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Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) | Foto: STF/Divulgação
Edição 89

O ministro sem fronteiras

A última realização de Alexandre de Moraes foi uma obscura construção através da qual se chega à conclusão de que “a direita” deveria ser proibida de participar das eleições brasileiras

J. R. Guzzo
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Há alguma coisa profundamente errada com o ministro Alexandre de Moraes. É esquisitíssimo, em primeiro lugar, que ele apareça tanto assim no noticiário, como se fosse o homem público mais importante que o Brasil já teve em 521 anos de história — ou um astro do sertanejo universitário no auge da carreira. Se o cidadão não foi eleito nem para a presidência do clube de bocha do bairro, e lida no seu dia a dia com algumas das coisas mais chatas que existem na esfera do conhecimento humano, por que virou essa figura “pop” que deixa em transe o mundinho da elite brasileira? Mais que isso, e muito pior que isso: é rigorosamente incompreensível o que Alexandre está fazendo como ministro do Supremo Tribunal Federal. Aí complica um colosso, porque o que ele faz tem efeito prático, imediato e doloroso. Por uma dessas calamidades que perseguem o Brasil, como a saúva e a seca no Nordeste, o STF virou o grupo que manda hoje na sociedade brasileira — e seria difícil achar um grupo que manda tão mal. Nesse ponto, justamente, a coisa pega: entre os que mandam mal, Alexandre é hoje o que manda pior.

Não se trata de discutir a qualidade dos despachos do ministro. Muito antes de se chegar lá, a discussão já vai para o brejo por um motivo central absolutamente descomplicado: Alexandre de Moraes toma decisões que são 100% contrárias ao que está escrito na lei. Tanto um repetente em faculdade de Direito de terceira linha quanto uma sumidade da ciência jurídica universal, aqui ou em qualquer país do mundo, teriam certeza da mesma coisa diante dos decretos sem apelação do ministro: essas decisões são ilegais. Ele e seus colegas, naturalmente, afirmam que leigo não sabe o que é legal ou ilegal, não entende nada de Direito e, portanto, não pode dar palpite. Falso. Ninguém precisa ser matemático para saber que o triângulo tem três lados. Essa história não tem nada a ver com técnica; não se trata de nenhuma questão enrolada de alto direito canônico que só jurista cinco-estrelas pode debater. Tem a ver com lógica, simplesmente. A lei manda fazer uma coisa. Alexandre faz o contrário. Xeque-mate.

É mais fácil o camelo da Bíblia passar pelo buraco de uma agulha do que “o grupo” mexer no despacho de alguém

Como é que as coisas ficaram assim? Não dá para entender. Justo com ele, que é juiz supremo e, nessa condição, não tem ninguém acima para lhe dizer que não pode fazer isso, ou que é obrigado a fazer aquilo? Fica difícil. O que Alexandre resolve está resolvido; há os outros dez ministros, claro, mas é mais fácil o camelo da Bíblia passar pelo buraco de uma agulha do que “o grupo” mexer no despacho de alguém. Seja lá o que for, o grupo “está fechado”, e dá a maior força ao “professor”; se um deles decidir que 2 mais 2 são 22, vai ficar assim mesmo e não se fala mais nisso, a menos que você esteja querendo contestar as “instituições” e tomar um processo no lombo por “atos antidemocráticos”. Alexandre sabe, obviamente, o que está escrito na Constituição e na legislação penal brasileira, pois qualquer um, até um jornalista, é capaz de saber; não existe a possibilidade de que ele não saiba, ou não tenha entendido o que leu. Faz de propósito, portanto — e aí complica geral. Que diabo está acontecendo aqui?

A última bula universal baixada por Alexandre mostra pelo menos uma coisa: não há mais nenhum limite para ninguém, nem para nada, dentro do STF. Se o ministro sabe perfeitamente o que está fazendo, e continua a fazer o que faz, é porque chegou à certeza de que pode tudo. Não perca o seu tempo, assim, tentando descobrir onde passa a fronteira: não há fronteira. É onde estamos no momento. Em sua última decisão, talvez mais que qualquer outra, o homem realmente chutou o balde: simplesmente proibiu o deputado Daniel Silveira, que está em pleno exercício do seu mandato, de dar uma entrevista ao programa Direto ao Ponto, da Jovem Pan. Isso não existe desde que o regime militar proibia o bispo dom Helder Câmara de falar à imprensa, e a imprensa de publicar o que ele falasse. Não é que o deputado tenha dado a entrevista e, depois, sido acusado por Alexandre de ter dito alguma blasfêmia antidemocrática no ar. Ele foi proibido de dizer o que ainda não tinha dito. Que tal?

