Maria Rita Souza Britto Lopes Pontes, a Santa Dulce dos Pobres, foi um exemplo autêntico de dedicação aos necessitados. Sem esperar pelo Estado, irmã Dulce esteve à frente de obras de caridade eficientes, que ajudaram — e ainda ajudam — milhares de pessoas.
Para falar sobre a freira franciscana indicada ao prêmio Nobel da Paz, Valber Carvalho, jornalista baiano que já trabalhou para diversos veículos de comunicação, conversou com Oeste. Com passagens pelos jornais A Tarde e Tribuna da Bahia e TV Cultura, Carvalho pesquisa a vida e o legado de irmã Dulce há mais de 10 anos. É dele a detalhada biografia da primeira santa nascida no Brasil.
Entrevista sobre irmã Dulce
Confira os principais trechos da entrevista.
Como o seu trabalho de pesquisa começou e o que o levou a investigar e divulgar a vida e o legado de irmã Dulce?
Esse livro foi a maior reportagem que realizei na vida. Comecei em 2013, quando não havia qualquer vislumbre de canonização. Não fui movido por isso. Na Bahia há uma coleção da Assembleia Legislativa do Estado chamada Gente da Bahia, e eles sempre chamam um jornalista para traçar um perfil de alguma personalidade baiana. Foi então que me convidaram para escrever, e eu tinha dois nomes em vista: Luís Gama e a irmã Dulce. Por meio de uma conversa que tive com minha irmã, fui convencido a escrever sobre irmã Dulce.
Como se deu o desenrolar da produção desse perfil, que acabou virando livro?
Comecei o trabalho entrevistando pessoas que tivessem tido contato direto com ela. Foi assim que marquei uma entrevista com um museólogo (e foi uma conversa gravada de mais de duas horas). Depois dessa entrevista, tive certeza de que ela era a minha personagem. Fui à Assembleia e perguntei: ‘Quanto tempo eu tenho para fazer esse trabalho?’. Eles disseram que eu teria apenas quatro meses. Em resposta, simplesmente pedi licença, pois tinha consciência de que minha investigação iria consumir alguns anos. Então, parti para uma empreitada individual e corajosa. A primeira etapa do trabalho consistiu em entrevistas. Estabeleci pessoas importantes para o meu objeto de estudo e pedi para que eles me indicassem nomes também relacionados à irmã Dulce.
A biografia que você escreveu, em dois volumes, tem exatas 1,4 mil páginas. Como o senhor se organizou para analisar os documentos, as fontes e os relatos primários?
No primeiro ano, eu tinha 17 entrevistados; no segundo, 120; no terceiro, 250; no quarto já alcançava 350. Quando chegou em 500, eu fechei a comporta. Mas acabei falando com cerca de 600 pessoas e consultando aproximadamente 13 mil documentos. Isso era fundamental. A certa altura, percebi que tudo o que havia sido escrito sobre a irmã Dulce apresentava uma visão estreita: eram os relatos de familiares, de doadores, de médicos, de voluntários. Ela é uma bola de espelhos com milhares de pedacinhos que refletem as pessoas que conviveram com ela. Percebi que eu só conseguiria entender essa personalidade por meio dessa extensa lista de entrevistas. Para evitar de me perder, estabeleci um critério de subdivisão com 23 categorias de relacionamentos: a família, os grandes e pequenos doadores, os militares, a mídia, os médicos, os funcionários, as testemunhas de casos excepcionais, os “filhos” — ela criou mais de mil — etc.
Irmã Dulce era bastante preocupada com os problemas sociais do Brasil do seu tempo. Ela foi afetada pelas mudanças que a Igreja Católica sofreu no país? A relação capital-trabalho estava presente no seu apostolado?
É preciso voltar no tempo a fim de entender a realidade da crise da religião no Brasil. Em 1855, Dom Pedro 2º baixa uma lei proibindo a entrada de novas vocações no Brasil. Os conventos envelhecem com o tempo, mas, com a separação entre a Igreja e o Estado, com a promulgação da nova Constituição, a Igreja ganha autonomia novamente. A Alemanha se voluntaria para enviar um número maciço de novos evangelizadores, mas havia diferenças entre os frades alemães e os portugueses.
