A revolução digital é pródiga. O avanço civilizatório decorrente dela é inquestionável. A conexão planetária imediata se traduz em ganhos econômicos, culturais e humanitários. A revolução digital melhora a vida. Ou era para melhorar.
Claro que haveria efeitos colaterais. Nenhuma transformação desse tamanho se dá sem que algo também seja perdido. Na Revolução Industrial, por exemplo, o formidável processo de automação trouxe o aumento do sedentarismo. Hoje, é até engraçado lembrar a campanha do “Mexa-se” nos anos 1970 — com jingles na TV tentando sensibilizar a população para a importância de se exercitar. Isso mais de década antes da disseminação dos microcomputadores de uso pessoal, que jogariam boa parte da movimentação humana para dentro de uma tela — ainda na pré-história do iPhone.
E agora? Com uma tela na palma da mão que contém praticamente o mundo inteiro, o que aconteceu com a movimentação humana? Continuou decaindo, claro, mas por outro lado os antídotos do velho “Mexa-se” evoluíram — e também está hoje na palma da mão um vasto cardápio de suor induzido. Então para onde foi a atrofia?
É uma pergunta que dá até medo de tentar responder. Sendo assim vamos só especular, de forma inconsequente, para ninguém confundir isso aqui com manifesto. Nem com veredito. Até porque a epidemia de vereditos sumários na palma da mão pode ter a ver com a tal atrofia. Será? Quem não pensa sentencia. Quem não pode ordena. Quem não sabe ensina.
Calma, são só provocações. Releia acima o nosso pacto de inconsequência e relaxe.
Mas… Será que não temos uma pista aí? Com quantos paus se faz uma canoa, se a canoa pode ser virtual? O que acontece com o ser humano quando ele passa a não precisar do trabalho braçal da mente? E se aquele vasto cardápio de suor induzido passa a oferecer também convicções à la carte, prontas para o consumo? O que acontece com o senso comum quando o indivíduo adere maravilhado à automação das convicções? E se a formação da consciência estiver sendo substituída pela mimetização? E se o pensamento tiver perdido espaço para a repetição?
Que experiência impressionante. Um chamado ético para a imobilização das sociedades em nome do bem comum
Calma. Se as provocações acima não te incomodaram, talvez nada disso esteja acontecendo. Ou talvez você esteja suficientemente mecanizado. Ou talvez as premissas acima estejam erradas. Ou talvez o cardápio de convicções instantâneas seja mesmo um sucesso e você só consiga pensar se esse papo é de direita ou de esquerda, se merece like ou deslike, se compartilha ou denuncia, se tem mais gente aplaudindo ou dizendo que é fake news, enfim, o processo normal a partir do qual você emergirá com a sua convicção triunfal e indestrutível.
Ou talvez a sua capacidade de pensar esteja intacta e as provocações acima é que estejam fadadas a morrer na praia.
Praia lembra lockdown. Que experiência impressionante. Um chamado ético para a imobilização das sociedades em nome do bem comum. A mobilização pela imobilização. Uma espécie de “Mexa-se” ao contrário. Recolha-se. Isso protegerá a saúde da coletividade. A exata engenharia sanitária dessa medida extrema — e sua eficácia aferível — nunca apareceu. E o senso comum nunca a exigiu. Se existe mesmo um cardápio de convicções, ele deve ter sido essencial para a construção dessa harmonia em torno do nada. Cada tempo com seu consenso.
A convicção emana do iPhone. O iPhone emana do legítimo anseio por praticidade e conforto. A paz digital pode ser um estágio evolutivo — em que a universalização do poder individual depende da uniformização. Repetir é o novo pensar? Ser ou não ser?
Do iPhone emana o passaporte. Da injeção emana a cidadania. Como no lockdown, o senso comum não exigiu o passaporte da eficácia. A nova ética dispensa a lógica. O indivíduo está fascinado com seu poder universal. Dispor da vida alheia com uma simples checagem de iPhone é bom demais. Bloqueio sanitário é migalha se você tem o direito à vida na palma da sua mão.
