A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) surgiu em outubro de 1917, a partir da implantação pioneira de uma ideologia — o comunismo. Fundada por Vladimir Ilich Lenin no fim da Primeira Guerra Mundial, cresceu até somar uma centena de nacionalidades vivendo em 15 repúblicas. Ocupava as terras do Leste Europeu até o Oceano Pacífico e do Círculo Polar Ártico até os desertos do sul da Ásia, cobrindo 22,4 milhões de quilômetros quadrados — o equivalente a 2,6 vezes o tamanho do Brasil.
A União Soviética ocupava um sexto da superfície terrestre. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o poder da URSS cresceu ainda mais. Sete países da Europa Oriental foram transformados em seus satélites no bloco comunista — Albânia, Hungria, Bulgária, Checoslováquia, Alemanha Oriental, Polônia e Romênia (a Albânia se descolou do grupo em 1968).
Uma máquina poderosa de propaganda internacional transformou esse bloco soviético no “paraíso do proletariado”. Lá, todos teriam os mesmos direitos, garantidos pelo sistema socialista. Os êxitos da URSS eram divulgados com orgulho por seus seguidores mundo afora — as conquistas esportivas, a bomba nuclear mais devastadora de todos os tempos, o primeiro satélite artificial, o primeiro astronauta em órbita, etc. Tudo indicava que o domínio do resto do mundo pelo comunismo soviético era apenas questão de tempo.
E, no entanto, o paraíso não era tão perfeito quanto os militantes da causa declaravam. O primeiro-ministro Nikita Khrushchev (entre 1958 e 1964) foi quem denunciou os crimes cometidos por seu antecessor, Josef Stalin, que deixou um rastro de 20 milhões de mortes.
O paraíso dos trabalhadores era na verdade um inferno de incompetência e repressão. Quem reclamasse era mandado para os campos de concentração da Sibéria, chamados gulags. A KGB, polícia de Estado comandada pelo Partido Comunista, dominava cada detalhe da vida. Os desfiles militares e as medalhas olímpicas escondiam a realidade de um império paralisado pela própria inépcia. Pior: não havia esperança. A população vivia num estado de penúria e medo permanentes. E os figurões do PC tinham direito a uma vida de luxo e poderes absolutos.
Glasnost & perestroika
Khrushchev foi substituído por outros burocratas carrancudos. Mas nada funcionava, a não ser para os altos funcionários do PCUS. Nos anos 1980, a URSS estava paralisada. O modelo centralizador comunista não conseguia tirar o império do ponto morto. Para piorar as coisas, seu grande rival, os EUA, vivia um momento econômico especialmente exuberante. Desde 1981, era presidido por um republicano convicto, o ex-ator Ronald Reagan.
Reagan percebeu que a URSS estava desabando. E resolveu acelerar o processo. Apostou numa série de avanços no campo do armamento nuclear e num improvável projeto de mísseis no espaço que ficou conhecido como Star Wars. A União Soviética não tinha fôlego para responder a mais esse desafio estratégico.
A catástrofe da usina nuclear de Chernobyl, em 1986, havia mostrado quanto o regime estava apodrecido em todos os detalhes. O próprio Partido Comunista parecia ter reconhecido isso e permitiu que, em 1990, o reformista Mikhail Gorbachev virasse o líder máximo do império. Gorbachev, que sempre foi um comunista convicto, implantou no esclerosado aparelho de Estado duas palavras russas que logo se tornariam conhecidas no resto do mundo: glasnost e perestroika.
Glasnost quer dizer “abertura” e representava uma tentativa de dar um fôlego de liberdade de expressão e informação ao regime. Perestroika (“reestruturação”) ofereceu aos cidadãos alguma liberdade política, além de traços de livre mercado. Eram mudanças ousadas, mas limitadas. Mesmo assim foram boicotadas pelos burocratas do Partido Comunista, que temiam perder seus privilégios estatais.
A coragem de Gorbachev possibilitou que, em 1989, os países-satélites da Europa Oriental derrubassem suas ditaduras comunistas, uma após a outra. Sem sua visão de estadista, o Muro de Berlim não seria derrubado em 9 de novembro de 1989. Em 1990, Gorbachev não só aceitou que as Alemanhas Oriental e Ocidental se reunissem num só país como não se opôs a que a Alemanha reunida fizesse parte da organização militar antissoviética, a Otan. Propôs a extinção das armas nucleares até 2000 e anunciou profundos cortes na máquina militar soviética. Seus atos foram tão ousados que Gorbachev recebeu o Prêmio Nobel da Paz.
Dezembro de 1991
As repúblicas que formavam a URSS também começaram a se revoltar. A ordem rígida implantada por Lenin se diluía. E, quanto mais a realidade ficava exposta, mais os comunistas temiam perder o poder. Bateu o desespero.
