Quem sou eu, do alto dos meus 33 anos, para dar conselhos aos senhores e senhoras, mas, como todo bom observador da humanidade que tento ser — e, vá por mim, eu tento com afinco —, acredito que algumas dicas eu posso dar, principalmente em relação à leitura e escrita. Digo isso porque, mais uma vez, agora por um pai desconhecido, fui questionado sobre como tornar alguém um leitor.
Já escrevi sobre isso aqui em “A leitura em tempos de smartphone”, mas, agora, relendo o ensaio, acredito tê-lo transformado mais em uma crítica sociodigital do que em uma crônica pedagógica — “minha culpa, minha tão grande culpa”. Tentarei fazê-lo, por fim, neste ensaio.
Sou um leitor assíduo, como devem imaginar que todo bom editor de livros deve ser, mas também sou pai, marido, colunista, católico e, de vez em quando, cozinheiro e jogador de futsal. Devo ser outras coisas também, mas o principal está aí. Uma das perguntas mais recorrentes que se acumulam sobre mim é a seguinte: “Como você arranja tempo para ler tanto?”. Levando em conta que o sistema de rotação planetária é igual para todos os terráqueos, que as benditas 24 horas é um dos poucos valores ecumênicos da humanidade, acho justo que tal pergunta seja feita.
+ Leia mais notícias de Cultura em Oeste
Na data de escrita deste ensaio, 29 de maio do ano 2024 de nosso Senhor Jesus, já li cerca de 17 livros desde o dia 1º de janeiro deste mesmo ano. Se contarmos Laranja Mecânica, minha releitura de dezembro do ano passado, finalizada em janeiro do ano seguinte, são 18. Isso dá uma média de 3,4 livros/mês, e é por aí mesmo. Não falo isso exatamente com o orgulho que vocês imaginam.
As leituras que faço exigem rapidez e atenção, duas coisas que nem sempre dão liga. Busco ser o mais atento possível, por isso toda vez que leio estou com um lápis na mão a fim de fazer anotações, pois, mais a frente, na leitura ou até mesmo depois dela, preciso voltar para recapitular algum sentido, contexto ou até mesmo nomes.
“Nem sempre é possível ser moroso num mundo de cobrança por resultados, planilhas incompreensíveis de Excel, boletos infindáveis e poup-ups frenéticos”
Pedro Henrique Alves
No geral, leio bem os livros, ainda que sempre fique com a sensação de que poderia tê-lo feito com mais atenção e reflexão. Porém, esse é o ônus de ter apenas uma vida, 24 horas e a missão de editar livros profissionalmente. Dessa forma, nem sempre é possível ser moroso num mundo de cobrança por resultados, planilhas incompreensíveis de Excel, boletos infindáveis e poup-ups frenéticos.
Para começar a ler, leia…
Numa realidade dessa, excetuando o fato de ser editor profissional, acredito que, nos demais pontos, todos nós, mais ou menos, compartilhamos as mesmas apreensões. Assim sendo, e para responder à pergunta de como leio tanto, a única resposta possível é: educando minha vontade e adequando-a à minha rotina.
Leia mais artigos de Pedro Henrique Alves
Geralmente a pergunta acima vem seguida de “eu gostaria de ler mais também” ou “gostaria de começar a ler” — e a dica do tio Pedro é somente uma: domine sua atenção e abra a porcaria do livro, oras. Parece simplório, eu sei, mas venha comigo que eu te explico.
Existe uma mística relativamente tola entorno do livro, como se ler fosse algo para estranhos eruditos, adolescentes desocupados e profissionais do intelecto. Idiotice. Ler nunca será para todos, isso é fato, pois nem todos, infelizmente, têm acesso à alfabetização e nem querem pagar o preço de domar sua vontade e guiar sua atenção. No entanto, outro fato é que a leitura será sempre acessível a todos aqueles que sabem ler e tenham vontade para tal. Sempre será possível acordar mais cedo ou dormir mais tarde para ler um pouco que seja. Seria assim para qualquer outra tarefa que te excite mais.
