Pular para o conteúdo
publicidade
Edição 96

Ficção científica sobre coisas permanentes

Em Um Cântico para Leibowitz, Walter M. Miller Jr. descreve um mundo apocalíptico, que procura a redenção pelo catolicismo

Pedro Henrique Alves
-

“Um apaixonado por literatura tem o dever moral de atravessar certos prados e colinas textuais”, disse-me um poeta certa vez. Não sei exatamente se concordo com isso, pouco me dei o trabalho de pensar em deveres literários. Penso nos livros como uma espécie de garimpo intelectual. Por isso, o que seria um “livro dever” para alguns, para mim funciona melhor se o vejo como um “livro necessário”. Uma espécie de expedição a ser traçada sem muitas desculpas ou floreios filosóficos. Ilíada, Divina Comédia e Lusíadas são tesouros difíceis de ser negados. Mais que dever, são uma necessidade espiritual.

Não foi com espanto que o tal poeta me indicou um livro pouco conhecido e normalmente encontrado na sessão geek das livrarias. Ele colocou Um Cântico para Leibowitz, de Walter M. Miller Jr. (1923-1996), uma ficção científica, ao lado de tantas sumidades literárias mundiais.

Um Cântico para Leibowitz versa sobre uma tríade histórica de um mundo pós-apocalíptico. A Terra foi destruída por um desenfreado bombardeio de armas nucleares. As múltiplas explosões quase extinguiram a humanidade. Os que sobraram se tornaram errantes de desertos, componentes de turbas semitribais, marginalizados mutantes genéticos, devido à alta radiação das explosões. Ou religiosos da remanescente Igreja Católica e suas ordens.

A obra é dividida em três partes: 1) Fiat Homo (“Faça-se o Homem”); 2) Fiat Lux (“Faça-se a Luz”); e 3) Fiat Voluntas Tua (“Seja Feita a Sua Vontade”). Foi publicada, inicialmente, como três novelas na revista The Magazine of Fantasy and Science Fiction, entre 1955 e 1957. Posteriormente, foi reestruturada pelo autor para se tornar um único volume. Miller — como será obviamente percebido no livro — é partidário da teoria da “história cíclica”. Segundo essa tese, as escolhas humanas e civilizacionais seguem um padrão mais ou menos linear de nascimento, desenvolvimento, estagnação e destruição ou desintegração.

A trama de Miller narra esse renascer civilizacional, após 600 anos do armagedom nuclear, bem como o seu “redesenvolver” e a sua “redestruição”. Girando em torno de uma fictícia e santa figura norte-americana, São Leibowitz, o escrito narra três linhagens de religiosos da Ordem Albertiana de Leibowitz. A primeira (Fiat Homo) tem como personagem principal um recém-chegado à ordem, o Irmão Francis Gerard. Ocorre em um contexto que se assemelha à Idade Média. A Ordem de Leibowitz é a encarregada da Santa Sé para ser o receptáculo e o guardião de documentos e escritos que restaram do apocalipse nuclear.

Irmão Gerard encontra, no deserto penitencial, nos arredores da abadia, o que parece ser um bilhete do até então venerável Leibowitz à sua esposa, datado de quando o prodigioso santo ainda era casado e pagão, antes de ser ordenado sacerdote católico. Esse bilhete traz uma proeminência ao humilde e recatado irmão, que, ainda perseguido pelo seu superior, segue fiel o seu caminho de guardião e copista das obras remanescentes da civilização do pré-dilúvio nuclear.

A mulher de duas cabeças

A segunda fase da obra (Fiat Lux) articula uma época que parece ser o novo renascimento. O ano é 3174, a mesma abadia de Gerard é o epicentro da redescoberta da eletricidade, bem como o centro de curiosidade intelectual e o motivo de expedições de cientistas de toda a América povoada. O renascimento não jaz somente na ciência, mas também na política: formas rudimentares de repúblicas começam a pulular, ainda que o cerne desta seção da obra sejam abertamente os embates entre fé e ciência.

Miller conseguiu unir um entretenimento jovem com altíssimas discussões éticas e filosóficas

Por fim, temos a terceira fase do livro (Fiat Voluntas Tua), momento em que, no ano de 3781, a humanidade já havia superado tecnologicamente a contemporaneidade de nós, leitores. O centro da trama continua sendo a mesma abadia e seus muros de pedra. No entanto, o superior da ordem agora tem de lidar com a iminência de uma nova hecatombe nuclear mundial e as cada vez mais recorrentes debandadas éticas da sociedade. A abadia não é mais somente uma biblioteca do mundo, mas também um centro de tecnologia e estudo — local que o autor, desde o início da primeira parte da obra, faz questão de destacar e manter como centro norteador de práticas de fé, caridade e hospitalidade.

Miller conseguiu unir um entretenimento jovem com altíssimas discussões éticas e filosóficas. Ele não foi o primeiro a fazer isso, mas sem dúvida foi um dos melhores. Os opostos paradoxais da realidade abordada freneticamente se cruzam na trama do norte-americano. A estupidez humana e a serenidade de alguns homens. A fé na ciência e a ciência da fé. A bondade irracional e a maldade inexplicável. O eterno constante e fugaz momento.

