
    Abraços carinhosos.

  18. Antonio Rodrigues
    Antonio Rodrigues

    Grande bostha essa atletinha americana. Por que esses americanos ressentidos não vão embora para um país que julguem ser o seu???????

  19. richard luiz marguti
    richard luiz marguti

    Ana Paula
    perfeito texto!!
    Lembro somente o extremo da blendagem esporte X politica…..a triste imagem de Munique 1972!!!
    Aos 11 anos gravei indelével registro na mente infantil que me acompanha até hoje ao analisar atitudes extremas e cheias de justificativas!!!!….

  20. Luiz Antônio Alves
    Luiz Antônio Alves

    Amada atleta, colunista e pensadora. Eu e a Sandra mandamos um abraço bem forte. Parabéns, mais uma vez pela lisura e inteligente texto. Sou contra preconceitos em geral, mas na verdade eles não são estudados com profundidade sem ter alguém querendo cortar o pescoço quem pensa pelo bem das pessoas. Aqui na região em duas cidades foram eleitas duas prefeitas negras. E em duas cidades onde a população branca (de origem germânica) corresponde a 95% da população! Ou seja, existem regiões dom diferentes traços culturais que não podem se incluídas na soturna generalização dos palpites furados. Infelizmente, estamos passando por momentos incríveis e o inesperado nos ataca à retaguarda traiçoeiramente. Veja o que está acontecendo no judiciário brasileiro. É inacreditável. E como nos EUA, a ignorância e a má fé rondam até mesmo o esporte que deveria ser palco de ideais humanistas e de congraçamento. Acompanhamos também tua queixa sobre os trans disputando competições de forma privilegiada. Fiz aniversário dia 1º e com 72 anos não esperava assistir de atletas posições tão cheias de ódio.

  21. Alexandre Cury
    Alexandre Cury

    Excelente texto, além de rever os vídeos das competições que me emocionaram muito. Totalmente pertinente esse tema. Hoje a problematização e o politicamente invadiram todos os espaços. O mundo está bem chato… Tenho esperança quando vejo iniciativas positivas como a dessa revista, parabéns a todos!!!

  22. Raniere dos Santos Machado
    Raniere dos Santos Machado

    Baita texto! Excelente.

  23. PAULO GOUVEA
    PAULO GOUVEA

    Berry troca gratidão por ressentimento, virtude por lacração, e joga no lixo a trajetória atlética de uma vida. Em vez de representar a dignidade preferiu os tolos. Felizmente, o esporte é maior do que isso…

  24. Renato Rodrigues Dos Santos
    Renato Rodrigues Dos Santos

    Mais um texto lindo da musa Ana Paula Henkel que foi uma grande jogadora de vôlei d o Brasil e hoje é uma das melhores analistas da política brasileira e americana.
    Como alguém pode virar as costas para o hino de uma nação que dá oportunidades pra todos que lá nascem e residem? Essas pessoas não sabem o que é viver em países comunistas, dominados pela corrupção e restrição de liberdade. Todos os países tem seus problemas, a Suíça deve ter os dela, que tal ser mais adultos e ajudar a resolver esses problemas com inteligência?

  25. Lia Crespo
    Lia Crespo

    Até me emocionei com esse texto lindo da grande, querida e maravilhosa Ana Paula.

  26. JOSE GERALDO VIANA
    JOSE GERALDO VIANA

    A revista Oeste levanta junto à rede e Ana Paula corta. É ponto do Brasil! Parabéns pela qualidade da escrita, postura sincera e corajosa.

  27. Raul José De Abreu Sturari
    Raul José De Abreu Sturari

    Uma vez mais, parabéns, Ana Paula.
    Seu patriotismo é real. E seus comentários são perfeitamente lúcidos.
    Neste artigo, compartilho todos, sem exceção.

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