Em março de 2020, com o avanço do coronavírus, Luciana Gonçalves de Oliveira Campos já esperava o inevitável: as aulas do primogênito, Vitor, de 9 anos, seriam interrompidas por um prazo que poderia variar de três a quatro semanas. Como tudo parou, ela achou normal que a Escola Charles Henry Tyler Townsend, em Itaquaquecetuba, na Grande São Paulo, também fechasse as portas.
De lá para cá, o comércio reabriu, o transporte público voltou com capacidade total, bares e restaurantes passaram a funcionar plenamente — e todos os estudos científicos comprovaram que as salas de aula eram lugares de baixíssimo risco de transmissão da doença. Enquanto tudo retomava o ritmo normal, a escola permaneceu fechada. Por mais de 70 semanas, as “aulas on-line” de Vitor funcionavam em etapas. Primeiro, Luciana recebia da professora, por um grupo de WhatsApp, uma ou duas lições por dia (matemática, português, história, geografia, artes ou uma inexplicável educação física). Em seguida, imprimia o material, entregava para o filho e, depois que ele terminava, ela fotografava e devolvia. Luciana recebeu de volta poucas correções, mas muitos elogios: Vitor era uma das raras crianças que faziam as lições e uma das raríssimas que ligavam para a professora quando tinha dúvidas.
Em agosto de 2021, chegou a tão esperada notícia: as escolas reabririam. A empolgação de Luciana diminuiu ao saber dos detalhes do “protocolo sanitário”. Vitor teria uma aula por semana, por um período de três horas.
No primeiro dia, apenas ele compareceu. Nas semanas seguintes, Vitor e mais uma colega. Na sala, contudo, cabem 30 crianças e comportaria cerca de dez obedecendo a distância de 1,5 metro entre os estudantes determinada pela prefeitura.
De acordo com Luciana, as outras duas turmas do 4º ano do Fundamental 1, série de Vitor, funcionam uma às terças-feiras e outra às quintas-feiras. Ambas com dois alunos cada uma. Por que não juntar as seis crianças e permitir que pelo menos elas tenham o direito a aulas três vezes por semana? Lucas Assis Costa, secretário de Educação de Itaquaquecetuba, não soube desfazer o mistério. Ao repetir o mantra “nós optamos por priorizar a saúde”, ele alegou que ignorava o caso, mas prometeu resolvê-lo.
“Minha sogra diz que eu sou boba por mandar o Vitor para a escola, porque só uma vez por semana não compensa o esforço que todo mundo tem de fazer para levar e buscar ele”, conta Luciana. “Mas mesmo que fosse uma hora por dia, eu levaria do mesmo jeito. Só assim eles vão saber que tem gente que quer voltar.”
Nesta quarta-feira, 13 de outubro, o governador João Doria anunciou que, a partir da próxima segunda-feira, dia 18, as aulas nas 5.130 escolas estaduais de São Paulo voltariam a ser obrigatórias. Menos de 24 horas depois, um comunicado da Secretaria de Educação avisou que 75% das instituições continuarão a trabalhar em esquema híbrido (on-line e presencial) e de rodízio (os estudantes comparecerão em dias alternados). Segundo o secretário Rossieli Soares, a distância de 1 metro entre os alunos só será abolida em 3 de novembro, quando crianças e adolescentes poderão — teoricamente — ter aulas presenciais todos os dias.
Luciana foi informada de que, a partir da semana que vem, Vitor passará a ter aulas duas vezes por semana, mas só por três horas por dia. Embora essa realidade seja lamentável, ela é menos angustiante que a dos cerca de 100 mil alunos dos 23 municípios paulistas onde as escolas públicas permanecem fechadas há quase dois anos.
As justificativas das prefeituras incluem, segundo o Estadão, “uma eventual transmissão da variante Delta e a espera pela vacinação completa dos professores, que acabou em setembro”. São Roque, por exemplo, adiou o retorno para 2022. Tupã, Ibiúna, Mairinque, Embu-Guaçu, Cajuru, Alumínio e Pereira Barreto repetem o mesmo modelo.
“Há uma corrente de educadores que defende o retorno só no ano que vem, visto que 2021 está acabando”, afirmou Cláudia Costin, especialista em educação e ministra da Administração Federal no governo FHC. “Não há desculpa para não reabrirmos as escolas e voltarmos à normalidade. Mais dois meses sem aulas pode parecer pouco, mas é significativo para quem ficou dois anos sem estudar. Cada dia perdido é muito valioso.”
