Pular para o conteúdo
publicidade
The Taliban’s Message to President Biden/VICE on SHOWTIME | Foto: Reprodução
Edição 73

A tragédia do Afeganistão envergonha o Ocidente

A violenta instabilidade que agora destrói o país é resultado daquela fatídica invasão de 20 anos atrás

Tim Black, da Spiked
-

Os Estados Unidos devem concluir sua retirada militar do Afeganistão em 11 de setembro. Muitas tropas norte-americanas, assim como as de nações aliadas, já deixaram o país. O resultado é totalmente previsível — o Talibã avançou. Só nas últimas semanas, ele tomou o poder em mais de 100 dos 407 distritos afegãos, o que significa um controle sobre a maioria do país (55%). É verdade que boa parte do território ocupado tem baixa densidade demográfica, são zonas predominantemente rurais, e em algumas áreas as forças do governo revidaram. Mas não há como disfarçar o fato de que o Talibã, destronado pelos Estados Unidos duas décadas atrás, está mais uma vez em ascensão.

E o Talibã não tem intenção de deixar como está. Ele agora está cercando grandes cidades. Os Estados Unidos ainda estão fornecendo apoio aéreo para as forças do governo, mas é improvável que isso dure muito tempo.

E depois?

As forças militares e policiais afegãs parecem incapazes de oferecer muita resistência, com certeza não sem o apoio militar internacional. E existem relatos de que as tropas do governo, desmoralizadas e sem liderança, já abandonaram muitos postos avançados e muitas bases. O presidente Ashraf Ghani impôs toque de recolher de um mês, mas parece improvável que isso vá inibir as forças do Talibã, que não é conhecido por sua disposição em obedecer a decretos do governo.

Cena do documentário Afghanistan: A Journey Through Taliban Country (2021) | Foto: Reprodução

Na ausência de forças estatais afegãs, foi noticiado que antigos senhores de guerra começaram a mobilizar milícias privadas, com o próprio governo chegando a direcionar fundos para elas. O espectro de um retorno do tumulto pós-soviético do começo dos anos 1990, quando o Afeganistão foi destroçado por facções beligerantes, incluindo o Talibã, parece cada vez mais provável.

É possível que já esteja acontecendo. De acordo com a ONU, quase o dobro dos civis afegãos foram mortos ou feridos neste ano em comparação com o ano passado. Fatalidades em maio e junho apenas chegaram ao nível mais alto — acima de 1.600 — para o período desde que a ONU começou a registrar essas estatísticas em 2009.

Para setores das forças militares e políticas do establishment dos Estados Unidos e do Reino Unido, estimulados, como sempre, por intervencionistas entusiastas da imprensa liberal, a guerra civil no Afeganistão é uma prova: uma prova da loucura que significa sair do país. E uma prova, no fim das contas, da sabedoria por trás da invasão.

A mídia está em polvorosa. “A retirada colocou o Afeganistão de volta no caminho do terror, do caos e da desintegração”, afirma um editorial do Observer. O Financial Times afirmou que as potências ocupantes do Ocidente até agora precisam continuar lá se quiserem cumprir sua “obrigação moral para com a população do Afeganistão”. E a CNN citou o político francês Charles-Maurice de Talleyrand: “Isso é pior que um crime, é um disparate”.

“Isso”, os defensores da invasão dizem, apontando para a situação em declínio no país, “é a razão por que os Estados Unidos e seus aliados precisam ficar no Afeganistão”. Eles fazem a ressalva de sua defesa daquilo que na verdade é uma ocupação dizendo que não precisa durar para sempre — só o suficiente para que a paz seja alcançada.

Mas isso é uma ilusão. O que está acontecendo no Afeganistão na realidade não é resultado da retirada das forças lideradas pelos Estados Unidos. Não, é resultado da entrada das forças lideradas pelos Estados Unidos — fruto da invasão do Afeganistão 20 anos atrás.

Porque foi essa ação — justificada de início como uma tentativa de retaliação e eliminação da Al-Qaeda, antes de se tornar uma ocupação por tempo indeterminado — que tornou o conflito quase inevitável.

Os Estados Unidos primeiro destruíram o regime opressor, mas coeso, do Talibã, ele próprio resultado da guerra civil dos anos 1990. E então tentaram impor um novo regime ao país, trazendo Hamid Karzai de paraquedas para governar o Afeganistão à imagem do Ocidente.

Deveria ser uma democracia constitucional. Deveria haver um Parlamento, eleições, uma extensão da franquia e das tão alardeadas melhorias nos direitos das mulheres.

O que está se desintegrando é o Afeganistão que o Ocidente tentou impor ao povo afegão

Mas o problema, como um crítico astuto colocou, é que esse governo, e sua sede em Kabul, simplesmente não tinha “legitimidade em escala nacional”. Ele foi uma imposição estrangeira, não uma criação popular. Os bilhões de dólares injetados do incipiente aparelho de Estado afegão, supostamente fortalecendo sua infraestrutura de segurança e reforçando o Exército, só ilustraram sua fraqueza fatal — de que isso não era nada sem o apoio contínuo do Ocidente.

Então ele poderia continuar, como aconteceu com Karzai e depois com Ghani no comando, enquanto os Estados Unidos e seus aliados o apoiassem. Enquanto eles o financiassem. Enquanto as forças internacionais o defendessem. Mas sem o Ocidente para sustentá-lo, suas fraquezas políticas e estruturais seriam expostas para todos verem.

