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Presidente Jair Bolsonaro acena com uma máscara em agosto de 2020 | Foto: Antonio Scorza/Shutterstock
Edição 96

Uma guerra sem nexo

Lutar contra a vacina pode ser uma posição pessoal; não pode ser um objetivo oficial de quem governa

J. R. Guzzo
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De todas as violências feitas por governos, organizações privadas e outras aglomerações sociais contra a liberdade, talvez nenhuma se iguale em matéria de sordidez à militância pró-vacina obrigatória. É fascismo em seu estado mais puro — na verdade, é alguma coisa pior, pois nem o regime fascista mais alucinado jamais pensou em obrigar as pessoas, incluindo crianças de 3 anos de idade, a se vacinarem contra o que quer que seja. É falsa ciência, no sentido de que sustenta, como fato provado, a existência de efeitos imunizantes que ainda se encontram em observação por parte dos fabricantes e da comunidade cientifica. É, enfim, uma violação grosseira de um dos mais elementares direitos universais — aquele segundo o qual nenhum cidadão é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa a não ser em virtude da lei.

A vacina obrigatória é apenas a expressão dos anseios de ditadura que a epidemia espalhou entre autoridades e burocratas

É falso que “o direito de todos” deve prevalecer sobre o direito do indivíduo, como prevê a legislação — por esse raciocínio, o direito à saúde, ou a não ser contaminado, seria maior que o direito de não se vacinar. Isso poderia valer se a vacina contra a covid efetivamente impedisse a contaminação. Mas ninguém pode garantir isso, a começar pela indústria farmacêutica — tanto que o Brasil já aplicou mais de 300 milhões de doses e rola por aí, à toda, uma “terceira onda”, como haverá, no futuro, uma quarta, quinta ou trigésima primeira. É, também, uma agressão direta ao preceito de que cabe ao médico, e só a ele, o direito de receitar medicamentos para os seus clientes — da mesma forma que só o médico pode indicar uma cirurgia, um tratamento de quimioterapia ou qualquer outro cuidado com a saúde. Não é um ministrinho do Turismo da Austrália nem um governadorzinho qualquer, desses 27 que há por aí, que podem ir injetando substâncias farmacêuticas no seu organismo, não é mesmo? É mentira, enfim, que a vacina contra a covid seja a “mesma coisa” que a vacina contra a pólio e outras doenças infantis, de virtudes provadas além de qualquer dúvida; nem os laboratórios dizem que é.

A vacina obrigatória é apenas a expressão dos anseios de ditadura que a epidemia espalhou entre autoridades e burocratas, quase sempre gente que nunca foi eleita para nada, pelos quatro cantos do mundo. Há dois anos eles tiram enorme proveito do poder que ganharam para dar ordens a populações em pânico — abrem, fecham, permitem, proíbem, mandam, desmandam, prendem, soltam. São tratados como gente importante. Levam cada vez mais vantagem. O ministrinho da Austrália, por exemplo, ganhou seus 15 minutos de fama mundial proibindo o tenista Novak Djokovic de participar de um dos principais torneios do circuito internacional de tênis. (Foi copiado de imediato pela França, onde o presidente da República disse que um dos seus objetivos de governo é “irritar” quem não tomou vacina.) Também virou, de um instante para o outro, um herói da esquerda pelo mundo afora. (É claro: não há a mais remota possibilidade, nunca houve, de ver a esquerda a favor da liberdade, qualquer tipo de liberdade, em qualquer causa e em qualquer lugar.) Hoje querem que você tome duas doses de vacina; amanhã vão querer três, depois de amanhã, quatro e depois disso alguma outra coisa, até o fim da vida.

A vacina contra a covid, num mundo com mais equilíbrio e mais vergonha na cara, deveria ser uma opção livre: quem quer toma, quem não quer não toma, ficando os governos obrigados a fornecer para todos as duas doses básicas, mais a dose de reforço. Qual poderia ser a dificuldade com isso? Se os que não quiserem se vacinar não ameaçam a saúde de ninguém, pois o vírus continua a correr mundo com vacina ou sem vacina, é problema deles, e só deles, se tomam ou não. Mas o mundo, hoje, não é um lugar de equilíbrio. Na verdade, não há nada mais distante da realidade do que a ideia de uma vacina abundante, disponível para todos e voluntária, como qualquer outro tratamento médico. A vacina contra a covid, hoje, se transformou numa questão puramente política para governos, partidos, mídia e quem mais pretende ter alguma influência na sociedade. A facção que aproveita a covid, e o pânico causado em torno dela através de autoridades e comunicadores, para impor soluções de repressão, quer que a vacina seja obrigatória — é mais uma arma para juntar-se ao lockdown, à exigência de testes, às proibições de fazer isto ou aquilo, ao “passaporte” sanitário e ao resto da camisa de força que querem impor à população. A esquerda, naturalmente, é a favor da vacina obrigatória — ela está sempre a favor de uma ditadura mundial permanente, e não ia perder essa chance de suprimir direitos e liberdades individuais. Não está nem aí para a imunização ou qualquer aspecto médico-científico; quer o Estado dando ordens e pronto.

