Mário Jorge Lobo Zagallo, o único tetracampeão da Copa do Mundo, foi o último dos heróis da Seleção Brasileira de 1958 a deixar os fãs de futebol órfãos. Em homenagem ao Velho Lobo, Oeste publica uma crônica do jornalista Augusto Nunes.
“Você não vai ouvir o jogo do Brasil? Pensei que gostasse de futebol”, disse minha mãe quando avisei que estava de saída para a sorveteria do Abbud. Ela vai ouvir o jogo contra a Suécia?, intriguei-me ao vê-la de pé a um metro do rádio, com a caçula no colo (e agora perguntando aos dois filhos sentados no sofá como era mesmo o nome do juiz). Nunca imaginara que dona Biloca se interessasse por futebol.
Eu gostava. Aos 8 anos, ia me entendendo melhor com a bola, meu pai já avisara que eu era torcedor do Palmeiras, tinha decorado antes da estréia contra a Áustria os nomes dos 22 craques da Seleção e vinha acompanhando as batalhas da pátria em chuteiras na Guerra da Suécia pelo rádio da minha avó, uma imigrante italiana que se juntara à torcida brasileira depois de descobrir que o elenco incluía um Bellini, um Mazzola, um De Sordi e um Dino Sani. Eu sabia que o time canarinho estava fazendo bonito, que Garrincha destroçara o futebol científico da comunistada russa e que, naquele domingo, o duelo em Estocolmo não se limitaria a decidir a Copa: também seria decidido se o Brasil tinha jeito.
O que eu não sabia é que seriam declarados traidores da nação em perigo, e sumariamente condenados à execração perpétua, sem direito a recursos encaminhados a instâncias superiores ou apelações julgadas por tribunais internacionais, todos os brasileiros que no dia 29 de junho de 1958 pensassem em qualquer outra coisa além da conquista da Copa. Disso eu não sabia. E gostava muito de sorvete. Acordei pensando não nos dribles de Garrincha ou num gol de Pelé, mas em picolés de limão.
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“Volto antes da metade do primeiro tempo”, comecei a explicar quando fui aparteado por um dos irmãos. “Não dá, são sete quarteirões pra ir e sete pra voltar. Fala logo que não gosta de futebol”, provocou o inimigo íntimo. Acusei-o de ter passado na casa de um amigo a tarde do duríssimo combate contra o País de Gales. “Só que ouvindo o rádio, não tomando sorvete”, ele mandou no ângulo. “Esse moleque é meio bobo”, resumiu a opinião geral meu irmão mais velho. Estava planejando um carrinho por trás quando meu pai entrou em casa e os dois times entraram em campo. Aproveitei a distração dos adversários, fingi que recuava como Zagallo para proteger a retaguarda e invadi o quarto. Precisava de uma camisa. O inverno estava em seu começo, mas o frio havia chegado.
Vesti uma camiseta do Palmeiras, sem distintivo nem número nas costas. Continuei descalço. E com aquele calção detestável que todos os menores de 10 anos usavam, feito pelas mães e tias com a amputação, milímetros acima do joelho, das pernas de alguma calça de adulto derrotada pelo tempo. Se me tratassem com mais cortesia, talvez tivesse deixado o sorvete para depois do jogo. Sob pressão é que não fico em casa mesmo, cismei. E não vou trazer sorvete para essa gente. Nem para a avó, radicalizei no momento em que o juiz, um francês chamado Messiê Guiguê conforme berrou a voz no rádio, apitou o início da partida e da caminhada rumo à sorveteria. E então estranhei a paisagem: não havia ninguém na rua da minha casa.
Nem na rua General Glicério nem na Marechal Deodoro, estranhei no segundo minuto de jogo e na primeira esquina. Nem em qualquer outra rua de Taquaritinga, espantei-me aos 4 minutos do primeiro tempo, quando cheguei ao cruzamento da General Glicério com a Duque de Caxias junto com o gol da Suécia marcado na calçada da casa do médico da minha família e transmitido pelo locutor, sem entusiasmo, pelo rádio do sobrado de um vereador que não gostava do meu pai.
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Haviam sumido das calçadas e varandas os quase 10 mil habitantes, e todos os carros estavam nas garagens ou estacionados na rua. O único sinal de vida era a voz do locutor. Achei aquilo muito estranho e pensei em desistir. Caminhei com Didi, ambos lentamente, ele em direção do meio de campo, com a cabeça erguida, a bola na mão esquerda e tranqüilizando o time, eu de volta para casa, cabisbaixo, de mãos abanando e tentando preparar-me para a capitulação humilhante que só não foi consumada porque, aos 9 minutos, Vavá empatou na frente do portão do dentista.
Todo mundo estava ouvindo o jogo, confirmou a universalização da voz poderosa que se sobrepunha ao berreiro coletivo, a mesmíssima voz agora vinda de todos os pontos cardeais, do céu e da terra, multiplicada por dezenas, centenas, milhares de aparelhos ligados na mesma emissora, atravessando todas as janelas que todas as famílias haviam escancarado. E então os ouvidos atentos como os olhos do goleiro Gilmar captaram o recado sonoro: era só seguir o caminho das casas.