Durante três dias de agosto de 1991, Gorbachev e sua família foram aprisionados por golpistas da linha dura do PC em sua “dacha” (casa de veraneio) na Crimeia. O império soviético havia se transformado numa república das bananas. O golpe, patético em sua execução, saiu pela culatra. Uma sensação surda de “basta” se espalhou pela maior nação do mundo. O comunismo estava sendo derrotado em seu berço.
A essa altura, o presidente da Rússia já era Boris Yeltsin (Gorbachev teoricamente tinha mais poder, pois era o presidente de toda a União Soviética). Yeltsin, rompido com o PC, era um político conhecido por: 1) não acreditar em nenhuma tentativa de ressuscitar o Partido Comunista; 2) ser corajoso o suficiente para criticar os privilégios da elite do partido; e 3) beber além da conta, mesmo para os padrões russos. Criou uma cena histórica ao enfrentar tanques nas ruas de Moscou e libertar Gorbachev.
Ao enfrentar os golpistas, Yeltsin ficou mais forte. Passou, na prática, a dividir o poder com Gorbachev, que se aferrou em sua concepção de que a URSS poderia viver para sempre, com alguns ajustes. A derrubada de um sistema político encastelado no poder do maior país do mundo havia sete décadas já seria difícil e perigosa. Mas havia um fator complicador: 27 mil armas nucleares prontas para lançamento. E ninguém sabia exatamente quem estava controlando o arsenal.
Esse xadrez se resolveu no mês em que o mundo virou de cabeça para baixo. Em dezembro de 1991, a mais poderosa ditadura do mundo começou a se desmanchar de vez. E caiu sem praticamente nenhum tiro. O mundo viveu durante um mês a sensação de que tudo era possível — o desastre e o sonho. Entre o caos e a possibilidade de uma convivência pacífica, livre, construtiva entre as maiores potências do mundo na época. Assim foi o mês mágico de dezembro de 1991, no distante mundo de 30 anos atrás:
1 dezembro 1991
A URSS está em profunda crise financeira. Boris Yeltsin, na prática, governa o país desde a tentativa de golpe de agosto. Mesmo sendo contra, ele aceita financiar, com emissão de rublos, o pagamento dos salários do aparelho estatal da URSS, especialmente do corpo diplomático. Medidas de encolhimento do Estado são anunciadas, incluindo o fechamento de ministérios. Nesse mesmo dia, eleitores da Ucrânia votam o destino do país. Gorbachev faz apelos para que os ucranianos não se desliguem da União Soviética, para não provocar uma “catástrofe”.
3 dezembro 1991
Resultado da eleição: “a Ucrânia nasceu”, declara o novo presidente do país, anunciando o desligamento da URSS. A independência do país recebe a aprovação de 90% dos eleitores. Boris Yeltsin imediatamente reconhece a independência do novo país como “parte do desejo democrático da vontade de seu povo” (os três pequenos países bálticos — Estônia, Latvia e Lituânia — já haviam se retirado da União Soviética em agosto).
4 dezembro 1991
Mikhail Gorbachev alerta: com a partida da Ucrânia, “a pátria (URSS) está ameaçada e o maior perigo é a crise de Estado”. O que ele diz já não importa muito.
6 dezembro 1991
O Pentágono declara que as 27 mil ogivas nucleares soviéticas aparentemente estão em mãos do governo central (chefiado por Mikhail Gorbachev). Mas a situação não está tão clara na recém-independente Ucrânia, que armazena 4 mil ogivas da URSS em seu território. O governo americano teme que, com o aparente caos político, armas soviéticas possam cair em mãos de “terroristas, ladrões ou países em guerra”.
9 dezembro 1991
Os governos da Rússia, Ucrânia e Bielorrússia declaram o fim oficial da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. E o nascimento de uma nova “Comunidade de Estados Independentes”, mantendo ação coordenada em assuntos de defesa, relações internacionais e economia. “A URSS, como sujeito do direito internacional e da realidade geopolítica, está deixando de existir”, declaram os três governos nacionais. Mikhail Gorbachev afirma em entrevista a uma TV francesa que as consequências do desmantelamento da União Soviética vão fazer a sangrenta guerra civil na Iugoslávia parecer uma “piada”. “Neste fim de semana”, notou Celestine Bohlen, comentarista do New York Times, “três das repúblicas da União Soviética provaram que, ao contrário das repúblicas da Iugoslávia, estão dispostas e podem se encontrar e negociar sobre o futuro comum”.