Cláudia conta que, durante as eleições municipais de 2020, muitos prefeitos que estavam saindo, e que duvidavam da própria reeleição, não fizeram as obras necessárias nas escolas para o retorno dos estudantes e professores. Os prefeitos que assumiram o cargo, por outro lado, repassam a culpa para os antecessores.
Das 645 cidades paulistas, um terço tem sistemas próprios de educação, o que lhes dá autonomia para criar regras independentes e definir quando, como e se as escolas municipais irão reabrir. “O governo e o Ministério Público deveriam acionar juridicamente essas prefeituras para que elas explicassem o motivo de manter as escolas fechadas, mas isso não acontece”, lamentou Lana Romani, do Escolas Abertas, movimento da sociedade civil que há mais de um ano luta pela retomada total das aulas presenciais.
“É uma hipocrisia”, resumiu Pedro Henrique Alves, professor do ensino médio em São José dos Campos e editor da LVM. “Não existe nenhum estudo que mostre infecções em larga escala nas salas de aula. Além disso, as mortes e contaminações aconteceram mesmo durante períodos de quarentena.” Segundo Alves, uma das mais graves consequências da paralisia escolar foi o desânimo dos jovens em relação aos estudos. “A participação diminuiu e a ansiedade aumentou”, disse.
No Brasil, apenas 30% dos brasileiros adultos têm acesso pleno à internet
Uma pesquisa realizada pela Unesco, em parceria com a Fundação Roberto Marinho e outras instituições com mais de 68 mil estudantes, revelou que aproximadamente 50% deles interromperam os estudos durante a pandemia. Antes da chegada da covid-19, a evasão escolar no país ficava em torno de 35%.
Lana revela outro dado preocupante divulgado sem muito alarde pelo governo de São Paulo. Entre esses jovens que abandonaram os estudos, a maioria é de mulheres. “São meninas que tiveram de começar a ajudar a mãe em casa ou tomar conta dos irmãos mais novos, já que muitas creches continuam fechadas”, contou. “Ou seja, a desigualdade não será maior apenas entre o ensino público e o privado, mas também entre os sexos.”
Segundo Cláudia Costin, embora cerca de 80% dos municípios tenham oferecido algum tipo de aprendizagem em casa, ela não foi adequada na maioria dos casos. “A questão da conectividade desafiou a todos, porque a internet ainda não é uma realidade nos rincões do Brasil”, observou. “Além disso, quase 20% dos municípios não ofereceram nenhum aprendizado. Governantes argumentaram que isso seria uma forma de equidade sob a lógica de ‘como nem todos têm internet, todos ficam sem aulas’. Um absurdo.”
No Brasil, apenas 30% dos brasileiros adultos têm acesso pleno à internet e cerca de 45% não têm acesso nenhum ou estão subconectados. “Como falar em ‘ensino à distância’ se não há internet — e isso num país que está precisando, desesperadamente, melhorar o seu sistema de educação pública?”, escreveu o jornalista J.R. Guzzo, colunista de Oeste, num artigo publicado recentemente no Estado de S. Paulo. “Jamais se saberá quanta miséria criaram com isso para o futuro das vítimas (…). Mas pode-se dizer desde já, e para sempre, que a mentira contada pelos fechadores de escola — os alunos iriam receber ‘ensino remoto’ — era apenas isso, uma mentira, e essa mentira está em ruínas.”
Outra pesquisa, do Instituto Paulo Montenegro (IPM) e da ONG Ação Educativa, mostrou que, mesmo antes da chegada do coronavírus, menos de 10% dos estudantes do ensino médio eram capazes de interpretar escritos e gráficos, além de elaborar textos de complexidade razoável. Um departamento da Universidade de Juiz de Fora (MG) constatou que durante a pandemia, no Estado de São Paulo, os estudantes do 5° ano retrocederam a patamares de 11 anos atrás em matemática. Os de 3° e 4° ano apresentaram problemas gravíssimos em alfabetização. “O Brasil não estava bem antes do vírus”, registra Cláudia. “A pandemia só jogou luz sobre uma crise que vem de há muito tempo.” Caso as escolas não reabram de maneira total, esse abismo social e educacional jamais será superado.