Ou talvez não seja nada disso. Fica calmo. Se as especulações acima são inócuas, você não tem nada a perder. Se não são, mexa-se.
Leia também “Manual do Linchador Moderno”
Mais uma flechada certeira do mestre!
Caraca! Fui olhar a bike e vi o quanto abandonei a prática de pedalar… esta toda enferrujada… Ganhou apelido “Ferrugem”… mas foi pra rua cheia de rangidos e miados e com diversão nos pedais voltamos a atividade. Graças a seu texto. Obrigado Fiuza.
Pois é Fiuza,a coletividade cabe na palma da mão..
Ótima reflexão . E somando um pouco : sou médico com 44 anos de formado e nunca na minha vida profissional receitei nenhum medicamento sem conhecer seu mecanismo de acão , eficácia , dose correta e efeitos colaterais . Hoje todos defendemos uma vacina para as quais não temos satisfeitos nenhum dos preceitos acima . Como disse minha filha mais velha : “o mundo parou de pensar”.
Ótimo artigo. Parabéns Fiuza.
Aí fico pensando: Se em um dado momento algum progressista impaciente resolver desligar todas as redes mundiais, para onde iremos? Não iremos, voltaremos à idade da pedra, teremos que começar tudo de novo. Conclusão lógica: Como é confortável ser imbecil. Nada contra as tecnologias, pois sempre pensei que tudo que existe no mundo é pra gente usar, seja lá o que for. Cada um deve fazer suas próprias escolhas. Pelo menos por enquanto, antes que esse tal de pensamento único tome conta de tudo.
Respondendo ao colunista: as “provocações” (aspas porque não as tomo como tais) me incomodaram sim, justamente por traduzirem o cenário tenebroso em que estamos mergulhados. Já temos até presos políticos, encarcerados impiedosamente por opinião contrária à do mandarin. Quem vai botar um BASTA nessa desordem?
Sempre “cutucando” com maestria!!!!!!! Mais uma vez, Parabéns!!!!! Agora falta a gente responder! Já está passando da hora da gente se “mexer”!!!!!
O provocante Fiúza. Excelente texto.
Genial como sempre!
PELO AMOR DE DEUS!!!
QUANDO É QUE VOCÊS VÃO LER O ART 93 DA CONSTITUIÇÃO E COMEÇAR A BRIGAR CONTRA A MAIOR DAS SACANAGENS DO STF?
CHEGA DE LAMENTAR. É PRECISO BRIGAR DIRETAMENTE PELO ESTATUTO DA MAGISTRATURA!!!
Guilherme Fiuza, excepcional, parabéns!
Fiuza, parabéns pelo artigo, pensei que nos meus 73, nada atingisse as minhas preguiçosas sinapses, e vem você, puxando lógica, esvaziando certezas e nos fazendo crer que, além de um certo ridículo, somos folhinhas boiando num rio sem fim de insensatez.
Fiuza, você não me deixa nada calma com suas provocações. É uma forma de mexer-se né? Entao, estamos juntos nessa.❤
Mecha-se. Lulatrina não é opção.
Sou fa de pingo nos is e agora que descobri a revista com jornalista desses niveis,acabei de assinar e já estou lendo. Parabéns Fiuza por fazer parte dessa equipe esquadrao de ouro.
Não tem tecnologia que modifique a essência do ser. Consultemos os filósofos gregos antes de Cristo e vamos verificar que os preceitos de humanismo prevalece
Excepcional.
Mestre Fiuza, fantástico como sempre. Alertando e lutando pelos temas mais importantes da humanidade: liberdade, relações, convivência… Sem essas coisas, nada mais faz sentido. Parabéns mais uma vez, e obrigado.
Que matéria excelente!! Obrigada pela provocação.
Guilherme Fiuza, sempre fantástico e certeiro. Texto provocatico.