E como a ficção fantástica costuma andar unida às tramas futuristas, a melhor ilustração desses opostos paradoxais jaz na própria obra. Trata-se da bondosa e imoral, amável e bizarra, pagã e sedenta de batismo Sra. Grales, uma bicéfala vendedora de tomates, que sempre tenta abordar o abade em busca de batizado para a sua segunda cabeça, natimorta. Tal personagem grotesco, que estampou capas e ilustrações famosas da obra em edições estrangeiras, tem lugar especial no enredo de Miller. Talvez seja um dos que mais geram insights durante a leitura. É, com certeza, a figura que o autor mais se dedicou em trabalhar em sua escrita.

Capa do livro “Um Cântico para Leibowitz” | Foto: Divulgação

A religião invade o mundo geek

Walter M. Miller Jr. foi um homem que encontrou ainda muito jovem as faces obscuras da história. Após o ataque de Pearl Harbour, em 7 de dezembro de 1941, ele decidiu se alistar na Força Aérea. Foi radiotelegrafista e atirador de retaguarda nos aviões americanos. Participou de inúmeros bombardeios na Itália. Em um deles, ajudou a destruir o que era o mosteiro mais antigo do mundo: o Mosteiro Beneditino de Monte Cassino. Tal ataque marcou-o para sempre. Durante três décadas, ele sofreu de estresse pós-traumático.

Após a guerra, casou-se com Anna Louise Becker, com quem teve quatro filhos. Em 1947, converteu-se ao catolicismo romano. O que faz todo sentido ao lermos a referida obra. Como profissão, no pós-guerra, escolheu a engenharia. Talvez por isso, e não à toa, São Leibowitz tenha sido também um engenheiro, que ajudou na destruição da humanidade. E que, depois de perceber sua participação na destruição, tenha se convertido ao catolicismo, chegando até a se tornar padre e santo. Não é difícil especular os paralelos reais entre a alma da obra e a alma, as inclinações e os sentimentos do autor. A obra é um romance da própria alma de Miller.

Ele jamais conseguiu vencer a depressão provocada pela guerra. Em 11 de janeiro de 1996, Walter M. Miller Jr. se suicidou, em Daytona Beach, com um tiro de revólver. Esta é, aliás, outra pitada obscura que mistura obra e biografia do autor. Irmão Gerard, da primeira parte da obra, morre violentamente com uma flechada na cabeça, após voltar de uma visita ao papa.

Entre a década de 1950 e 1960, muitas obras de ficção utilizaram-se da temática religiosa para desenvolver uma crítica social e ética às guerras, às tecnologias bélicas e a governos; uma espécie de romantismo atualizado, uma ressaca moral da literatura anglófona. Um Cântico para Leibowitz é uma delas. Outras: Um Estranho numa Terra Estranha, de Robert Anson Heinlein, Um Caso de Consciência, de James Blish, e Behold the Man, de Michael Moorcock. Toda vez que o mundo está por um fio, e a civilização sente o gosto cítrico do vômito imoral em sua boca, a religião soa como redentora, culpada ou apaziguadora. A novidade, todavia, foi a religião invadir o mundo geek juvenil, nerds que costumavam visitar feiras de fanfic serem convidados a refletir sobre a roda da história, sobre fé e ciência, sobre eutanásia, ética política e princípios morais.

Capa do livro “Um Cântico para Leibowitz” | Foto: Divulgação

Os arroubos egocêntricos e prepotentes do homem

O livro de Miller é o melhor dos citados acima. A abordagem paradoxal transfere ao leitor uma visão panorâmica da questão civilizacional primordial: avançar e progredir é preciso, tecnologias e ciências são partes inerentes à curiosidade e à capacidade racional humana. Não há como impedir suas benesses e seus males. Mas o ponto-chave para compreender a obra não está na projeção futura. O livro é uma ficção científica que volta os olhos para as coisas perenes, para as ordens e as instituições, que permanecem, apesar de avanços e quedas civilizacionais.

Não foi à toa que Miller escolheu o catolicismo para ilustrar a epopeia. Assim como foi a Igreja Católica que sobreviveu aos bárbaros após a queda de Roma e os educou, os converteu e os civilizou, da mesma forma foi a Igreja Católica, em Um Cântico para Leibowitz, a instituição chamada a persistir, martirizar-se, guardar e desenvolver os espólios de uma civilização perdida em egos, destroços materiais e morais.

Leia também “O livro esquecido que expôs a psicopatia comunista”

1 comentário
  1. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Comprei o livro, mas ainda não o li. Depois desse artigo com certeza será uma das primeiras coisas que farei. Ler o livro.

Anterior:
O ídolo dos lacradores
Próximo:
Carta ao Leitor — Edição 241
Newsletter

Seja o primeiro a saber sobre notícias, acontecimentos e eventos semanais no seu e-mail.