Uma polêmica em relação ao Oscar e, mais especificamente, à indicação da brasileira Fernanda Torres pelo filme Ainda Estou Aqui surgiu nesta semana quando perfis nas redes sociais recuperaram cenas de um quadro do programa Fantástico no qual a atriz interpretava uma empregada doméstica negra. E, para tanto, foi utilizado um recurso manjado, centenário nas artes chamado de blackface, em que o artista pinta o rosto de preto. Apenas para contextualizar, o recurso do blackface foi utilizado pela primeira vez no cinema em 1903, no curta-metragem mudo Uncle Tom’s Cabin, dirigido por Edwin S. Porter. No filme, atores brancos interpretaram personagens negros pintando seus rostos com maquiagem escura, seguindo a prática já comum no teatro. No entanto, o blackface se tornou amplamente popular no cinema com o lançamento de The Jazz Singer (1927), estrelado por Al Jolson. Primeiro longa-metragem sonorizado na história do cinema, o filme se tornou um marco quando Al Jolson, um cantor branco, aparece em cena com o rosto pintado de preto, uma prática que fazia parte das minstrel shows, espetáculos populares no século 19.
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O tal quadro do Fantástico com Fernanda Torres foi ao ar em 2008. E sim, era um quadro de humor, quando a TV brasileira ainda apresentava alguma credibilidade e graça, não se curvando ao politicamente correto que simplesmente destruiu a criatividade. Quem não viveu os tempos de TV Pirata e Casseta & Planeta não entenderá o conceito de humor. Diante da revelação que agora tomou conta das manchetes, a atriz brasileira indicada ao Oscar foi obrigada a pedir desculpas publicamente por um episódio ocorrido há 17 anos. Mas como é impossível escapar da patrulha, Fernanda Torres não teve outra saída. “Hoje, entendo que o blackface é inaceitável”, declarou a atriz em um comunicado publicado pelo portal norte-americano Deadline. “Estou profundamente arrependida por contribuir com uma prática tão ofensiva.” Toda humilhação travestida de arrependimento vale à pena quando está em jogo um objetivo bastante claro: ganhar um Oscar. Ainda que a atriz também tenha declarado que o prêmio não é sua prioridade.
Em 1999, Fernanda Montenegro foi indicada para o Oscar de melhor atriz pelo filme Central do Brasil. À época, na tentativa de interpretar a grande artista que trabalha somente pela arte, simulando um certo desprezo em receber um prêmio que qualquer ator ou atriz sonham em conquistar, Fernanda declarou pelos quatro cantos que não se importava com o Oscar porque se tratava de um prêmio dos norte-americanos — hoje certamente ela usaria a expressão estadunidense. Fernanda Montenegro perdeu a disputa para uma jovem atriz, Gwyneth Paltrow, a estrela de Shakespeare Apaixonado. No dia seguinte, a veterana atriz gritava nos jornais que, caso a Academia fosse uma instituição séria, ela teria sido premiada. Isso sim é um insulto.
Quando a arte de representar vira racismo
Não deve existir nada mais humilhante para um artista ter de se desculpar pelo trabalho que exerce. E pior, no caso de Fernanda Torres, ser obrigada a utilizar como argumento uma narrativa de suposta consciência sobre o racismo, um discurso que ninguém leva a sério, nem mesmo os negros. Afinal, o assunto aqui é arte e arte da representação. Alguém já viu um ator se desculpando por ter interpretado um assassino em série ou um pedófilo? Alguém se lembra de ter visto Ralph Fiennes pedir desculpas por ter feito o papel de um nazista em A Lista de Schindler? Ok, vamos falar sobre pretos. Os irmãos Marlon Wayans e Shawn Wayans foram alvos de críticas por, mesmo sendo pretos, interpretarem loiras no hoje clássico do humor As Branquelas? Eles se desculparam pela ofensa e o racismo por aparecerem em cena pintados de branco? E o ator Terry Crews, que no mesmo filme faz o papel de um homem que odeia os negros, se enxerga como branco e se apaixona pela branquela que, na verdade é o policial preto vivido por Marlon Wayans?
É claro que nada disso importa. Isso é arte. É humor. Aliás, o mais importante programa humorístico da televisão norte-americana, o Saturday Night Live, parece que vem assimilando a nova Era Trump. Bastou o presidente dos Estados Unidos anunciar, ainda em campanha, medidas para acabar com discursos de identidade de gênero, que só existem os gêneros masculino e feminino, que iria proibir a presença de homens biológicos em competições esportivas com mulheres, que os humoristas do SNL decidiram ir além e voltaram a fazer piadas até então consideradas ofensivas. “O bullying está de volta”, dizia uma chamada do programa.
Mas voltando a falar sobre o Oscar. Entre as concorrentes a melhor atriz, ao lado de Fernanda Torres, aparece o nome de Karla Sofía Gascón. Até aqui uma ilustre desconhecida, Karla ganhou notoriedade graças ao musical Emilia Perez, campeão de indicações nessa temporada de premiações. A militância LGBTxyz pulou de alegria porque se trata da primeira atriz trans indicada ao Oscar – ou seja, o primeiro homem biológico. Lembram que foi mencionado aqui que o Oscar não era prioridade para Fernanda Torres? Vamos ver se ela — e as outras atrizes — vai continuar achando a mesma coisa se perder sua estatueta para um homem.