“A dificuldade primeva que afasta um leitor não é dificuldade textual, mas a de concentração”
Pedro Henrique Alves
Muitas pessoas pensam que o fator que impede alguém de ler — supondo que esse alguém, obviamente, seja alfabetizado — é alguma dificuldade intrínseca do livro. Se estivermos falando da Crítica da Razão Pura, de Kant, ou da Metafísica, de Aristóteles, ok, eu ei de concordar que tais textos exigem um certo preparo intelectual. Mas calma, estou falando, num primeiro instante, de Jogos Vorazes, de Suzanne Collins, de A Pequena Caixa de Gwendy, de Stephen King, de O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brontë, e de Oliver Twist, de Charles Dickens.
Leia também: “Escritora Roseana Murray anuncia livro, depois de ser atacada por pitbulls”
Ninguém disse aqui que para bem ler um livro essa tarefa precisa ser desprazerosa e entediante. As obras citadas acima, por exemplo, são livros sobre os quais todos que sabem ler com atenção conseguiriam se debruçar sem nenhuma dificuldade de interpretação. E, com certeza, ao finalizá-los, sentiriam o prazer intelectual único de ter desvendado uma realidade nova.
Além disso, as dificuldades mecânicas comuns de um leitor inicial: a de fazer as devidas pausas da narrativa nas vírgulas e demais pontuações e, consequentemente, a sensação de impossibilidade de se chegar à compreensão frasal devido a esse atropelo, são naturalmente vencidas conforme o leitor se enverga sobre o texto e percebe a cadência natural da escrita.
Algo como o andar atabalhoado de um potro recém-nascido. Ele cai umas cinco ou dez vezes, mas, devido à persistência, em poucos minutos, já está correndo pelo pasto. Por isso, afirmo que a dificuldade primeva que afasta um leitor não é dificuldade textual, mas a de concentração. A dificuldade de emendar um esforço de vontade real de ler algumas páginas diárias. E aqui está o centro nevrálgico do problema.
Domando a vontade, direcionando a concentração
Se você me acompanha nesta coluna, sabe que não sou muito afeito a métodos de leitura. Acredito que existam poucas portas que realmente separam um indivíduo da vida de leitura constante, fundamentalmente, para dar nome aos bois, seriam somente a alfabetização e o interesse.
Meu avô estudou até o 4º ano do fundamental, na zona rural de São Bento do Sapucaí — interior de São Paulo. Mas diariamente lia seu jornal matutino — todo ele, de cabo a rabo —, algum livro aleatório que dava sopa na sua frente e a Bíblia antes de dormir. Conheci há uns dois anos, na Rodoviária de São Paulo, um gari que lia cerca de 20 livros ao ano, acordo com ele. Quando o conheci e puxei papo, ele estava lendo A Revolução dos Bichos, de George Orwell, durante seu horário de almoço. Nenhuma desculpa sobrevive ante um leitor dedicado.
Leia mais
“Vivemos em uma sociedade que priorizou a diversão, a facilidade estupidificante e o prazer fútil. E numa sociedade assim pedir para alguém ler dez páginas diárias de Memórias póstumas de Brás Cubas parece ser muito”
Pedro Henrique Alves
Usando agora a minha experiência pessoal, e os vários debates sobre esse tema dos quais participei, carrego uma certeza profunda de que o principal inimigo da leitura é a educação da vontade. A incapacidade de redirecionarmos nossa atenção das distrações que nos cercam para o livro que decidimos que iremos ler — seja por diversão, estudo ou profissão.
Veja a seguinte manchete do último 24 de maio de um dos maiores jornais do país: “Preguiça de ler? Confira onde assistir Memórias póstumas de Brás Cubas”. Essa manchete parece que foi feita para ilustrar meu ponto. Vivemos em uma sociedade que priorizou a diversão, a facilidade estupidificante e o prazer fútil. E numa sociedade assim pedir para alguém ler dez páginas diárias de Memórias póstumas de Brás Cubas parece ser muito.
