Eu não sou iludido quanto à política, nunca fui, e esse é um dos poucos orgulhos que ostento publicamente. Na verdade, sou terminantemente cético nessa área. Sou um conservador, mas isso não significa que sou um crente de agendas, da direita à esquerda, na verdade, estou sempre pronto para ver com pessimismo as promessas políticas dos homens de todos os lados.
E é com esse olhar um tanto quanto chato, confesso, que olho para entusiastas de personalidades políticas do século 20. Lembro-me de, certa vez, escutar um amigo entusiasta de Winston Churchill rasgar elogios a ele numa apresentação, e, diante daquela chuva de elogios, eu só conseguia pensar: “Será que a mulher e os filhos de Churchill confirmariam tais virtudes quase santas aqui apresentadas(?), ou até mesmo o próprio adulado concordaria com esta ‘puxação de saco’?”.
Obviamente que eu mantive o sorriso no rosto e aplaudi, ao final da fala do colega, pois a etiqueta da desfaçatez ante a posições que porventura não concordo completamente é um dos códigos conservadores do qual sou adepto. Muitos chamariam de falsidade, eu chamo de “aplauso obsequioso a um amigo que depois chamarei para tomar uma cerveja a fim de esclarecer suas posições”.
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Meu ceticismo é diferente, ele não impede que eu admire pessoas, a diferença é que busco fazê-lo de forma tranquila e desapaixonada. Gosto de pensar que personalidades políticas que admiro, como G. K Chesterton, Margaret Thatcher, Ronald Reagan, Winston Churchill, George Orwell e Roger Scruton não eram nada perfeitos. Isto é, tinham defeitos de caráter mesmo, coisas que nos espantariam caso convivêssemos com eles.
Erros, aliás, que muito provavelmente eu e você rechaçaríamos e até mesmo denunciaríamos publicamente. Mas também pessoas que se tornaram célebres porque, em determinado contexto, foram incrivelmente hábeis, astutas e valorosas. Homens e mulheres que, apesar de suas falhas grotescas em setores de suas vidas e atuações, em certo momento, agiram de forma absurdamente acertadas, tensionando como líderes completos o barco de uma geração rumo aos portos corretos.
Um livro sobre Churchill e Orwell
É o caso de dois dos citados acima, Churchill e Orwell. Recentemente, terminei a leitura de Churchill & Orwell: a luta pela liberdade, de Thomas E. Ricks. O autor da excelente obra não foi Prêmio Pulitzer à toa. Com uma narrativa envolvente, muito bem fundamentada, o texto é uma acurada análise biográfica tanto de Churchill quanto de Orwell.
No intercalar dos capítulos, os investigados vão ganhando cores diferentes daquelas das biografias mais conhecidas de ambos. O foco do autor é mostrar como o escritor e jornalista Orwell e o escritor e político Churchill trilharam caminhos paralelos de defesa do indivíduo em uma época de massificação da sociedade por ideologias totalitárias. Assim sendo, o que a biografia que Ricks nos oferta é bem mais do que uma exposição de acontecimentos. É antes uma análise opinativa da vida de ambos sob o prisma das suas atuações na luta pela liberdade no século 20.
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Quando digo acima “caminhos paralelos” é para enfatizar que, teoricamente, Orwell e Churchill sempre estiveram em campos ideológicos opostos, mas que, num determinado instante, caminharam juntos — ainda que em posições diferente — para um mesmo fim. Ainda que o político tory tenha pisado brevemente nas casas dos liberais “progressistas”, os chamados whigs, não há dúvida quanto sua à visão conservadora de mundo. Do outro lado, igualmente, apesar do romancista ter sido um policial do Império Britânico na Índia em sua juventude adulta, ele sempre ostentou ideias socialistas quanto à cultura e à economia capitalistas.
No entanto, em ambos, havia algo muito mais profundo do que meras opiniões sociais e perlas politiqueiras. Os dois eram irrefreáveis defensores da liberdade individual em suas mais arraigadas extensões, profundos e capazes analistas da sociedade para além da política de momento. Ambos viam que a defesa da liberdade era muito mais que somente um discurso para empolgar idílicos e militâncias. Era o próprio ato de defender quem nós somos em seu sentido mais íntimo.
A percepção do conservador
Ao estudarmos os discursos de Winston Churchill, por exemplo, ‒ e aqui vai outra recomendação de mais um ótimo livro, Churchill e a ciência por trás dos discursos, do brasileiro Ricardo Sondermann — percebemos que o primeiro-ministro britânico ostentava uma impressionante capacidade de percepção civilizacional. O nazismo e o comunismo, para ele, não eram problemas pragmáticos, meramente geopolíticos e militares, como 99% dos políticos de seus dias pensavam, mas antes um problema de ataque à alma da civilização ocidental, uma espécie de bombardeamento ideológico às estruturas culturais e éticas daquilo que faz o Ocidente ser o espaço de liberdade e princípios éticos definidos no mundo.
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Ainda assim, Churchill foi também um dos melhores estrategistas militares do século 20. O conservador, muito antes dos alemães darem o passo decisivo de guerra, ao invadirem a Polônia, já enxergava a iminência imparável de uma segunda grande guerra por meio de Adolf Hitler e seus lacaios. A sua grande diferença, como Thomas E. Ricks constantemente nos lembra em seu livro, foi que o conservador conseguiu ver o panorama completo do problema enquanto seus pares bicamerais apenas tratavam o câncer do nazismo na base da conversa e band-aids midiáticos. Aqui, eu me refiro, é claro, ao patético Naville Chamberlain, que literalmente morreu pensando que Hitler poderia ser parado na base do chá das cinco e acolhimento afetuoso.
