Uma cidade é mais do que aparece num mapa e nas fotos. Ela é uma coordenada de tempo e espaço. Caminhamos por suas ruas sem enxergar a dimensão da experiência e sem ter a consciência das suas transformações.
Foi com o desafio de revelar o passado da cidade que aprendeu a amar que a jornalista Selma Santa Cruz escreveu Para Entender Paris – Histórias e Personagens da Cidade Mais Apaixonante do Mundo (Editora Matrix). Existem muitos guias turísticos da chamada Cidade Luz. O livro de Selma vai além. É uma espécie de guia da alma de Paris.
Selma escolheu explorar a história de 19 pontos marcantes da capital francesa, 16 deles concentrados nas duas margens do Rio Sena, onde a cidade nasceu. “Contemplar Paris em toda sua grandiosidade provoca vertigem”, escreveu Victor Hugo (1802-1885), lembrado no prefácio do livro. “Nada pode ser mais deslumbrante. Nada mais trágico, nem mais sublime.” O alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) resumiu a intenção deste livro: “Cada passo em uma ponte ou praça remete a um passado notável, cada esquina guarda a memória de uma parte da história”.
A autora se envolveu com Paris desde meados dos anos 1970, quando se tornou correspondente do jornal O Estado de S. Paulo. Com o tempo, percebeu a singularidade da cidade, na fusão entre “o amor à arte, idealismo e rebeldia”. Paris remete a inúmeros filmes românticos embalados ao som do acordeom. Mas pode se tornar extremamente violenta de tempos em tempos.
Paris já foi bem feia. “Havia imaginado uma cidade não apenas bela, como também ampla”, escreveu Jean-Jacques Rousseau, em 1742. “Mas deparei com ruazinhas sujas, casas feias e de paredes escuras, um cheiro de imundície e pobreza por todo lado.”
O Museu do Louvre era uma fortaleza de 5 quilômetros construída no século 12
Quem criou a grandeza de Paris? O livro cita alguns responsáveis. Como o rei Henrique IV, que construiu a Pont Neuf. Ou Luís XIV, que idealizou a Place Vendôme e o Hôtel des Invalides. E Napoleão Bonaparte e seu sobrinho Luís Napoleão, “que mandou derrubar milhares de casebres do caminho de rato que era o centro histórico medieval para abrir os bulevares arborizados que fizeram a fama de Paris”.
O velório de Dom Pedro II
Até um general nazista é lembrado pelo que não fez. Em agosto de 1944, a Segunda Guerra Mundial estava no fim. Os alemães batiam em retirada, e Adolf Hitler ordenou a destruição de Paris. O general Dietrich von Choltitz, comandante militar da ocupação nazista, instalou as bombas para incendiar a cidade, que havia conseguido escapar razoavelmente ilesa da fúria da guerra. Pode ser apenas uma lenda, mas contam que o general Von Choltitz, após receber as ordens do Führer, passou um bom tempo na sacada de seu escritório admirando o Jardin des Tuileries. E decidiu desobedecer ao ditador, que berrava ao telefone: “Paris está em chamas?!”. Não estava. Foi salva por sua beleza.
Selma Santa Cruz descreve o passado de locais famosos, mas nem sempre conhecidos. O Museu do Louvre era uma fortaleza de 5 quilômetros construída no século 12. A Basilique de Saint-Denis, que contém os túmulos de 72 monarcas franceses, foi o padrão arquitetônico pelo qual seriam criadas as futuras catedrais. A de Notre-Dame, hoje se recuperando de um incêndio devastador, já havia sido parcialmente destruída pela população revoltada durante a Revolução de 1789.
O Château de Vincennes serviu de prisão para uma legião de VIPs, como Voltaire, Diderot, o Marquês de Sade e a espiã Mata Hari. O Palais du Luxembourg foi erguido como uma espécie de réplica do Palazzo Pitti, em Florença, para que a rainha Maria de Médici se sentisse em casa quando foi morar em Paris, em 1600. O opulento Palácio de Versalhes foi construído enquanto a França enfrentava a Grande Fome (entre 1692 e 1694), que matou 15% da população (2,8 milhões de pessoas). Maria Antonieta foi guilhotinada em 1793 no mesmo local onde hoje está a Place de la Concorde. Nosso Dom Pedro II foi velado na Église de la Madeleine, 400 metros ao norte das Tuileries, em dezembro de 1891. Seu corpo foi escoltado por 10 mil soldados e 200 mil admiradores até a Estação de Austerlitz, de onde seguiu para Portugal.
Horrendos bancos de madeira
Para Entender Paris está sendo lançado quando a cidade não vive seu momento mais brilhante. Revoltado, Stéphane Bern, o “guru” cultural do presidente Emmanuel Macron, resolveu se mudar para uma cidadezinha ao norte da capital. “Eu ainda me maravilho com a beleza de Paris, mas ela está largada e se enfeiando em geral”, disse Bern, antes da mudança. “Paris se tornou uma lata de lixo onde as pessoas jogam fora coisas em qualquer lugar.”