Leia também: “Editora do RS mostra livros destruídos depois de inundação de depósito com 900 títulos”
A preguiça de ler não deveria abrir escapes para outros meios mais fáceis, mas sim impelir-nos a vencermos a preguiça domando a nossa vontade. É assim com quase tudo. Como acordar cedo para procurar emprego, ir à academia ou conquistar uma dama. O primeiro passo é sempre superar a acomodação e reagir ante a preguiça. Então, se me permitem, refarei a chamada: “Se está com preguiça de ler, supere esse vício — seja por brio, necessidade ou vergonha na cara — e leia Memórias póstumas de Brás Cubas”.
Nossa vontade, apesar do que Schopenhauer afirma, não é dona de nossa liberdade, pois nem sempre fazer o que queremos é sinônimo de arbítrio consciente. Sou mais dado ao conceito de liberdade negativa de Kant, que afirma em Crítica da Razão Prática que ser livre é justamente fazer o que não se quer. Isto é: guiar-se pela razão consciente, e não se deixar levar por qualquer outro fator sentimental ou contextual.
“Ler tornou-me mais atento, mas prudente e observador, como já disseram tantos: a literatura nos faz viver inúmeras vidas em uma só existência”
Pedro Henrique Alves
A vontade, aliás, afirma Jules Payot, em seu famoso livro A Educação da Vontade, quando mal direcionada, é causa de nossos fracassos mais profundos. Aqueles que nos frustram existencialmente como pessoas mais do que como um profissional ou estudante, pois essa prostração nos torna servos de impulsos e pulsões — e não senhores de nós mesmos.
Não sou um cara extremamente controlado, acredite, mas uma das vantagens que obtive em direcionar a minha atenção a fim de me tornar leitor é, aos poucos, ver a direção escolhida se transformar em um prazer aliado — e, há sete anos, profissão. E que Deus me ajude agora a controlar minha compulsão alimentar. Amém.
Leia também: “Edifícios biografados”
“O que não nos contam, por fim, é que o leitor nasce a partir do momento que decide ler em vez de passar mais um story adiante, dar mais um checada no Twitter/X ou assistir a mais um episódio da série”
Pedro Henrique Alves
Ler tornou-me mais atento, mas prudente e observador, como já disseram tantos: a literatura nos faz viver inúmeras vidas em uma só existência — o que naturalmente seria impossível sem os livros. Um dos incríveis efeitos de se viver muitas vidas é ser mais comedido e mais resiliente, afastar as ansiedades militantes e abarcar a temperança da vivência. Afinal, as virtudes dependem não só de boa pedagogia e contexto social, mas da experiência temporal e humana que só podem ser adquiridas mediante ao mergulho na cultura que privilegiou essas mesmas virtudes, em suma, a civilização Ocidental. E, adivinhem, a melhor forma de fazer tal mergulho ainda continua sendo por meio do livro.
Como nasce um leitor
O que não nos contam, por fim, é que o leitor nasce a partir do momento que decide ler em vez de passar mais um story adiante, dar mais um checada no Twitter/X ou assistir a mais um episódio da série. Simples assim. Não existe leitor de nascença ou atávico. Existe tão somente o leitor que se faz leitor, ninguém pode fazer isso por ele, somente ele mesmo.
Então, minha dica é esta: esqueça os métodos e as bruxarias pedagógicas de booktubers e especialistas que vendem cursinhos no Instagram. Sente a sua bunda nalgum canto e leia. Leia apesar do que o cerca, cale a sua mente e foque nas linhas do livro. Pronto, é assim que se pare um leitor.
Hoje se lê muito mais do que se lia décadas atrás, porém … com qual assimilidade? Essa é a preocupante não funcional.