O conservador, por vezes, se apega demais a livros de cunho meramente político, ou, para ser mais amplo, a livros do espectro das ciências sociais. Não poucas vezes, contudo, as melhores e mais necessárias críticas conservadoras aos erros da modernidade — conscientemente ou não — foram feitas por meio de ótimos romances, cujos autores, nem sempre, foram conservadores assumidos, a maioria sequer se importavam com tais denominações políticas. Demônios, de Fiodor Dostoiévski; O senhor das moscas, de William Golding; Onde os velhos não têm vez, de Cormac McCarthy; ou David Copperfield de Charles Dickens, são exemplos de romances que, por quererem ou não, trazem à tona os valores básicos do conservadorismo, seja em tom pitoresco, ao caçoar das modas ideológicas do momento, mediante uma fina camada psicológica que sustenta a construção da narrativa; ou diretamente mesmo, por meio das constituições de seus personagens e conclusões metafóricas. A ficção, para mim, ainda é melhor e mais aguda forma de criticar ideias, governos e sistemas, uma forma livre de arte que é pouco censurada pelo progressismo — ainda que muitos estejam dispostos a fazê-lo se necessário, é bom notar.
Um desses clássicos que poucos conservadores dão a devida importância é Madame Bovary, de Gustave Flaubert, um dos livros mais completos na proposta de mostrar-nos como a corrupção do coração humano, por idealizações e miragens românticas, acaba destruindo a vida dos indivíduos. Em uma época em que felizmente assuntos como resiliência psicológica, práticas virtuosas e ordenamento moral ressurgem com força por meio da influência de homens como Jordan Peterson e Ryan Holiday, clássicos que tratam da degradação do homem através da desordem moral e psicológica completam um vão absurdamente importante para formar o imaginário de nossos jovens.
Lançado primeiramente em 1856, na revista Revue de Paris, Madame Bovary sofreu desde uma tentativa oficial de censura estatal, até décadas de perseguição religiosa; de críticas da burguesia parisiense a rechaços dos herdeiros do iluminismo fideísta, o livro se mostrou desde o início um dedo na ferida que expunha a hipocrisia moral do homem.
Flaubert, dono de uma escrita típica dos franceses românticos, todavia temperada com um realismo típico dos grandes que viriam nos séculos posteriores, entregou-nos um texto único, pois o adornou com descrições minuciosas — por vezes até exageradas —, sob um panorama realista e direto que nos remete, sem ressalvas, à mais crua degradação moral da senhora Bovary — personagem principal da obra.
O livro explora a vida de Charles e Emma Bovary. Charles é um médico de condado, pouco profissional e aprofundado na arte da medicina, Emma é uma mulher do campo, recatada, órfã de mãe, formada em colégio de madres. Após a morte da primeira esposa de Charles, ele casa-se com Emma. Emma, agora senhora Bovary, se torna uma jovem profundamente inquieta com o que ela poderia ter sido e, obviamente, nada conformada com o rumo que sua vida tomou. Ora está convencida de que teria sido melhor ter ficado no convento e se formado freira; em outros momentos, pensa que simplesmente poderia ter-lhe aparecido um homem mais viril, mais “parisiense” — entenda-se aqui “sofisticado”, com sensibilidade literária e artística. Assim, madame Bovary se perdia nos descontentamentos de sua vida cotidiana e conjugal, buscando em cada olhar e gesto exteriores um motivo para aprofundar suas lamentações, ou uma via para fugir do destino bisonho que se desenhava para sua vida.
A fuga mais comum para casos como esse, bem demonstra Flaubert, era o adultério. Buscar em homens diferentes aquilo que julgava faltar em seu marido — isto é, os arroubos instintivos de paixão e os frêmitos sexuais inesgotáveis — se tornou então uma necessidade capital, irrefreável e urgente para Emma. Ela, então, se perde voluntariamente, recai, cada dia mais, em seus adultérios como uma fuga consentida de seu destino tentando, de forma histérica, uma maneira de anular Charles de sua vida, o homem que, mesmo suprindo seus caprichos, amando-a febrilmente, padecia da frouxidão dos acessos de paixão que os personagens dos livros que ela lia tinham de sobra. Charles era amputado, julgava Bovary, das características que encantavam as mulheres progressistas como ela.