Uma conta do Instagram chamada “#saccageparis” registra imagens de uma cidade onde o lixo se acumula, as paredes estão tomadas por grafites e cartazes, os jardins estão abandonados e mendigos dormem nas ruas. A responsabilidade maior por esse momento ruim parece ser da prefeita, a socialista Anne Hidalgo, com sua agenda ideológica — que inclui a obsessão por ciclovias.
Selma Santa Cruz, que recentemente passou cinco meses em Paris para finalizar o livro, sintetizou a situação: “Na visão dos críticos, a prefeita está empenhada em desfigurar a cidade, para torná-la supostamente mais sustentável, popular e inclusiva”, afirmou. “Ela provocou a ira generalizada ao implantar horrendos bancos de madeira em locais nobres, como o entorno do Panthéon, por exemplo. E sobretudo com alguns projetos de reurbanização de vulto, como o proposto para o entorno da Torre Eiffel e do Trocadero, a pretexto de preparar a cidade para os Jogos Olímpicos de 2024. Como é candidata à Presidência, embora não passe do patamar de 4% de intenções de votos, suas iniciativas são vistas mais como oportunismo eleitoral do que fruto de uma visão urbanística fundamentada. Sem contar que está levando a dívida municipal a um patamar inédito”.
O atento olhar das gárgulas
Mas Selma coloca esse momento em perspectiva: “Os problemas são ínfimos perto do que Paris continua a oferecer em termos de beleza, cultura e encantamentos. A maioria dos turistas nem sequer se dá conta deles, continua a flanar pelas ruas, museus e cafés em deleite absoluto”.
Durante os seis anos em que aprofundou as pesquisas para o livro, Selma Santa Cruz pôde entender melhor essa relação entre eras diferentes que faz de Paris um “museu vivo a céu aberto”. “Embora o livro pareça histórico, já que trata dos personagens e episódios do passado que moldaram a alma de Paris, acho que ele provoca reflexões interessantes sobre o presente”, disse Selma. “Sobre quanto é fundamental, por exemplo, conhecer e valorizar o passado para se avançar. Sem o olhar da história não se reconhece o valor da civilização que foi construída até aqui. E que, a despeito de todas as suas imperfeições, representa o melhor que o ser humano conseguiu alcançar em sua longa trajetória para se afastar da barbárie. Paris é a prova de que é possível incorporar o novo sem abrir mão do antigo e das próprias raízes. E de que essa química é um combustível poderoso para a vitalidade de uma metrópole.”
Esse apreço pela história, segundo Selma, agiu para poupar Paris da devastadora onda de “cancelamento” que causou tanta destruição em cidades dos Estados Unidos e do Reino Unido. “Parisienses e franceses têm se mostrado refratários às imposições da chamada cultura woke, como a destruição de monumentos históricos”, disse. “Ou a exigência de ‘higienização’ de obras literárias e artísticas para adequá-las a novas concepções de raça, gênero e linguagem e a exclusão do estudo dos clássicos dos currículos escolares. Durante as recentes celebrações pelo bicentenário da morte de Napoleão Bonaparte, por exemplo, as vozes que propunham a retirada de seu túmulo do Hôtel des Invalides foram rapidamente silenciadas. E as livrarias andam repletas de obras de intelectuais franceses contra a cancel culture, que denunciam como ideologia importada dos Estados Unidos e uma ameaça à identidade nacional.”
Selma Santa Cruz encontrou um sentido mais amplo em sua obra. “Valorizar os fundamentos e conquistas dessa civilização ocidental que tantos se empenham hoje em ‘desconstruir’. E destacar a importância de conhecer a história, como antídoto aos radicalismos e intolerâncias”, afirmou. “Por trás das especificidades da história de Paris e da França, é da trajetória humana que se fala, com suas lutas e superações, avanços e retrocessos, sempre que se resgata o passado.”
Para Entender Paris nos mostra esse ponto de vista mais panorâmico, mais complexo da vida de uma cidade. Um dia, Anne Hidalgo não será mais a prefeita da cidade, e o presidente Emmanuel Macron não mais frequentará o Palácio do Eliseu. Mas as marcas do passado continuarão servindo como parâmetro, somando séculos de experiência humana, vigiando em silêncio os passos que damos. Como continuam a nos observar as gárgulas no alto de Notre-Dame, que sobreviveram ao incêndio de 2019. E que provavelmente sobreviverão a todos nós.
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Fazem falta os artigos da Selma aqui na Oeste…
Já estive em Paris por umas cinco ou seis vezes e me encanto a cada viagem nessa cidade que resgata alguma história de nossas vidas, porém a última vez(2019) o número de moradores de rua era impressionante, inclusive famílias inteiras dormindo em estações de metrô, sem contar a junção de lixo acumulada pelos cantos.
Que seja bem-vindo um livro que vem bem a calhar, para o resgate da civilização ocidental, de tantas conquistas em direitos e civilidade, hoje destinada a regredir à barbárie. Há somente um ponto de discórdia em relação à reportagem: Roma. Dá de mil.
Tive o privilégio de morar dois anos na Cidade Luz. É impossível não se apaixonar por Paris.
Paris… toujours Paris!