E o outro lado? O diabo, nessa história, é que não há o “outro lado” — pode haver no mundo das ideias, mas não há na vida real. É muito simples: lutar contra a vacina, como programa de governo, é algo francamente absurdo. Pode ser uma posição pessoal; não pode ser um objetivo oficial de quem governa. A vacina anticovid é uma conquista científica de primeira grandeza; em pouco mais de um ano, um prazo de rapidez inédito, a indústria farmacêutica mundial desenvolveu um imunizante que contribuiu de maneira decisiva para o combate à epidemia, sobretudo na redução do número de mortos. Não funciona como um escudo absoluto, capaz de oferecer 100% de proteção. Mas tem sido extremamente eficaz. Há poucos casos de efeitos colaterais graves. E os médicos, em peso, recomendam que se tome a vacina — o que parece um argumento bem decisivo a seu favor. As pessoas, com certeza, deveriam ter a liberdade de tomar ou não a vacina. Mas não é assim que está sendo na vida como ela é. Aí, no mundo das coisas concretas, as autoridades vêm impondo cada vez mais a obrigatoriedade — e certamente têm fortes apoios na opinião pública. Declarar guerra à vacina, à essa altura e nessas condições, não faz nexo. Cada um tem pleno direito à sua opinião, é claro, mas os governos não dispõem deste espaço. Sua obrigação é fornecer as vacinas, apenas — e não ficar fazendo, ao mesmo tempo, campanha contra.

Não há um único caso nesses 300 milhões, nenhum, de alguém que foi forçado a se vacinar

A vacina compulsória é um ataque à liberdade individual, sem dúvida — mas existe, no caso, um fator que muda a natureza da questão. O fato, indiscutível, é que as pessoas querem tomar vacina; no Brasil, pelo menos, a grande maioria quer. Fizeram fila para tomar vacina. Ficaram felizes quando receberam sua carteirinha de vacinação. Ninguém, aí, achou que a sua liberdade estava sendo ameaçada; o governo pode estar obrigando, mas, e daí, se a população quer ter essa obrigação? A vacina, na verdade, foi um objeto de desejo intenso. Todo mundo esperava ansioso a chegada das vacinas à sua “faixa etária”; até houve, naturalmente, escândalos com peixes graúdos que furaram a fila. Era uma neura: o sujeito tomava a vacina e se achava o autor de um ato heroico, ou o beneficiário de um favor do céu. Todo mundo tirava selfies na hora da picada, mandava mensagens para causar inveja aos conhecidos do Whatsapp, se orgulhava de ser um “vacinado”. O Brasil aplicou mais de 300 milhões de doses da vacina anticovid — pouco mais de 160 milhões receberam uma primeira dose e quase 150 milhões estão com a vacinação completa. Não há um único caso nesses 300 milhões, nenhum, de alguém que foi forçado a se vacinar. Por que raios, então, não deixar quieta essa história? Se todo mundo quer tomar a vacina, por que se meter numa cruzada contra a vacinação?

A guerra que o presidente da República declarou à vacina da covid é incompreensível. Ele diz que faz isso por uma questão de princípio — para defender “a liberdade”. Não cola. Se se  estivesse realmente empenhado em lutar pela liberdade no Brasil, já teria comprovado isso com ações em muitos episódios anteriores, ao longo dos seus três anos de governo. Sua posição deveria ser uma campanha popular; virou, rapidamente, apenas uma implicância. O Brasil foi um caso de sucesso de categoria mundial na aplicação da vacina — em pouco mais de um ano, vacinou quase toda a sua população adulta, sem atropelos ou maiores problemas. É algo para se orgulhar, especialmente no caso do governo federal, de onde vieram as verbas para pagar a conta toda. Mas não. O presidente decidiu ser o líder de uma seita — e por conta disso arrumou para si próprio o papel que seus adversários sonhavam: o do inimigo número 1 daquilo que foi e continua sendo um dos maiores desejos da sociedade brasileira. Por que isso? É um mistério.

Bolsonaro já se referiu a defensores da vacina como “tarados”. Pior: ataca violentamente um serviço do seu próprio governo, a Anvisa, repartição que tem por dever funcional cuidar de questões como a vacinação. É como se a agência fosse um departamento do PT — ou um órgão de governo que faz oposição ao governo. Se a Anvisa é subordinada a ele, por que não cumpre a orientação do presidente da República? Faz parte do governo do Paraguai, por acaso? O espaço de autonomia das agências públicas não pode servir de desculpa para uma aberração dessas. O ministro da Saúde, ao mesmo tempo, é um dos maiores incentivadores da vacina anticovid; será que ele também está fazendo oposição? É impossível, enfim, estimar quantos votos Bolsonaro poderia ganhar para as eleições presidenciais de 2022 com a sua cruzada contra a vacinação. Por que, se os eleitores são maciçamente a favor da vacina, ele simplesmente não fica calado e vai falar de outro assunto? É um mistério dentro do mistério.

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