Sexta-feira, 3 de novembro. Observam-se as imagens do satélite geoestacionário Goes, depois das 12 horas, com referência ao horário de Brasília. Nelas, verificamos dois conjuntos de trovoadas em formação. O primeiro cortou a ponta oeste do Estado de São Paulo, em um contorno perfeitamente delineado em seção noroeste-sudeste, indicando claramente seu avanço e desenvolvimento em sentido ao interior paulista. O segundo ainda se encontrava no interior do Paraná, quase na fronteira sudoeste com São Paulo. Sua aparência, nestes estágios iniciais, era mais robusta, com células de trovoadas embutidas em grande quantidade de nuvens, das mais variadas alturas. Em uma visão ampla e geral, a assinatura era clara: teríamos um alinhamento significativo de trovoadas provocadas pelo avanço de um sistema frontal frio, com grande possibilidade de um embate severo.
O quadro descrito não foi novidade para quem está a acompanhar os últimos artigos, quando demonstramos o confronto das Altas Polares Móveis (APMs), que são frias, com a persistente extensão do anticiclone semi-estacionário do Atlântico Sul (quente), formando ou não ciclones extratropicais (CET), e que permaneceu praticamente fixado na área ao redor dos Estados da Região Sul e São Paulo durante setembro de 2023 (vide “Menos chuva, mais fogo”). Na ocasião, verificamos que o fator gradiente foi marcante, ocasionando sistemas atmosféricos mais significativos e devidamente registrados pelos satélites de órbita polar, dada a sua repetitividade.
Pois bem, como relatado com antecedência, a mesma situação ainda persistiu em outubro, sendo também registrada pelos satélites que acabaram localizando as anomalias de baixas e altas temperaturas, em relação à normal de 1991-2020, exatamente nos mesmos lugares (as palavras “baixas” e “altas” aqui são simplesmente referências, pois os valores ditos “anômalos” são muito pequenos). O que importa foi que a posição do gradiente se manteve, agora mais suavizado, em um setor ao redor dos 30oS, precisamente sobre a região Sul do Brasil, embora a maior anomalia fria se estenda até a região da península Antártida e mar de Weddell, bem como quadros análogos verificados sobre o oceano polar Austral, do Sul da África, da Austrália e do Pacífico, todos conectados à Antártida.
Este fato indicou que o corredor da Trilha das Depressões causada pela ação dos APMs ainda está por dominar as latitudes mais baixas, trazendo sucessões significativas de tempo meteorológico para a região, alternando as trocas atmosféricas. A diferença verificada para o final de outubro e entrada de novembro, culminando no evento de 3 de novembro (com reflexos até o dia 7), englobou dois aspectos que mudaram o quadro geral, especialmente na hora do embate de massas de ar com características bem distintas. Primeiramente, tivemos um enfraquecimento do anticiclone semi-estacionário do Atlântico Sul sobre boa parte do Brasil. Além do alívio deste bloqueio, a maior umidade disponibilizada pela condição de El Niño seguiu a circulação remanescente de sentido noroeste-sudeste por todo o Brasil. Uma maior quantidade de umidade ajuda a potencializar as trovoadas.
A situação do tenebroso 3 de novembro nasceu antes, no fim de outubro, com sucessivas mudanças do quadro meteorológico regional no sul da América do Sul, ocasionadas por APMs fracas e remanescentes vórtices derivados de ciclones extratropicais totalmente decaídos, especificamente oriundos do Pacífico. Assim, a estrutura que se montou ainda no em 2 de novembro não foi totalmente independente, como geralmente observa-se com o embate ocasionado pela ação de grandes APMs. Nestes termos, no dia em questão, verificamos uma aglutinação de anticiclones polares móveis, como descreve a Escola Francesa de Climatologia Dinâmica. Um deles, já bastante enfraquecido, vindo do Pacífico, juntou-se a outro mais fortalecido e veloz, que seguiu por sobre a Argentina.
O resultado naquele instante foi bem difuso, com extensa nebulosidade que cobriu do centro-leste da Argentina, margeando a costa atlântica, até o Paraná, mas já com imensas células de trovoadas sobre o Paraguai, às 17 horas de Brasília, enquanto que sobre o Brasil, vários Estados do Centro-Oeste, Nordeste e Norte seguiam com trovoadas isoladas, oriundas dos processos convectivos típicos de final de tarde, inerentes ao período de mudança de estação.
No mesmo dia 2, por volta das 20 horas, o setor frontal frio já estava estabelecido, mas com pouca intensidade. Depois de sua formação, observou-se a estruturação do vórtice de um ciclone extratropical, cujo centro de baixa pressão atmosférica em superfície se posicionou entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai, cobrindo toda área continental e oceânica, ao redor de pelo menos 30 0km nesta localização. No mesmo momento, o sudeste do Paraguai e o oeste do Paraná e de Santa Catarina foram tomados por trovoadas fenomenais.
Porém, com o passar das horas e a entrada de 3 de novembro, o vórtice do ciclone não se estabilizou, tornando-se um gigantesco amontoado de nuvens de baixa e média altura, especialmente porque a circulação do vento frio da retaguarda do sistema frontal estava mais intensa no setor continental, sendo mais forte do interior do Paraná, para mais fraco, ao sul de Mato Grosso. Contudo, seu centro de baixa pressão em superfície permaneceu, mas se reorganizou somente em 4 de novembro — conforme será relatado mais à frente.