11 dezembro 1991
Mikhail Gorbachev se esforça para ganhar o apoio dos militares da extinta URSS. Acusa os líderes da Rússia, Ucrânia e Bielorrússia de terem dado um “golpe de Estado”. Robert M. Gates, diretor da CIA, adverte que a fragmentada URSS vive a mais severa instabilidade desde a fundação, em 1917.
13 dezembro 1991
Numa longa entrevista com jornalistas soviéticos, Mikhail Gorbachev admite pela primeira vez a possibilidade de renunciar ao cargo de presidente da URSS. A entrada na Comunidade de Estados Independentes é aprovada pelo Parlamento russo por 188 votos a favor e 6 contra.
14 dezembro 1991
Cinco países da Ásia Central — Casaquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Turcomenistão e Uzbequistão, somando 50 milhões de habitantes — decidem romper com a URSS e entrar oficialmente na Comunidade proposta por Rússia, Ucrânia e Bielorrússia. Gorbachev fica furioso com o fato de Boris Yeltsin ter passado a informação para o presidente americano George W. Bush antes de contar a novidade a ele.
16 dezembro 1991
O secretário de Estado norte-americano, James Baker, faz sua primeira visita a Moscou depois da mudança política. Traz com ele suprimentos médicos e alimentos de emergência. O novo governo pede a Baker que reconheça a independência da Rússia, Bielorrússia e Ucrânia. O então secretário de Defesa (e futuro vice-presidente), Dick Cheney, já havia rompido a neutralidade, declarando à revista Time que a União Soviética, “como a conhecemos”, havia acabado e que Mikhail Gorbachev não estava reconhecendo a nova realidade.
17 dezembro 1991
Boris Yeltsin recebe o secretário James Baker para uma reunião no Salão Catarina do Kremlin. “Bem-vindo ao solo russo e a este edifício russo”, diz Yeltsin, deixando claro que não era mais solo e edifício soviéticos. Ministros soviéticos do Interior e da Defesa passam por cima das ordens de Gorbachev e comparecem à reunião. Não havia mais dúvida: os militares haviam abandonado o conceito de União Soviética e apoiavam a nova Comunidade de Yeltsin.
18 dezembro 1991
Yeltsin declara ao jornal italiano Repubblica que espera a renúncia de Gorbachev do cargo de presidente da URSS. O Parlamento Soviético, já sem poder, se “reúne” com um único orador presente, um comunista linha-dura chamado Viktor Alksnis. E existe uma única pessoa ouvindo seu discurso: ele mesmo. Os comunistas passaram o dia bravos com o fato de Gorbachev ter arrumado tempo para tirar fotos com a banda de rock alemã Scorpions, e não para ressuscitar o comunismo.
19 dezembro 1991
Boris Yeltsin faz todos os gestos para evitar uma dualidade de poder na nova Rússia. Toma o controle do Ministério das Relações Exteriores, do Parlamento e até do escritório presidencial, ocupado por Mikhail Gorbachev. Com um decreto, institui a MSB, nova sigla que substitui a velha e temida KGB. E levanta a possibilidade impensável até então: que a Federação Russa aderisse à Otan. Justamente a organização militar criada para combater a União Soviética. Outros países, especialmente a Hungria e a Checoslováquia, querem seguir o mesmo caminho.
22 dezembro 1991
Mais uma pá de cal na extinta URSS: em Alma Ata, 11 das antigas repúblicas soviéticas se declaram independentes e assinam o acordo para a formação da Comunidade de Estados Independentes. Elas “aceitam” a renúncia de Mikhail Gorbachev, embora o líder soviético não tenha renunciado ainda. A declaração final de Alma Ata deixa claro: “Com a formação da Comunidade de Estados Independentes, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas deixa de existir”.
23 dezembro 1991
Os EUA entregam 75 toneladas de alimento para a região de Moscou, em crise. O gesto demonstra uma possível nova era de colaboração entre dois países que se prepararam para a destruição mútua. Foi o primeiro ato desse tipo desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Mikhail Gorbachev ainda não renunciou, mas universidades americanas começam a convidar o último presidente da URSS e sua mulher, Raissa, a darem aulas nos EUA.
25 dezembro 1991
No Kremlin, às 19h32, a bandeira vermelha com a foice e o martelo da URSS é recolhida pela última vez. Mikhail Gorbachev renuncia a seu posto de presidente da URSS. Entrega os códigos de disparo dos mísseis nucleares a Boris Yeltsin. Gorbachev deixa o governo aos 60 anos, com direito a uma aposentadoria de 48 mil rublos por ano. Ironicamente, por causa do fracasso econômico de seu próprio governo, esse dinheiro equivale a meros US$ 40 mensais. Recebe também um apartamento em Moscou, uma dacha de férias, dois carros, 20 guarda-costas e acesso gratuito à rede de saúde.
