É de conhecimento comum que a educação brasileira quase sempre figura nas últimas posições dos indicadores internacionais referentes à competência de transmitir conhecimento acadêmico, seja no nível básico, fundamental e médio, seja no superior. Uma recente pesquisa do Instituto Paulo Montenegro (IPM) e da ONG Ação Educativa apurou que apenas 8% dos estudantes do ensino médio com idade para trabalhar são capazes de interpretar textos e gráficos, bem como elaborar textos de complexidade razoável. Em outro indicador, gerado através de uma pesquisa do IMD World Competitiveness Center, que avaliou o grau de competitividade de 64 nações, incluindo aí a área educacional, o Brasil apareceu na posição 64, atrás de países como Botsuana, da África Austral. Já no Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), nas avaliações de leitura, matemática e ciências, realizado em 77 países, com alunos na faixa etária de 15 anos, o Brasil ficou em 57º em 2019. Em 2015, estava em 59º.
As causas para tais resultados frustrantes podem estar em vários fatores particulares da nossa educação, mas com certeza diz respeito também a todo o projeto educacional propriamente dito. Se hoje há alguma certeza com relação à educação nacional, entre aqueles que conseguem enxergar a situação intelectual do país com clareza e sem amores ideológicos, é que, na prática, a educação básica brasileira simplesmente não funciona. E, num sentido mais abstrato da vida intelectualizada — naquilo que o educador norte-americano Mortimer Adler chamava de “educação para vida” —, também não desponta com grandes arroubos. Algo não está certo com o modelo educacional brasileiro, e, definitivamente, precisa ser alterada a raiz do projeto.
O novo ensino médio, que começou a ser elaborado em vias institucionais no governo de Michel Temer, tomou como base a evasão escolar. De acordo com a Pesquisa e Avaliação da Fundação Roberto Marinho, mais de 20% dos jovens de 19 anos não terminam o ensino médio em São Paulo — e esse é o melhor resultado nacional. Na Bahia, por exemplo, o número é de quase 60%. A média nacional fica em cerca de 35%. Os dados são de 2019, e já há avaliações do pós-início da pandemia, as quais dão conta de uma piora significativa nesse aspecto. Segundo uma pesquisa realizada pelo grupo formado pelo Conselho Nacional da Juventude (Conjuve), Unesco, Rede Conhecimento Social, Mapa Educação, Em Movimento, Fundação Roberto Marinho, Porvir e Visão Mundial com mais de 68 mil estudantes, aproximadamente 50% deles interromperam seus estudos durante a pandemia. Os motivos vão de questões psicológicas e dificuldade com as aulas on-line a problemas financeiros e familiares.
Ainda segundo a Fundação Roberto Marinho sobre a evasão escolar, o primeiro fator que leva à fuga dos estudantes é a necessidade econômica. Isto é, o trabalho (cerca de 40%). Depois vem o puro e simples desinteresse pelos estudos (quase 30%). Somando os dois principais motivos, temos algo em torno de 70% da causa da evasão escolar nacional, o que identifica e evidencia a veia principal desse problema. Foi tendo em vista esse quadro que o novo ensino médio se apresenta como uma aposta do MEC para a reformulação no ensino dos adolescentes brasileiros, propondo uma mudança nas diretrizes e nos resultados buscados pelo governo federal.
Se quatro em cada dez alunos do ensino médio abandonam a escola, devemos questionar se ela não se tornou um terreno hostil
É perceptível a sensação entre os docentes — e eu posso falar de causa própria, pois também sou professor de ensino médio — de que há um hiato enorme entre as matérias ministradas unilateralmente através da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a vida prática dos estudantes. Ainda mais óbvia é a sensação de que há uma desconexão proposital entre as próprias matérias. Não se coloca em dúvida que um estudante que se julga vocacionado à literatura também deva ter conhecimentos básicos de aritmética ou dos demais cálculos, mas é questionável se ele deve ter tantas aulas de matemática em sua grade curricular quanto um aluno que se encaminha à engenharia civil. Ou se um aluno que queira ser veterinário deve ter tantas aulas de filosofia e sociologia quanto um que se direciona a uma carreira no ramo das ciências sociais.
Esses questionamentos descortinam algo que há muito é percebido e que vem sendo ignorado pelo mesmo período de tempo: a educação brasileira não é focada no aluno nem nas carreiras que ele quer ter, mas num bloco formado por burocratas e intelectuais encastelados que perderam contato com a vida comum dos indivíduos e com as necessidades impostas pela sociedade contemporânea. Se quatro em cada dez alunos do ensino médio abandonam a escola, devemos questionar se a escola não se tornou um terreno hostil, desinteressante e até desencorajador para a vida profissional e intelectual dos estudantes brasileiros.