Com reportagem de Cristyan Costa
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Em um País que tem o Paulo Freire como patrono da educação, não podemos esperar mais do que isso.
O rei já está nu há muito tempo, mas nessa terra de cegos, tanto faz! Ótimo artigo.
Reuna um monte de professores vagabundos (talvez metade), estimulados por sindicatos vagabundos (aí quase todos), doutrinados pelos métodos de preservação da ignorância de Paulo Freire. Acrescente uma porção de políticos despreparados, ignorantes ou corruptos e mau intencionados. Some-se a isso uma mídia em abstinência de dinheiro publico exibindo artistas dependentes de Rouanet na veia. Pronto, chega-se ao bolo de estrume que virou a educação no Brasil. O que esperar do futuro……..?
Excelente Paulo. Só faltou acrescentar um povo com viés de covardia para garantir o sucesso da mistura…
A gestão da pandemia nos Estados e Municípios revelou uma realidade cruel: grande imprensa, governadores, prefeitos, secretários de educação, professores e sindicalistas não dão à mínima para o ensino. As reportagens, as pesquisas, os estudos e as reclamações sobre a baixa qualidade da educação brasileira, anteriores à pandemia, não passaram de tentativas hipócritas de discurso político para atrair eleitores.
Texto tocante, emocionante. Escancara a perfídia dos governantes e porque não também a covardia dos que aceitaram passivamente o sequestro da educação em nossa nação. Tenho 02 filhos em escola particular de excelente padrão no Rio de Janeiro e mesmo esta, repleta de alunos da melhor camada intelectual e econômica da sociedade carioca, pôde bancar a “salvadora de vidas” ao aceitar decretos inconstitucionais, mesmo possuindo assessorias jurídicas caríssimas, tudo isso com a “conivência” de grande parte dos pais em pânico.
Texto chocante!
Texto irretocável. Parabéns.
Professor, pai e avô, nessa ordem, fiquei comovido com seu texto. Há mais. Aqui no Rio, o tradicional Colégio Pedro II garantiu que não haverá aulas até abril de 2022. No futebol, o Brasil não suporta ser vice de ninguém, nunca, no mundo. Em Educação pode ficar sempre entre os últimos ou o último. É uma situação horrorosa. Parabéns pelo artigo, Branca!
Fiquei emocionada com seu texto, é tocante demais constatar essa traição insuperada.
Sou professora da rede estadual em Guarulhos. Fico revoltada com o grande número de colegas que não quer voltar às aulas presenciais. Ensino remoto não é adequado para crianças, pois nada substitui a interação na sala de aula. É um crime o que estão fazendo com nossas crianças e com a combalida educação brasileira. Felizmente, minha escola está com aulas presenciais desde fevereiro. Inicialmente, atendendo às exigências dos protocolos sanitários, fizemos rodízio com aulas 3 vezes por semana. Desde setembro, estamos com aulas todos os dias, atendendo 100% dos alunos! As crianças estão felizes e assíduas.
De todos os crimes cometidos nessa pandemia, nenhum se compara aos cometidos contra nossas crianças. Meu município tirou da página oficial o convite para vacinação de crianças e adolescentes, mas fui levar minha filha ao posto de saúde para tomar a vacina do HPV, a enfermeira queria fazer a 1º dose da COViD nela, ou seja, eles estão vacinando a todo vapor. Além da ignorância, nossas crianças estão condenadas aos efeitos físicos de um experimento.
Meu sobrinho-neto pegou Covid FORA DA ESCOLA, que é particular, uns dois meses depois das aulas terem retornado. O período de pandemia sem aula lhe fez muito mal psicologicamente. O afastamento pela doença logo trouxe situações comportamentais de durante o fechamento. A alegria e satisfação dele ao ir a escola É IMENSA. Aqui em Ribeirão Preto, a demora no retorno das escolas municipais virou uma batalha promovida pelo sindicato dos servidores, acolhida pela promotoria, querendo garantias em cima de garantias, mesmo com as afirmações de médicos sobre a possibilidade de retorno.
Conheço muitos outros casos iguais ao de Luciana e Vitor. Todos conhecem.
Ilustração e texto impecáveis.
Muito triste saber que o descaso com a educação não termina nunca.
País do futuro
Cada vez mais
Incerto
Seremos sempre o país de um futuro que nunca chega. Triste.