E se Silveira quisesse dizer na entrevista que o Supremo é a coisa mais linda que existe no Brasil? Não poderia, segundo o decreto de Moraes. E se quisesse falar dos 2 a 1 do Palmeiras em cima do Flamengo? Também não poderia. Nada poderia, em suma. É uma novidade realmente extraordinária. Nem se trata, nisso aí, de dizer que a decisão não vale nada do ponto de vista jurídico; qualquer advogado de porta de cadeia sabe que não existe nenhum artigo na Constituição, ou em qualquer dos 10 milhões de leis em vigor no Brasil, que autorize o ministro a censurar o que um cidadão vai falar. O que chama a atenção, mesmo, é que Alexandre não faz mais nexo — em matéria de lógica, o homem descolou da nave mãe. Suas decisões não precisam mais manter nenhum contato com a racionalidade; ele quer, como o rei Luís XV, e se ele quer os nove colegas (no momento está faltando um) também querem, e, se o STF quer, ninguém tem nada de ficar fazendo pergunta. E os direitos do deputado Silveira? Os direitos do deputado Silveira que vão para o diabo que os carregue.

Ele já estava proibido por Alexandre de se manifestar pelas redes sociais; é um dos 513 deputados federais do Brasil, igualzinho aos outros, não foi cassado nem recebeu condenação judicial nenhuma, mas não pode nem desejar um feliz aniversário pelo Twitter. Que lei permite um negócio desses? O ministro sustenta, pelo que dá para entender da sintaxe atormentada das suas decisões, que o deputado é uma ameaça à democracia e em casos de ameaça à democracia a liberdade de expressão não se aplica. Não se aplica, por sinal, nenhuma das garantias individuais do cidadão. No mundo das realidades, o que ele fez foi insultar o STF num vídeo. Pela lei, Silveira tem imunidades parlamentares, e jamais poderia receber as punições que recebeu. Mais: se fosse legalmente processado, julgado e condenado por um juiz de direito, isso seria crime de injúria, ou de incitação à violência — delitos que não permitem a prisão de ninguém em flagrante e muito menos nove meses de cadeia, como Alexandre socou em cima dele, e nem o banimento de rede social nenhuma. Mas e daí? Aqui é nóis que manda. Se não gostou vai reclamar no Tribunal de Haia.

O ministro, em linha com o resto da sua cabeça, também se tornou um militante político de vanguarda. Sua última realização — num encontro “latino-americano” de esquerda sobre “liberdade de expressão”, imaginem só — foi uma obscura construção através da qual se chega à conclusão de que “a direita” deveria ser proibida de participar das eleições brasileiras. Essas de 2022, já agora? Alexandre não esclareceu. Disse apenas que a direita — “uma nova direita” — está pretendendo conquistar o poder através das eleições, com o objetivo de “corroer as instituições democráticas”. Os responsáveis por isso seriam “ideólogos norte-americanos”. É mesmo? Quais? Essa informação também não foi fornecida. O que a direita vai fazer, segundo o ministro, é acabar com a democracia e com a “oposição”, através da “assunção do poder pelas vias democráticas”. Que conversa é essa? A Constituição não proíbe ninguém de ser de direita. Por que raios, então, cidadãos de direita não poderiam se valer das “vias democráticas” para se elegerem a cargos públicos? Que vias, nesse caso, Alexandre sugere que eles adotem? Não faz sentido, outra vez.

Se é de direita, não tem direitos; é assim que se defende a democracia neste país

O pior, nessa trapaça toda, pode nem ser o ministro Alexandre, embora esteja tudo suficientemente errado com as suas sentenças, os seus discursos e a sua conduta no STJ. De repente, pensando bem, ele até que está na dele. Pode fazer o que bem lhe dá na telha, sem correr o mínimo risco. Ninguém o impede de fazer nada; por que raios não faria? Ele quer ser o exterminador da direita. Quer ser um novo herói para a esquerda, e para a cantora Daniela Mercury. Quer ser o mais querido dos jornalistas. Tudo bem; a vida é assim mesmo. A tragédia é a passividade com que o Brasil que pensa, opina e decide como o país deve ser governado aceita — ou incentiva — a degeneração descontrolada das atribuições do STF. A verdade, no fim das contas, é que o STF só existe do jeito que é porque a sociedade brasileira o aceita do jeito que ele é. Todo mundo faz de conta que não está acontecendo nada de mais. O cercadinho da política, a mídia, a OAB, a elite, os banqueiros de investimento de esquerda, a universidade, os “garantistas” e mais uma porção de etcs. não acham, realmente, que haja algum problema no fato de o STF desrespeitar o tempo todo a Constituição. Por covardia, ou por acharem que é assim mesmo que as coisas devem ser, tratam os ministros como gente que, afinal das contas, está salvando o Brasil — são uma muralha que defende a democracia, e outras coisas igualmente fenomenais.

Esse mundo todo acha que está muito certo um sistema superior de justiça que mantém preso o ex-deputado Roberto Jefferson e solta o traficante Fábio Santos, o “Gordão do PCC”, depois de ter soltado o seu companheiro “André do Rap”. Qual seria o problema? Não se sabe qual é a ideologia do “Gordão do PCC”, mas todo mundo sabe muito bem que Jefferson é de direita. Se é de direita, não tem direitos; é assim que se defende a democracia neste país. Alexandre de Moraes, aí, é apenas mais um no time — e, nesse caso, o que está profundamente errado não é bem ele, e sim o Brasil de hoje.

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