Vamos entender melhor, embora de forma resumida, a trajetória dessas mudanças que passarão a ser implementadas em todo o país no início de 2022.
- Em 2014, o PNE (Plano Nacional de Educação) foi aprovado sob a Lei n° 13.005/2014. Nele, estabeleciam-se metas de renovação educacional no ensino médio, dados os recorrentes resultados negativos da educação brasileira. Uma das muitas situações destacadas era a necessidade de articular melhor as matérias, a fim de dar sentido à prática substancial do que é ensinado. Além disso, o ensino deveria ter disciplinas optativas em uma grade curricular flexível, tudo encaixado em um programa educacional que visa a integrar no mínimo 50% das escolas públicas e 25% das escolas particulares, que passarão a operar em turno integral — é o que estabelece a Meta 6 do referido documento.
- Mas as mudanças reais que veremos ser implementadas até 2022 são frutos da Lei nº 13.415/2017, que ampliou as horas anuais obrigatórias a serem cumpridas pelas escolas, de 800 horas/ano, para 1.000 ou mais horas/ano. E instituiu a obrigatoriedade de flexibilização das grades curriculares, bem como a ampliação de oferta de cursos formativos — denominados de “itinerários formativos”, a parte moldável do currículo escolar.
- Todavia, o que era projeto só começou a ganhar contornos de realidade em 2018, com a promulgação de documentos que oficializavam a prática dessas novas normas. O primeiro deles foram as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, seguidas do texto referente ao ensino médio da BNCC. Depois deles, vieram os Referenciais Curriculares (base para os itinerários formativos) e o Guia de Implementação do Novo Ensino Médio. Ficou estabelecido, além disso, nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, que até 2022 as escolas terão de ofertar 3.000 horas distribuídas em três anos, dividindo o currículo em 1.800 horas de formação geral básica — estipuladas pelo BNCC —, mais 1.200 horas de itinerário formativo.
Vamos entender agora como vai funcionar, na prática, o novo ensino médio, e quais os seus desafios. A nova orientação educacional traz em seu cerne o caráter de renovação profunda e flexibilidade real proposta parcialmente pelo PNE e ampliada pela chamada Lei de Reforma do Ensino Médio. A intenção do governo federal é flexibilizar, a partir de 2022, a grade curricular das mantenedoras de ensino — particulares e públicas —, oferecendo cursos extras em basicamente três áreas: ciências biológicas, ciências exatas e ciências humanas (ou sociais), tudo a partir da BNCC — que ainda vigora como o ponto de partida comum do ensino brasileiro. Os alunos, junto com seus pais, professores e mantenedoras, poderão discernir a área de estudo na qual querem se aprofundar, tendo a liberdade de cursar as aulas no campo de ensino escolhido e criar intercâmbios intelectuais nas matérias desejadas. No fundo, a ideia é que abandonemos o estilo de ensino universal, com os alunos sendo quase que obrigados a contemplar simultaneamente todas as áreas de estudo, passando agora a adotar um ensino funcional e voltado para a área que ele quer.
Além de tudo isso, a intenção do MEC é que, em 2024, o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) seja uma prova focada em áreas do conhecimento — ciências biológicas, exatas e humanas. Ou seja, cada aluno poderá escolher a área vocacional à luz da qual deseja ser avaliado, tendo em vista a universidade que queira cursar e a carreira que queira seguir. Algo que já é praticado em países desenvolvidos há muito tempo.
Os objetivos dessas mudanças são claros: aprofundar o conhecimento da opção individual de cada estudante e tentar alcançar os objetivos nacionais e internacionais referentes aos indicadores educacionais. O primeiro objetivo é sensacional, se partimos do pressuposto de um bloco educacional, impessoal e desinteressante, embora esperar que haja uma educação formativa satisfatória é quase insano. O segundo também é importante, mas deve-se fazer a ressalva de que subir numa tabela nem sempre significa amadurecer processos educacionais. Não adianta subir 15 posições e não ter um plano de ação para remunerar satisfatoriamente a classe docente ou estabelecer novas grades curriculares sem preparar uma estrutura real para abarcá-las.
Deixe-me aprofundar essa crítica. O aumento de oferta de cursos e especializações obviamente exigirá muito mais das instituições de ensino e um preparo tanto profissional quanto estrutural. Aqui jaz a principal crítica ao modelo do novo ensino médio: as mantenedoras estariam preparadas para receber um modelo educacional híbrido com tantas ofertas curriculares? Haveria intercâmbio de alunos entre as escolas? É completamente crível, por exemplo, que haja escolas que não tenham material profissional para oferecer uma grade curricular especializada em ciências humanas, ou em ciências biológicas. Então os alunos vocacionados a essas ciências ficariam desguarnecidos de um ensino funcional naquelas áreas? As escolas rurais, por exemplo, que mal têm professores preparados para o currículo básico, como manteriam uma grade curricular vasta para atender às necessidades e às escolhas dos estudantes?