Em certos momentos, durante a leitura, sentimos a angústia causada pelas algemas do vício que costumeiramente agarram as pessoas que se entregam aos desejos impensados, às paixões desenfreadas e irracionais. O leitor se sufoca junto a Emma, por vezes torcendo para que Charles descubra as infidelidades, por outras torcendo para que Emma acorde de seus erros e perceba a cegueira que encobre a sã percepção de realização e de felicidade.
O ponto alto da obra, no entanto, é o modo como o autor faz notar os sentimentos, os meandros da psique e das vontades de um indivíduo que se perde em vícios e, consequentemente, em más escolhas. Em determinado momento, mesmo Emma tomando consciência de seus tropeços e falhas morais, ela se percebe incapaz de retornar para uma vida resignada onde os desejos são controlados pela capacidade de resiliência, onde as virtudes regem racionalmente as escolhas individuais, e não as idealizações e os momentos de gozo. Neste processo de degradação brilhantemente exposto por Flaubert, podemos notar três momentos universais nesse decaimento, a ponto de que, posteriormente, a psicologia moderna adotou o termo “bovarismo” para explicar vários diagnósticos através da personagem Bovary.
O primeiro estágio trata-se do alimentar-se de ilusões e miragens de perfeição, transferir sua realidade para um roteiro de abstrações românticas, uma tentativa inconsequente de existir no inexistente; o segundo é a típica demonização, com ou sem motivo, do contexto e pessoas que cercam o afetado, a idealização distante constrói uma raiva contra tudo que está desalinhado ante aquela utopia; o terceiro, por fim, trata-se da prática de escolhas que degradam a ordem moral e social na qual o indivíduo está inserido, o erro passa a ser uma via desesperada para alcançar a miragem de vida ideal estabelecida.
Seja com o nome de “pecado”, “erro”, “falha” ou “degradação”, o adultério, em Madame Bovary, assume um caráter de exposição das etapas de corrupção da alma e do corpo dos homens, um tratado sobre como o indivíduo, longe das virtudes morais e dos deveres sociais, se torna um galho seco ao sabor das correntezas, das paixões e das oportunidades corruptivas do cotidiano. Ao finalizar o livro, fica claro que um indivíduo que se entrega a idealizações banais, à demonização da realidade e à corrupção moral acaba menos racional e mais instintivo, por isso menos homem e mais animal, mais coisa de profanação do que homem dignificado através do controle de suas vontades.
Poucos foram os autores — talvez Dostoiévski com mais psicologia, e Kafka com mais vísceras — que conseguiram penetrar de forma tão profunda e aguda na natureza da corrupção moral do homem como fez Flaubert. Não à toa a Igreja e os puristas se revoltaram contra a crueza dos detalhes da corrupção denunciada no texto; os iluministas viram naquelas páginas troças às pretensões super-humanas do racionalismo ateu; os burgueses, uma denúncia desmedida de seus modos de vida; quando um autor consegue descer tanto na descrição da putrefação da alma e da psique humana, o que ele traz para superfície enoja até mesmo àqueles que são exatamente como Bovary. Até para o pior dos homicidas é difícil olhar com sinceridade para os seus espólios cadavéricos; a mentira não se torna verdade porque se veste de filosofias populares e de desejos romantizados, o fedor do erro mantém-se singularmente o mesmo, mesmo após todas as justificativas e retóricas cheirosas que borrifamos sobre ele a fim de mascará-lo.
Ler Madame Bovary é, assim, um exercício virtuoso à alma do homem, um dever individual que todos os que buscam amadurecer deveriam assumir como tarefa inadiável. Nesta minha recente releitura de Madame Bovary, Flaubert me faz lembrar porque sou apaixonado pela literatura.
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