Meu pai dizia a mim e minha irmã que aquela liberdade que reclamávamos quando adolescentes era tão boa quanto custosa. Ela requeria mais que um espírito juvenil zombeteiro: era antes preciso maturidade e controle moral para bem utilizá-la.
Esse é um debate perpétuo da filosofia — meu pai, certamente, não levou isso em conta, apenas queria que não fumássemos maconha escondidos na balada. De Aristóteles a Santo Agostinho, de Santo Tomás de Aquino a John Stuart Mill, muitos excelentes cérebros se dobraram sobre a problemática da liberdade de seu sentido mais metafísico, ao sentido mais político e citadino.
Mas realmente poucos autores conseguiram expor a ressaca, o retrogosto ácido que essa tal problemática da liberdade tem, tanto quanto Anthony Burgess em sua aclamada distopia Laranja Mecânica; pois o que muito poucos falam é que liberdade, necessariamente, acarreta a possibilidade do mal, e é aqui que tudo começa a complicar. Se não entendeu, leia o livro de Gênese…
Lançado em 1962, ele logo recebeu atenção ampla dos críticos e do público inglês e norte-americano. Ao refletir, num futuro indeterminado, sobre a violência urbana, o livre arbítrio e o papel do Estado na supressão da violência, a obra logo torna-se amplamente debatida pelos psicólogos e filósofos do final do século 20.
O texto gira em torno de Alex, membro de uma gangue de arruaceiros extremamente violentos que se caracterizam por suas crueldades ao cometerem roubos e espancamentos aleatórios. Depois de um roubo determinado, Alex, por pura perversão gratuita, comete um estupro.
Passadas algumas semanas, o adolescente é capturado e feito cobaia em um experimento governamental chamado de “Tratamento Ludovico” que consistia, basicamente, em prender o paciente numa cadeira, abrir seus olhos contra sua vontade, injetar uma droga em suas veias e fazê-lo assistir a cenas de violência e crimes diversos. A droga faz com que ele sinta náuseas insuportáveis sempre que ele assiste, e associa seus atos, àqueles crimes mostrados na tela.
Essa técnica, por fim, acaba dando ao programa estatal o controle psicológico e moral sobre o paciente, tornando-o uma espécie de “laranja mecânica”, guiada pelas engrenagens condicionantes dadas pelo tratamento. Ele parece acabar com o problema da maldade criminosa em Alex, mas junto com ela acaba o seu livre arbítrio, sua capacidade de escolha moral, o que, no fim, quer dizer: acaba com aquilo que o torna mais que um mero animal ou máquina.
O problema do mal moral é, de fato, algo perene em nossas vidas. Tanto aquele que lê um tratado do século 12 ou a tia que assiste ao Datena em frente à TV, horrorizada com algum novo assassinato ou estupro, o descortínio dessa problemática está ali em nossas vidas e mentes constantemente.
Afinal, há como acabar mecanicamente, diria até, positivamente, com o mal moral sem acabar, ao mesmo tempo, com a liberdade do homem? Se pudéssemos determinar a sociedade a fazer o bem sempre, sem deixar a possibilidade para o mal, acabaríamos com o mal ou geraríamos o pior mal de todos, a escravidão moral…
É disso que trata, ao fim, Laranja Mecânica, o livro que, longe de ser minha distopia preferida, é, no entanto, a mais reflexiva e provocativa delas, sem dúvida. Principalmente porque seu ataque ao Estado se dá de forma não muito evidente, como ocorre no caso dos clássicos 1984 e Kallocaína; trata-se antes de um convite à reflexão profunda sobre a liberdade humana e o mal.
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No final do livro, principalmente no último capítulo, o 21 — que foi censurado nos EUA até meados da década de 1980 —, vemos um Estado que não mais parece estar determinado a somente acabar com a criminalidade, mas também a usar o “Tratamento Ludovico” para fins políticos e populistas — é claro. Mesmo após mais de cinquenta anos de seu lançamento, ainda é uma das distopias mais atuais que temos.
Agora, imaginem se o Estado pudesse nos colocar sentados, abrisse nossos olhos e enchesse-nos de informações que ele determinasse, a fim de que nós, aos poucos, adotássemos seu modelo de bondade e maldade: eis a distopia por excelência. No final, Burgess aponta claramente que o mal moral está indistintamente no homem, mas que, muitas vezes, o remédio para tratá-lo pode se verter na morte moral dos indivíduos.
Como ensinaram muitos — mas destaco aqui o sociólogo pouco estudado no Brasil ainda hoje, Franz Oppenheimer —, o Estado sempre buscará o controle e, quando ele quer tirar a liberdade do indivíduo em troca de um suposto bem social, isso sempre gerará uma dominância sobre sua mente e ações. O Estado, no afã de corrigir processos endêmicos, males arraigados da natureza humana, quase sempre acaba transformando os indivíduos em coisas para a sua manutenção no poder.
Isso significa que o Estado não deve punir criminosos e buscar maneiras de minorar o mal criminal na sociedade? Não! Significa que o Estado tem limites, e, quando tais limites caem em nome de uma promessa utópica de correção moral completa do homem, não raro ele se torna o ditador por excelência.
Burgess criou ainda uma linguagem própria para os adolescentes criminosos — outra crítica visionária ao uso ideológico e pueril da linguagem —, uma mistura de gírias criadas em russo e inglês, o que deu origem à língua Nadsat. A edição da Editora Aleph, a qual eu li, traz um glossário importantíssimo, que auxilia na leitura nada fluida da obra.
Laranja Mecânica, assim, é feita de muitas camadas, e como é característico das altas literaturas, nela cabem análises diversas e aprendizados múltiplos. Não raro, na listagem de melhores distopias do século 20, a obra de Anthony Burgess sequer figura; mas isso não diminui a sua genialidade: ela ainda é, sem dúvida, um dos mais simbólicos e profundos desses clássicos distópicos do século passado.
Burgess não caiu no terreno comum das distopias políticas do século 20, nem se deu abertamente a qualquer lado político de momento. Escreve, antes, uma obra mais atemporal, na medida em que sua análise é também mais essencial e seu objeto é a natureza humana.
Escreveu uma obra tão transcendente que lá jaz simbolicamente críticas sociais das mais sofisticadas; uma excelente crítica da linguagem, da política, do behaviorismo psicológico, da ciência, da tirania estatal, da corrupção política e do mal inerente ao homem. Um livro feito e assentado em reflexões filosóficas, invenções literárias e críticas sociais, uma obra que amadurece a consciência dos afoitos e desencanta os utópicos.
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Boa análise e lembrança do trabalho não muito entendido por jovens e adolescentes à época.
Apenas para constar, sou frontalmente contrário à afirmação de que =>”…; pois os que muito poucos falam é que a liberdade, necessariamente, acarreta a possibilidade do mal, e é aqui que tudo começa a complicar.”<=. Não existe qualquer evidência de que, quando na falta de liberdade, o mal deixou de ser possível e, portanto, não aflorou. O mal faz parte da natureza, a junção de mentes com disruptura funcionais adequadas em comunhão com a ambiência. Vejo, a liberdade como um antídoto não totalmente eficaz contra a maldade humana, mas o único a permitir a compreensão da causa e a consequente busca da cura/minimização.
Uau! Sensacional! ????????????