As mudanças são necessárias, e quem me conhece sabe que sou um crítico ferrenho da ideologia no ensino. Muito além de “escola sem partido”, acredito que há um problema ético profundo no ensino nos campi. Mas o que se debate aqui hoje é a estrutura do ensino, e me parece que tal remodelamento proposto pelo MEC nos aproxima mais de uma modernização real desse setor, colocando-nos mais próximos de uma educação de competências intelectuais e práticas profissionalizantes. Resta saber se essa mudança irá estender suas mãos também ao ensino fundamental, lugar onde o problema educacional começa. Outra dúvida que também persiste é sobre a efetividade das mudanças propostas.
Criar leis, diretrizes, documentos galantes e robustos não significa, em nenhuma instância e grau, que tais vírgulas majestosas serão efetivadas na realidade. O fiat bíblico demandou uma força divina. A educação brasileira também demanda forças, mas traduzidas em políticas factuais e estratégias econômicas factíveis. Afinal, metas impossíveis são feitas para serem ignoradas, diz Thomas Sowell em The Quest for Cosmic Justice.
Sou cético em relação à realização total do projeto exposto nos documentos oficiais que tive o cuidado de ler na íntegra. Em alguns casos, a apresentação do projeto soa mais como uma peça de coach político do que uma estratégia educacional. No entanto, não sou cético nem desanimado quanto ao rumo que o novo ensino médio traçou. Parece-me que uma sociedade globalizada e, portanto, com cada vez mais necessidades e possibilidades de ação profissional requer especializações cada vez mais sofisticadas. Isso tudo exige realmente uma educação mais personalizável e profissionalizante, tendo em conta as tendências e escolhas de cada indivíduo por um lado, e as demandas socioeconômicas de outro.
Não poderia terminar a minha análise sem expressar o desejo profundo de que as empresas privadas também comecem a habitar os solos educacionais das nossas escolas e, assim, oferecer estímulos e programas de ingresso profissional através do mérito. Se as intenções são remodelar radicalmente a estrutura educacional e profissionalizar os adolescentes, colocá-los em contato direto com seus possíveis empregadores é outra parte imprescindível dessa nova lógica pedagógica.
Pois bem, tudo isso no papel é lindo… Resta-nos ver funcionando.
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Excelente artigo.
Estou com 57 anos. Aos 13, cursava a 7ª série. Eu tinha um professor de Ciências com excelente didática. Fez-me aprender todo o livro de Zoologia e Botânica. Mas, entre tantas nulidades para um garoto de minha idade, fez-me aprender o nome de todos os tipos de folhas de plantas (uninérvia, curvinévia etc.). Para quê? Serviu-me para vida tanto quanto a fórmula de Bhaskara. No meu segundo grau, por falta de opção, fui obrigado a fazer Secretariado: um desperdício completo. A educação no Brasil é um equivoco de longa data. Se eu não tivesse por esforço próprio aprendido Gramática, além de Razão e Proporção, com toda a sua repercussão em Matemática Financeira, eu não teria tido futuro.
Muito bom e esclarecedor o artigo. Mas, pergunto ao professor: não seria cedo demais para um jovenzinho de 15/16 anos fazer a escolha entre Humanas, Médicas e Engenharias?
O seu questionamento também é o meu, Edgard.
Estamos muito defasados academicamente falando. Preparar os professores adequadamente, além de desintoxicá-los, levará muito tempo. Um verdadeiro processo.
Durante quase uma década atuei como professor numa escola estadual. Durante a parte da manhã os alunos se conheciam há vários anos. Tinham forte amizade e se ajudavam. Além disso havia um “espírito de equipe” entre eles. As coisas andavam e bem no laboratório de informática, por exemplo. Explicar como se fazia um orçamento doméstico, usando o MS Excel, fluía magnificamente … Bons tempos. Já na mesma escola a noite a história era outra. Nem parecia a mesma escola. Tudo, absolutamente tudo era contrário à manhã. As mesmas aulas não fluíam. Os alunos faltavam mais do que iam. No segundo semestre havia uma debandada geral chegando inclusive uma turma de 40 se reduzir para 12 alunos. Um horror.
E há outro detalhe: como desintoxicar grande parte dos professores d politizar em vez d ensinar?
Boa pergunta, Silas! A mim, também, foi o primeiro questionamento que me ocorreu. Afinal, desde Freire até os dias atuais, foram décadas de doutrinamento ideológico.