Existem livros que nascem para contornar nossas ideias; sempre há uma ou mais obras que delineiam o que e como pensamos o mundo que nos circunda, geralmente essas obras são os ditos “clássicos” — segundo Northrop Frye e Allan Bloom. Concordo, devo dizer. Simplesmente não tem como sair inerte de uma suada e lenta caminhada através de Ilíada, nem ficar existencialmente indiferente às subidas e descidas de Divina Comédia. Todavia, quando pisamos no campo da literatura de ciências humanas — aqui, especificamente, no recanto conservador e liberal —, não é nada raro encontrarmos livros que já nascem com tal status de “clássico” sem, muitas vezes, passar pela maturação das décadas ou, até mesmo, séculos. É o caso, por exemplo, de Caminho da Servidão, de Friedrich von Hayek ou o árduo estudo de Anne Applebaum em Gulag: uma História dos Campos de Concentração Soviéticos. Nesta semana, a editora LVM — da qual sou o editor —, através do clube de assinatura Ludovico, trará ao público brasileiro uma dessas obras que já nascem “clássicos”, A Consciência e Seus Inimigos: um Tratado Conservador sobre Os Principais Erros da Esquerda, de Robert. P. George.
Lançado originalmente em 2013, nos Estados Unidos, somente agora ele sai no Brasil sob o selo “Clube Ludovico”. A ideia inicial do livro era a de ser uma coletânea de artigos sobre bioética e direito natural, entretanto a edição foi de tal forma bem construída que, à medida que lemos o tratado, mal nos damos conta desse seu caráter de “conjunto de artigos”. Robert P. George é um dos mais distintos professores de Princeton. Católico romano fervoroso, foi conselheiro de bioética do presidente norte-americano George W. Bush e, em 2019, foi considerado por vários analistas políticos, dos mais variados espectros políticos, como um dos mais respeitados intelectuais conservadores dos EUA na contemporaneidade.
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O livro é corajoso de muitas maneiras, pois seus assuntos variam do aborto ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, da liberdade de expressão e religiosa ao antissemitismo e livre emigração, abordando de forma única tais temáticas à luz do direito natural. A coragem disso tudo, todavia, está somente no fato de que, com o advento das histerias e recorrentes censuras progressistas, quaisquer opiniões, não importando quão bem fundamentadas sejam, se não rezam a liturgia programática do esquerdismo epidêmico que nos embala, logo se tornam uma espécie de fascismo inconteste.
O que o jurista e filósofo norte-americano nos oferece, entretanto, é aquilo que muitas vezes os conservadores sentem faltar em suas percepções naturais da realidade, isto é, as bases racionais firmes nas quais encostarem seus sensos comuns diariamente praticados. A Consciência e Seus Inimigos, assim, logo se torna um robusto alicerce que sustenta a visão conservadora de mundo sem recorrer ao mero esforço retórico superficial, mostrando aos curiosos, aos inimigos e aos acadêmicos sinceros que o pensamento conservador não se trata de um amontoado irracional de conclusões rápidas e preconceituosas, mas, antes, de uma análise profunda e arraigada na mais sofisticada e coesa filosofia e ciência.
O aborto, por exemplo, não é tratado aqui através de retóricas meramente sentimalescas — tal como muitos conservadores e progressistas encerram suas argumentações sobre o assunto —; o casamento homoafetivo é analisado não com bíblias e excomunhões, mas com história, sociologia e filosofia, tudo de forma sofisticada e sem dar às conclusões do autor qualquer teor de rancor ou preconceito ante os homossexuais e seus direitos adquiridos. O que Robert procura aqui é fundamentar seus pressupostos em uma filosofia sólida e racional, e não criar jurisdições para calar expressões e retirar direitos. Como veremos adiante, o pressuposto básico das ideias de Robert P. Georg é justamente a inalienável necessidade da liberdade de consciência dos indivíduos. Assim sendo, existe um paradoxo lindo na obra dele, pois, ao mesmo tempo que ele defende ardorosamente pautas conservadoras polêmicas, como o casamento tradicional, no passo seguinte ele estende um largo escudo sobre todos os homens, independentemente de suas crenças e opiniões político-sociais; ao promover uma das defesas mais geniais que pessoalmente li sobre a liberdade de consciência e as demais liberdades acessórias, Robert coloca na consciência — expressão no homem da ordem natural — a missão de perceber a correta ordem do cosmo, e não em legislações restritivas ou em imposições morais de grupos de poder. Ao contrário, George define o autoritarismo político e o moralismo ideológico como os principais inimigos da consciência dos homens.
O ponto alto de A Consciência e Seus Inimigos, desta forma, está na defesa da liberdade de consciência, da autonomia de cada pessoa, pois, acredita George, da mesma forma que não há dignidade no determinismo teológico que pré-fabrica salvos sem dar aos indivíduos a chance de buscarem, por vontade própria, as vias do salvador, não haveria méritos e virtudes morais se os indivíduos fossem obrigados a se casarem somente com o sexo oposto, ou não abortassem somente por força de lei. A dignidade humana é intrínseca à condição de ser de cada indivíduo — desde a sua concepção —, a razão consciente é o instrumento que movimenta tal condição, e a liberdade é o modo como ela se revela no mundo. Atacar a liberdade, desta forma, é o mesmo que impedir o homem de se expressar plenamente, é caducar ou corromper a extensão daquela dignidade humana intocável.
Assim sendo, apesar de tratar de questões polêmicas numa defesa bioética conservadora, a grande mensagem da obra consiste em mostrar que somente indivíduos livres e conscientes podem agir racionalmente; e que, caso queiramos defender posturas, legislações e modos de existências, sejam elas progressistas ou conservadoras, antes devemos garantir a liberdade de consciência de cada indivíduo, bem como a liberdade de que eles as expressem sem amarras. O que começa parecendo ser um mero tratado conservador sobre costumes, termina como um dos escritos mais brilhantes sobre a liberdade de consciência — isto é, um dos pilares fundamentais do liberalismo clássico. Aquilo que, por exemplo, Ludwig von Mises defendeu em sua magna obra, Ação humana; por outras vias — as do conservadorismo católico —, Robert P. George faz em A Consciência e Seus Inimigos.
O roteiro Robert para esse livro cobre então um vasto campo ainda pouco pisado pelos conservadores brasileiros, isto é, o da fundamentação ética, jurídica e filosófica de seus porquês, e por isso está aí a urgência desse escrito para o nosso país. Em tempos no qual o conservadorismo brasileiro ainda escorrega num ativismo abobalhado e confuso, quando não fideísta e pouco racional, fechar-se num estudo aprofundado dos princípios e pressupostos do pensamento conservador pode ser um tratamento existencial sem igual. Com certeza A Consciência e Seus Inimigos está em meu top três de lançamentos editoriais conservadores neste ano. Se não “O” mais profundo tratado filosófico-moral conservador lançado nos últimos anos aqui, com certeza é um deles.