Deslumbrado, compreendi que poderia tomar sorvete e ouvir o jogo, e depois desconcertar a caipirada lá em casa com o mistério da minha ubiquidade, porque nenhum parente sabia o que eu acabara de saber e não contaria nem sob tortura. Montei o novo plano com a serenidade de um Feola. O roteiro redesenhado pelas circunstâncias agora passaria ao largo de clubes, repartições públicas, associações, bares ou botequins, estabelecimentos comerciais, escolas – tudo que pudesse estar fechado ou desprovido de aparelhos de rádio.
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Subi outra vez pela General Glicério, virei à esquerda na Duque de Caxias com a elegância sutil de Nilton Santos, arranquei rente à lateral direita como Djalma Santos, parei feito Orlando diante do adversário na esquina com a Campos Salles, virei o jogo para a direita como Zito e corri para o abraço quando Vavá desempatou debaixo da segunda janela do advogado que discursava nos comícios do meu pai.
O Brasil descia para o vestiário e eu driblava o terreno da Força e Luz para virar à esquerda na esquina da Campos Salles com a Visconde do Rio Branco. O jogo estava no intervalo quando enxerguei a fachada da sorveteria. Hoje é meu dia, avisaram as portas abertas. Além de quatro homens sentados na mesa perto do rádio, lá estava um dos donos, que ouviu o pedido sem deixar de ouvir o comentarista.
Antes de terminar o palito de limão, descobri que estava sintonizado na Cadeia Verde-Amarela, liderada pela rádio Bandeirantes, e que o primeiro tempo fora transmitido por Pedro Luiz. Edson Leite narraria o segundo, soube no palito seguinte, outra vez de limão. Igualmente soberba, a voz menos veloz e mais grave que a outra avisou: “Estão começando os 45 minutos que decidirão a sorte do Brasil na Copa do Mundo”. Pedi uma casquinha de abacaxi, só para variar, levantei-me certo de que a Taça já era nossa e fiquei com cara de campeão no momento do golaço de Pelé ao lado da casa do tesoureiro da prefeitura, no fim do primeiro quarteirão do caminho de volta.
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Zagallo encaçapou de bico perto da jabuticabeira da minha professora do jardim da infância. Nem me abalei com o segundo da Suécia, marcado em frente do casarão com fama de assombrado ─ em clamoroso impedimento, soube por Edson Leite. Resolvi ganhar alguns minutos para entrar em casa no apito final, mas nem pensei em administrar a posse de bola, isso só existiria no futuro, não naquele junho em que o negócio era jogar pra frente, ou ficar driblando meio mundo, e por isso resolvi aproveitar a falta de espectadores para reproduzir os melhores lances.
Saí pela direita como Garrincha na esquina, percebi que voltara ao ponto de partida depois da quarta arrancada, sempre pela direita, e achei mais lógico avançar sem pressa. Ultrapassei o Chevrolet rabo-de-peixe do doutor Luizinho Barbosa, encobri com um chapéu o Mercury preto do prefeito, escorei a bola de cabeça junto com Pelé no portão de casa, comemorei o quinto gol com a mão na maçaneta e entrei na sala gritando “Brasil!!!”
“Chegou o único do mundo que não ouviu o jogo”, debochou o irmão mais velho. “Esse bobo não gosta de futebol”, o outro pegou-me de novo no tornozelo. Revidei com elogios à qualidade do sorvete e à voz dos dois locutores, a narração detalhada dos cinco gols da pátria em chuteiras, um sorriso de campeão do mundo e aquele brilho no olhar só concedido a quem, ouvindo o rádio, viu como jogavam os heróis de 1958.
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Até Augusto Nunes transando o Pepe, também ponta esquerda, jamais tivesse existido, embora continue existindo
Digo tratando e não transando
Mestre Augusto Nunes que maravilha de texto!!!! Parabéns!!!!
É…
Desconheço alguém capaz ao menos de grosseiramente imitar um Augusto Nunes no drible fácil com uma caneta!
Gostoso demais passear na leitura de seus textos, grande e inconfundível mestre.
Ainda existem Jornalistas no Brasil.
Poucos, é verdade, como trufas, mas existem.
Entre eles, um desses Leões da Araraquarense a quem chamam de Augusto Nunes.
Mesree Agusto Nunes uma bela homenangem ao nosso tretacampeão inesquecívevl.
Mestre Augusto Nunesum bela homenangem ao nosso tretacampeão que scerá inesquecívevl
Pois eu tinha também 8 anos e estava de cama, com febre, com dor de garganta e gripado .Aqui no Sul é muito frio. MInha mãe deixou eu deitar na cama dos meus pais, pois o radio estava na cabeceira, no lado onde meu pai dormia. Três anos depois assisti no cinema o filme sobre a copa do mundo. Aqui só chegou três anos depois! Foi um sacrifício conseguir entrar numa seção diurna no domingo Muita gente queria assistir. A Gazeta Ilustrada Esporiva especial consegui depois de chorar com o dono da banca de jornal do bairro para conseguir um exemplar, um ano depois… Eu tasmbém ouvi na emissora essa aí, que tinha um jargão que gostava muito de petir… as bandeiras vão tremulando, tremulando torcida brasileira .Ah, em São Paulo comecei a gostar do Palmeiras porque tinha jogadores aqui do Rio Grande do Sul… do Inter, mais propriamente dito ou do Renner extinto.
Mestre Augusto Nunes ,como sempre,um pelé das palavras.