No Brasil, como se deu essa diferença na evangelização?
Os alemães estabeleceram como critério prévio para a evangelização a educação (educar para evangelizar). Já em 1892, com a chamada restauração franciscana, o Papa Leão 13, com a encíclica Rerum novarum (das coisas novas, em tradução livre), trouxe mudanças para a Igreja. Meses antes, a maior fábrica de tecidos do Brasil havia sido instalada na Bahia por um homem chamado Luís Tarquínio, que viria a se tornar célebre. Essa fábrica, o Empório Industrial do Norte, nasce como a melhor tradução capital-trabalho que já houve no Brasil. Nas proximidades da fábrica havia uma vila de operários, com infraestrutura completa, incluindo uma escola. Essa vila ficava bastante próxima do local onde, mais tarde, a irmã Dulce exerceria o seu apostolado.
Irmã Dulce tinha alguma personalidade como referência? Algum santo ou pessoa proeminente no âmbito da caridade?
O grande herói da vida de irmã Dulce foi seu pai, Augusto Lopes Pontes, que, em 1909, se formou em odontologia. Em sua tese de conclusão de curso, ele propôs que os alunos tivessem, além do boletim escolar, um boletim dentário. Ele também foi o responsável por conseguir a autonomia para as faculdades de odontologia brasileiras e, como homem bastante ativo, representou o Brasil em diversos congressos internacionais. O pai da irmã Dulce também lutou contra a odontologia prática, que era quando um sujeito sem formação tirava os dentes da população. O pai dela era um pidão contumaz, característica que ela herdou e, assim como o dentista, teve de enfrentar uma série de incompreensões ao longo de sua trajetória. Mas na construção de seu apostolado, ela teve como modelo Santo Antônio.
Na biografia, o senhor conta que, ao longo de sua vida, irmã Dulce deu provas de que possuía grande sensibilidade. Qual foi o impacto da primeira experiência mística que ela viveu?
Desde cedo ela apresentava certa sensibilidade, mas foi só aos 13 anos que Dulce teve sua primeira epifania. A tia, muito católica, a levou para um bairro em Salvador conhecido pelo grande número de tuberculosos. Ao presenciar aquela situação de extrema miséria e doença, Dulce voltou para casa vomitando. A experiência foi muito marcante: daquele dia em diante, ela disse que nada mais tinha importância em sua vida senão ajudar aos necessitados.
Há curiosidades sobre a vida de irmã Dulce que o senhor gostaria de ressaltar?
Nas minhas pesquisas, descobri que ela tinha uma relação com o número 13 bastante curiosa. A história de sua vida é inteiramente dividida em ciclos de 13 anos. Aos 13 anos de idade, ela tem sua primeira epifania, quando sua tia a leva para ver os tuberculosos do centro de Salvador. Antes de se tornar freira, a pedido de seu pai, ela ingressou num curso de magistério, a fim de se tornar professora. Durante o curso, ela teve como colega de sala a mãe de Gilberto Gil. Os pais do cantor se conheceram na casa da família Gil no dia de Santo Antônio, o Santo Casamenteiro (e que morreu em 13 de junho de 1231).
Qual é o maior legado da santa brasileira?
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Ela veio para evangelizar por meio do exemplo, e isso é uma coisa dificílima. A coisa mais importante para irmã Dulce era fazer com que aqueles que fossem ajudados se transformassem também em irradiadores de caridade. Ela queria formar pessoas que abrissem os olhos para a caridade, não bastava apenas ajudar. E Dulce também tinha o dom de administrar o âmbito material do seu apostolado, as finanças, por exemplo. Nos anos 1990, José Serra esteve no apostolado e disse que era a melhor aplicação do dinheiro público que ele já havia visto na vida.
Como pode alguém eleger a “melhor alma nascida”?