(Por J.R. Guzzo, publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 3 de outubro de 2021)
Os deputados federais conseguiram, depois de vencer perigos e guerras maiores do que prometia a força humana, aprovar um projeto de lei indispensável para defender um pouco mais a população brasileira de um dos seus piores inimigos: o sindicato, disfarçado por trás de outros nomes, que concentra as castas mais elevadas do funcionalismo público deste país, a começar pelo Judiciário. Após quatro anos inteiros de trabalho, a Câmara transformou em lei, para não haver mais desculpas e trapaças legais, uma barreira aos salários exorbitantes pagos aos grandes barões do sistema – um milagre, realmente, levando-se em conta a natureza dos deputados brasileiros e a sua conduta habitual. Luz, enfim, na treva de sempre? Nada feito. Desde agosto a nova lei está sendo ativamente bloqueada no Senado – e sem a aprovação dos senadores, a decisão dos deputados não começa a valer.
A sabotagem está sendo praticada na “Comissão de Justiça”, atualmente sob o comando de um dos chefes do submundo que controla o Senado, após pressão do Supremo Tribunal Federal – a força que mais briga pelos interesses materiais do Judiciário. É a história de sempre: se por acaso os políticos aprovam alguma lei que vai beneficiar a maioria das pessoas, os proprietários da máquina estatal dão um jeito de usar esses mesmos políticos para anular, na prática, a lei que aprovaram. Segundo informa reportagem de O Estado de S. Paulo, do jornalista Lauriberto Pompeu, o presidente da tal comissão não nomeia, muito simplesmente, um relator para tratar do projeto no Senado – e sem relator a lei não pode andar. É uma violação grosseira da decisão que foi tomada pela Câmara. Mas e daí? O presidente do STF, Luiz Fux, não quer que a lei seja aplicada – e, se ele não quer, bem, o Senado Federal está lá para isso mesmo, cumprir ordens.
A nova lei é modesta. Estabelece, apenas, algumas regras mínimas de decência, justiça e igualdade para os salários, vantagens e privilégios que a população paga aos peixes gordos do funcionalismo público – e os peixes mais gordos do funcionalismo são, precisamente, os magistrados e demais mandarins do Judiciário. O teto legal estabelecido para os seus salários – pouco acima de R$ 39.000 por mês – é uma piada. Como até uma criança de dez anos de idade sabe, o pessoal ali pode tirar, fácil, mais de R$ 100.000 por mês – basta aplicar os “penduricalhos” que eles mesmos criam em seu favor. Trata-se de roubo legalizado: além do salário máximo da lei, juízes, desembargadores, ministros, procuradores etc. engordam sua remuneração com o pagamento de “auxílios”. Há, no momento, mais de 500 desses “auxílios” à disposição do alto funcionalismo público: auxílio-moradia, auxílio-livro, auxílio isso, auxílio aquilo. Existe, até mesmo, um auxílio-banda larga. Não é “o Estado” que paga nada disso, claro; o Estado não tem um tostão furado. Quem tira do bolso cada centavo gasto nessa lambança é o pagador de impostos, só ele.
Tudo isso, normalmente, seria apenas o prosseguimento da extorsão em câmara lenta que o cidadão sofre há anos como resultado da agressiva privatização do Estado brasileiro por parte de interesses privados – os do alto funcionalismo, para começar. Mas os donos do aparelho público, neste episódio, resolveram dobrar a aposta.
Basta pensar, durante 30 segundos, no que disse o ministro Fux a respeito do caso. Num manifesto realmente prodigioso, ele foi capaz de afirmar que os salários do Judiciário só podem ser estabelecidos pela Lei Orgânica da Magistratura – ou seja, magistrados e semelhantes não estão sujeitos a leis como a que foi aprovada na Câmara dos Deputados. Estamos, aí, em plena alucinação.
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