26 dezembro 1991
No Kremlin, é hasteada pela primeira vez a bandeira branca, azul e vermelha da nova Federação Russa. Gorbachev sugere que vai descansar um tempo e ressurgir para a vida pública por meio de uma ONG, a Green Cross, fundada dois anos depois.
27 dezembro 1991
Companhias americanas iniciam a corrida para assinar contratos de investimento na exploração dos principais produtos da antiga URSS: petróleo, algodão, madeira, metais e minerais. A maioria das iniciativas parte de empresas relativamente pequenas. No entanto, a situação econômica ainda está caótica na Comunidade. Dos 2 mil negócios acertados, apenas 50 funcionam de verdade. O maior investimento, de US$ 65 milhões, parte da cadeia de lanchonetes McDonald’s.
30 dezembro 1991
Já como líder máximo oficial da nova Federação Russa, Boris Yeltsin faz uma declaração de tom sóbrio na TV, dizendo que a “Rússia estava gravemente doente” e que a vida seria dura para os russos durante os próximos meses, mas que a situação estaria melhor no final de 1992. A Rússia passou a viver um clima mais leve, mais livre, longe dos burocratas comunistas cinzentos e mal-encarados. Um vídeo espalhou para o mundo a nova imagem da Rússia: Boris Yeltsin, provavelmente alcoolizado, mas feliz, dançando num show de música pop.
Trinta anos depois
Três décadas se passaram desde a agonia e a morte da União Soviética.
Boris Yeltsin compreendeu com o tempo que, para modernizar o país, não bastava mudar o nome, mas limpar o aparelho estatal de seus parasitas, o que ele não conseguiu. Acabou ameaçado de impeachment por ter “desmantelado a URSS”. Renunciou no último dia de 1999 e deixou em seu lugar um ex-burocrata da KGB chamado Vladimir Putin. Yeltsin morreu em 2007, aos 76 anos.
O PCC está há 72 anos no poder. O PC da União Soviética ficou 74
O sonho de uma Rússia eficiente e livre deu lugar a um regime de gângsteres. Hoje, Putin ameaça a Ucrânia e os países bálticos num projeto pouco disfarçado de reconstruir o império soviético (que ele chama de “Rússia Histórica”). E, como nos tempos da URSS, o país continua ineficiente, gastando tudo o que tem em armas do apocalipse.
Na China, um dos objetivos principais do ditador Xi Jinping é não permitir que o Partido Comunista ceda seu poder absoluto, como aconteceu na antiga União Soviética. A lição de 1991 foi entendida ao contrário. O PCC está há 72 anos no poder. O PC da União Soviética ficou 74.
Quanto a Mikhail Gorbachev, hoje com 90 anos, continua criticando a “arrogância” dos Estados Unidos, a quem acusa de promover a atual crise da Ucrânia. Foi um líder visionário como não se vê mais. Mas não soube reconhecer seu erro de insistir no apego ao passado. Segundo a Enciclopédia Britânica, Gorbachev “confirmou que um sistema comunista não pode se tornar democrático. O fracasso econômico foi a razão-chave para o colapso da URSS. A alternativa socialista à economia de mercado se revelou uma ilusão”.
Leia também “O dono do mundo”
Prezado Dagomir, seus artigos são riquíssimos! Uma verdadeira aula de história com muita didática. A cada semana que passa, seus artigos têm se tornado a minha prioridade. Parabéns pelo trabalho!
Que aula de história. Parabéns Dagomir.
Parabéns, Dagomir Marquezi e revista Oeste, por essa belíssima reportagem.
O socialismo é passado desastroso que ainda nos assombra. A lavagem cerebral a que os jovens foram submetidos precisa ser revertida. A humanidade, guiada pelos seus (falsos) próceres, está caminhando para a destruição dos mais comezinhos valores morais, éticos e religiosos. Mas, vamos lutar para reverter tudo isso (dentro da lei e da ordem).
URSS estava tão debilitada que aceitou imediatamente o pagamento de US$ 60 bilhões oferecido pela Alemanha (Ocidental) para a compra da parte oriental de seu território, ocupado pela União Soviética desde a segunda guerra do século XX. Era muito dinheiro mas a URSS estava tão mal das pernas que a volumosa soma não lhe deu para muito.
Excelente.Essa desgraça do comunismo não deveria ter sido posta em prática , pois só trouxe , fome,miséria e falta de liberdade.
Excelente artigo que merece vários desdobramentos.
Artigo para ser estudado nas aulas de História! Parabéns ! muito bom e esclarecedor!
Faltou revelar o fato de que a “abertura” foi programada e realizada pela própria KGB. Há farta historiografia sobre o tema.