E é isso que está acontecendo agora. A saída ocidental do país retirou a principal fonte de força e legitimidade desse Estado afegão. E permitiu que o Talibã, que na verdade prosperou na ilegalidade do que é apresentado como um Estado não afegão, preenchesse o vácuo de onde as forças ocidentais costumavam estar.

Aqueles que argumentam que a atual desintegração do Afeganistão mostra por que o Ocidente precisa continuar lá não entenderam. Porque o que está se desintegrando é o Afeganistão que o Ocidente tentou impor ao povo afegão. Ele é fruto da força, e só poderia ser mantido pela força. Não haveria como manter um status quo pós-2001 no Afeganistão que não envolvesse sua ocupação interminável. Uma guerra eterna de fato.

O que estamos vendo agora na violenta instabilidade que está destruindo o Afeganistão não é a loucura da retirada, mas a barbaridade da invasão. Assim como o Iraque, a Líbia e a Síria antes dele, o Afeganistão deve ser uma denúncia do intervencionismo ocidental.


Tim Black é colunista da Spiked.

Leia também “A democracia estrangulada em Hong Kong”

14 comentários
  1. Daniel
    Daniel

    Se está provada a incapacidade do ocidente em entender e, consequentemente, intervir no Afeganistão, então tal entendimento só se apresentará depois que o próprio Afeganistão passar por uma revolução interna (guerra civil?). Assim teremos de assistir as mortes e sabe-se lá o que mais vier.

  2. Ivanilde Freitas
    Ivanilde Freitas

    Poderiam pelo menos tirar as crianças e as mulheres desse tormento…..

  3. Ernesto Quast
    Ernesto Quast

    Em tempo: imprensa brasileira preocupada com a falta do uso de máscaras pelo povo afegão.

  4. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Os Estados Unidos tem obrigação moral de salvar esse povo

  5. Sérgio Tomaz Schettini
    Sérgio Tomaz Schettini

    Essa é a cultura deles, nada a ver com sistema democrático que dá certo na parte mais avançada do mundo Ocidental. Elas querem um homem forte que governe obedecendo os princípios islâmicos radicais e fundamentalistas. É o que a maioria dos afegãos deseja.

  6. Agnelo A. Borghi
    Agnelo A. Borghi

    A onu deveria chamar a Dilma pra um papo cabeça com o Talibã.

  7. Alysson Licoun Pinheiro Costa
    Alysson Licoun Pinheiro Costa

    Em média o que acontece a algum povo é fruto de sua própria atitude, mas algumas consequências podem ser bem piores dependendo da “ajuda externa” que vier. Tem país que muito ajuda quando não atrapalha. Tem país que é ingênuo historicamente para acreditar no discurso de qualquer um que diga ter os mesmo valores do ocidente.

  8. José Paulo Da Fonseca
    José Paulo Da Fonseca

    De Saigon em 1975 a Kabul em 2021 os pacifístas continuam com a mesma cantilena.Tudo é culpa dos EUA e do Ocidente.

    1. Renato Perim
      Renato Perim

      Comentário mais lúcido. Parabéns José Paulo.

  9. Andre mendonça
    Andre mendonça

    Da mesma forma que ninguém mudará a opção da América Latina pelo populismo atrasado, pela mediocridade e a esperteza tola, o Afeganistão continuará a ser o que sempre foi: um país tribal, atrasado, dividido, dominado por uma religião opressora e irracional. Como dizia Churchill sobre os Balcãs, aquilo ali não vale a vida de um único soldado. Que eles se f….

  10. marcos de bem guazzelli
    marcos de bem guazzelli

    Só morreram 1.600 lá este ano, e isto é um recorde? Vamos mudar para o Afeganistão, afinal aqui morrem dezenas de milhares todos os anos.

  11. Teresa Guzzo
    Teresa Guzzo

    Acredito que esses países que foram invadidos pelo ocidente,nunca mudam sua essência cultural e política.O ocidente não consegue mais fazer patrulhamento eterno para que se transformem em democracias com eleições limpas.Problema complexo,diferente de guerras mundiais.Afganistao será sempre uma ameaça aos países vizinhos e outros.Essa é a dura realidade.

    1. Alex Camargos
      Alex Camargos

      Antes de tudo. É um processo normal e seletivo. Queiram ou não. Da mesma forma que o ocidente Americano é a formação de quem fugiu de guerras e opressão a 500 e deve tentar manter este espírito, está região central a mais de 3 mil anos vivem eata história enraizada em sua cultura. A interferência do Ocidente, seja das Américas ou Europeu só serviu aos seu próprios interesses. Mas este espaço não vai permanecer como uma lacuna, o Oriente na figura da China vai ocupar este espaço. Esteja certo. O recuo dos EUA principalmente já é uma estratégia bem mais profunda, de abertura do espaço para a tomada daqueles que os financia.

      1. Marcos Marinho Santiago De Jesus
        Marcos Marinho Santiago De Jesus

        Só espero que que os EUA e seus aliados sobrevivam aos próximos atentados terroristas para retornarem o mais rápido e com mais força de onde nunca deveriam ter saído…

Anterior:
Raquel Gallinati: ‘Fui a primeira mulher a representar os delegados de São Paulo’
Próximo:
Carta ao Leitor — Edição 248
Newsletter

Seja o primeiro a saber sobre notícias, acontecimentos e eventos semanais no seu e-mail.