Um socialista incomum
Orwell, por sua vez, não foi um socialista comum. Como fica claro em sua maturidade literária, principalmente depois de escrever A Revolução dos Bichos, sua experiência na Guerra Civil Espanhola fez com que ele se recusasse a seguir o rebanho socialista na Europa. Percebeu antes de muitos intelectuais adeptos do socialismo que a agenda vermelha internacional havia se tornado uma máquina de esmagamento das liberdades individuais e dos direitos básicos dos indivíduos, que os socialistas adeptos à União Soviética estavam se tornado uma espécie de gado, nada mais que isso.
“O livro 1984 é uma articulação dessa percepção de Orwell. O totalitarismo é uma máquina de dominação mental, histórica e social dos indivíduos”
Pedro Henrique Alves
Dessa forma, o escritor decidiu que o momento era de criticar de dentro, mostrar as contradições latentes desse esquerdismo que perseguia opositores e aliados com furor assassino, matando não só os corpos, mas a mais básica das liberdades dos homens, a de expressão, enquanto criava uma máquina cultural dantesca que tentava silenciar até mesmo a dissidência nas ideias. O livro 1984 é uma articulação dessa percepção de Orwell. O totalitarismo é uma máquina de dominação mental, histórica e social dos indivíduos.
Personagens com falhas
Para ambos, mostra-nos Ricks, a liberdade individual e de ideias não era algo discutível. E deixar que isso fosse questionado seria o princípio do caos social, o mortuário de uma civilização que possibilitou e concretizou não só a prosperidade material, mas o campo para que pessoas com ideias diferentes convivessem e se relacionassem livremente sob certa harmonia — o que, em termos de história política, é quase um milagre. Costumeiramente damos a isso o nome de democracia. Não está errado, mas eu chamo de “milagre ocidental”.
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Ricks, no entanto, não poupa críticas a ambos. Como quando Orwell insistia em manter uma visão anticapitalista sem entender que a liberdade de expressão e as demais que ele tanto defendia estão intimamente ligadas à liberdade econômica pregada no livre mercado. Ou quando Churchill, afogado em bebedeiras e egocentrismos, ditava ordens militares fundamentadas apenas em sua percepção da guerra, o que não raro custava vidas e soldos escassos dos britânicos.
Além disso, na biografia desapaixonada do jornalista e historiador, há também uma crítica aguda a Churchill como pai, relapso e pouco presente, o que, para um conservador mais ou menos ajustado, é quase escandaloso. E ao teimoso e quase preferencialmente doente Orwell, o qual, depois da morte da amada, isolou-se em uma tempestuosa ilha na Escócia, quase pedindo para morrer de pneumonia devido ao seu pulmão degradado.
O autor de Churchill & Orwell: a luta pela liberdade, assim, colocou rosas saudosas nos túmulos literários de ambos os personagens, mas intencionalmente não tirou os espinhos dos caules. A biografia extremamente acurada não arrancou, sequer passou corretivo, nas falhas do político e do literato, mas também fez saltar entre os arbustos de falhas algo que muitos esqueceram hoje. Há valores inegociáveis na política que fundamentam a própria existência civilizacional. Para defendê-las não se pede amostragem de santidade, crachás ideológicos e nem testes de urina, apenas coragem e um tiquinho que seja de bom senso.
Maturidade política
Orwell e Churchill personificam a maturidade política, foram homens que, numa mesa de jantar, muito provavelmente discutiriam de modo enérgico, durante cada minuto do encontro. Discordariam diametralmente em cada tópico levantado, mas que, notando um inimigo maior, que tolheria, entre outras coisas, até mesmo possibilidade daquela discussão em um jantar, uniriam, sem demora, as suas vozes e suas retórica na defesa daquilo que realmente importa.
“A primeira leva produtiva de uma civilização falida é de covardes apáticos, homens e mulheres frouxos que, diante do mal, escolhem o silêncio à batalha”
Pedro Henrique Alves
Ninguém precisa morrer com uma ideia errada, uma percepção defeituosa da realidade. A verdadeira apatia de uma civilização se torna perceptível por meio da sua moral. Quando os homens, para evitarem confronto, discussão e até mesmo represálias, ou tão somente a fim de não abrirem mão de suas visões errôneas do mundo, escolhem não lutar, mas antes adequarem ordens ditatoriais ao seu modo de vida, aí então temos a necrose civilizacional em estágio avançado.
A primeira leva produtiva de uma civilização falida é de covardes apáticos, homens e mulheres frouxos que, diante do mal, escolhem o silêncio à batalha. Como nos mostra Ricks, podemos acusar Orwell de muitas coisas, menos de covardia. Podemos tachar Churchil de uma lista de adjetivos degradantes, menos de frouxo.
Numa época que conservadores e socialistas no Reino Unido disputavam cada espaço no edredom do medo bélico, cada pedaço sujo de covardia política ante o avanço de Hitler, foi Orwell, na literatura, e Churchill, na política, que assumiram os postos avançados na luta que colocaria Hitler, Mussolini e, mais tarde, o comunismo soviético, sob escombros.
Brilhante.
Lá era Chamberlain querendo convencer Hitler tomando o chá das cinco.
Aqui tem um que quer convencer Putin e Zelensky a resolver a guerra em um boteco, tomando cerveja…
Ótimo artigo, com certeza lerei esse livro. Esclarecedor.