Por se tratar de um fenômeno de grande escala (sinóptico), o delineamento do setor frontal do ar frio e seco seguiu avançando sobre o território tomado por ar mais quente e úmido. O resultado viria com a formação de diversas células de trovoadas perfeitamente alinhadas de noroeste-sudeste, desde Mato Grosso a São Paulo, apresentando aglomerados de células de trovoadas, com dezenas de nuvens Cumulonimbus perfilados no setor frontal.
Diferentemente de setembro e parte do início de outubro, onde a umidade disponível ainda era menor, o recente caso apresentou não só mais umidade, como temperaturas ligeiramente mais altas por estarmos no crescente da estação de primavera. Assim sendo, com mais umidade e calor, as parcelas de ar estão mais instáveis (o ar úmido é mais leve que o ar seco) e já tendem a se elevar pelos processos convectivos na troposfera (a primeira camada da atmosfera de baixo para cima). Como o avanço do ar frio frontal ocorre por baixo, ele causa um impulso extra, removendo da superfície o ar quente e úmido e acelerando ou intensificando o processo na vertical.
Este foi o estopim! Onde naturalmente já tínhamos a sinalização de processos convectivos, eles simplesmente se avolumaram muito mais, ocasionando as trovoadas persistentes e intensas, cujos ventos internos ascendentes podem alcançar facilmente mais de 200 km/h, bem como frentes de rajadas de ventos horizontais, próximos à superfície, acima de 60km/h, em média.
Embora sistemas análogos de trovoadas tenham atingido diversos Estados, os maiores estragos foram proporcionais ao tamanho e adensamento das áreas urbanas atingidas, especialmente aquelas cujas prefeituras insistem em encher de árvores todo e qualquer buraco que encontram nas calçadas, especialmente se nestes logradouros estiverem localizados fios elétricos de distribuição ou tubulações de água e esgoto. Mas este é um tema para outra conversa.
O Estado de São Paulo como um todo foi atingido de forma severa. Na capital paulista, milhares de pessoas e estabelecimentos ficaram sem energia elétrica pela queda de fios, especialmente os que envolveram o tombamento de mais de 600 árvores. O restabelecimento do fornecimento demorou por volta de três dias em diversas localidades.
Enquanto os habitantes ainda sentiam os efeitos da passagem frontal e suas trovoadas, o dia 4 de novembro amanheceu com queda ligeira de temperaturas e céu limpo, porém, a onda criada pelo avanço frontal ainda se fez presente até o fim do dia seguinte pelo território brasileiro, pois o mesmo processo de disparar os processos convectivos, que já estavam na iminência de começarem, foi observado pelos Estados do Nordeste e do Centro-Oeste. Enquanto isso, aquele mesmo centro de baixa pressão em superfície original acabou se reestruturando e formou um fabuloso ciclone extratropical de proporções sinópticas no 4, cujo estágio de máxima maturação (fase C), durou das 6 às 17 horas, com até três camadas de nebulosidade internas ao vórtice.
Vídeos do pós 3 de novembro
O sistema foi tão grande que persistiu em fase de decaimento para além de 6 de novembro. Como ele maturou a cerca de 200 km de distância da costa do Rio Grande do Sul, a circulação de seus ventos de retaguarda ainda provocaram ondas altas e mar revolto em sentido à costa brasileira, iniciando-se mais intenso no Estado gaúcho, no dia 4, e chegando ao Rio de Janeiro, mais fraco e de quadrante sul, no dia 7 de novembro.
Embora o quadro meteorológico completo tenha sido devastador e causador de lamentáveis mortes, prejuízos e transtornos (especialmente porque prefeituras pensam na falsa sustentabilidade em vez da operacionalidade, ou seja, invertem prioridades), a situação em si não é anormal, mas enquadra-se na estação de transição que vivemos atualmente nesta primavera mais peculiar.
Situações análogas já ocorreram em 1995 e 2004, onde este último ano, em particular, restringiu-se mais à zona sul do município de São Paulo, com frentes de rajada e até micro-explosões registradas (fenômeno meteorológico eólico que envolve um significativo desabamento de ar dentro de nuvens Cumulonimbus por perda de sustentação), obrigando helicópteros a pousarem em campos de vegetação da Represa do Guarapiranga.
Pelo ponto de vista puramente acadêmico, foi um dos casos mais didáticos para fins de instrução e emprego porque envolveram diversos elementos conectados por uma gama ampla de processos. Além disto, as imagens de satélite estudadas do período revelaram que a circulação de APMs e de ciclones extratropicais ainda está bem ativa, apresentando morfologias típicas observáveis normalmente para além dos 50oS. Isto indicou que o setor frio no Hemisfério Sul ainda resiste ao seu retorno para as latitudes mais altas, persistindo a mesma localização do maior gradiente das temperaturas.
Enquanto tudo isto ocorre, ainda temos que aguentar fenomenal quantidade de asneiras proferidas nas redes por influenciador digital que, dentro da sua imensa soberba demonstrada por magnânima intelectualidade supervacânea, faz coro com o atual interventor federal dizendo que, por causa das “mudanças climáticas”, agora o Brasil tem ciclones! Meu Deus! Coleciono ciclones da América do Sul desde o meu tempo de graduação, nos idos anos de 1990! Pegaram um fenômeno corriqueiro e o transformaram em novidade? Só lembrando… Alerta aos navegantes — boletim da Marinha, cujo nome, não veio à toa!