Nas prateleiras de ciências humanas, o universo editorial liberal e conservador é, sem nenhuma dúvida, o que mais cresceu nos últimos dez anos — no mundo, mas, especialmente, no Brasil. De tratados filosóficos profundos, como Ação Humana de Ludwig von Mises, tratados de ciências políticas, como A Mentalidade Conservadora de Russell Kirk, até neoclássicos da economia, como Indivíduo Economia e Estado de Murray Rothbard, e da filosofia do direito, como Direito, Legislação e Liberdade, de Friedrich A. Hayek, as editoras do ramo vêm apostando de forma acentuada em títulos de cunho liberal e conservador. E como a lei econômica básica de Adam Smith nos explicita — outro autor clássico do liberalismo recém redescoberto no Brasil —: se há oferta é porque também há demanda.
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Entre os tipos e os temas de livros liberais e conservadores, um estilo realmente desperta minha curiosidade, refiro-me àqueles que tratam da mentalidade, psique, filosofia e história do legado ocidental, não pura e simplesmente por apego ideológico a tudo que representa “ser ocidental”, mas pela percepção de que, se voltamos a falar desse tema, é porque, conscientemente ou não, percebemos que ele é importante e se encontra negligenciado de alguma maneira no debate público. Conhecer nossas raízes ocidentais, aliás, vai muito além de mero apreço político “liberal” ou “conservador”, é como se disséssemos que explorar as raízes de nossa família trata de algo profundamente “conservador”, uma afirmação tola per se, já que todos seres racionais costumam se preocupar com sua genealogia. E a genealogia dos valores — de nossos valores — sempre foi uma das preocupações humanas mais perenes desde quando começamos a desenhar em cavernas.
O que é o Ocidente?
O Ocidente é, goste você ou não disso, o baú que guarda tudo aquilo que formou nosso caráter, nossas percepções éticas e constituições morais mais comuns de nosso cotidiano. Estamos falando do esqueleto e da alma de nossa sociedade. Se você ama nossa mania de usar a razão como parâmetro seguro de argumentação e pesquisa, agradeça à filosofia grega; se você admira a organização social e jurídica que sustenta nossas comunidades sob um regramento — à princípio — justo e correto, agradeça a Roma e suas heranças político-jurídicas; se você minimamente admira nossa capacidade de defender valores primordiais, justificando-os sob uma estrutura coesa e moral, dando aos indivíduos mais do que segurança psicológica, mas motivação de existência, agradeça, então, à fé cristã. Esses três pilares são, novamente, para além de nossos gostos pessoais e ideológicos, o arrimo mais profundo de nossas ideias, nossas percepções, organizações psicológicas e sociais, são o que nutre cada célula de nosso modo de pensar, agir e planejar. Não que não tenhamos sido influenciados por outras culturas, fés e legislações, mas, perto do que Grécia, Roma e Jerusalém produziram em nós, suas influências foram rasas e, quando mais profundas, ressignificadas e reestruturadas por meio dos espólios daquelas três cidades fundamentais.
A percepção admitida e defendida por homens do calibre de Niall Ferguson em Ocidente x Oriente, ou Kenneth Clark com seu Civilização, é que o que aconteceu no Ocidente é algo maravilhosamente único, que o Ocidente é muito mais que um mero acidente histórico, é antes uma construção cuidadosa de labores intelectuais e políticos que nunca antes fora visto em tal magnitude na história humana. Edmund Burke, em seu Reflexões sobre a Revolução na França, constrói uma das narrativas mais sensacionais na defesa dessa percepção. O Ocidente, como diz Jonah Goldberg, em O Suicídio do Ocidente, é praticamente um milagre.
O que, todavia, há de comum na percepção liberal clássica e conservadora, hoje, é que tais pilares e arrimos do Ocidente se encontram sob forte ataque de ideologias modernas completamente alheias à riqueza e ao significado de tais princípios ocidentais.
Muitos livros foram escritos especificamente nesse sentido nos últimos cinco anos, todavia, há outros tantos mais antigos, pois tal percepção surge sempre em momentos de guerra e totalitarismos — como foi praticamente todo o século 20. Entretanto, atualmente não passamos por guerras mundiais, não existem ameaças político-totalitárias ao estilo soviético nem nazista como outrora — ainda que existam ameaças tão perniciosas quanto essas no campo das ideias, mas isso é papo para outra coluna. Mas é fato que cada vez mais ouvimos aquele mesmo tom estridente de ameaça que nossos avós e bisavós ouviam ante a antiga ameaça de Hitler e Stálin, só que agora sob uma guerra que acontece antes sob a forma de imposição de ideologias universitárias e autoritarismo jurídicos, o que cada dia mais os autores começam a denominar de “guerra cultural”. Há uma sensação de implosão constante daqueles valores primordiais que garantem nosso modo de vida ocidental, as nossas liberdades fundamentais e os diretos às crenças inegociáveis, todos eles conseguidos e garantidos a duras penas nos séculos passados.
Para citar alguns outros livros recentes sobre a temática “Ocidente em risco”, devo extrapolar o universo editorial dos “traduzidos”, How to Save the West, de Spencer Klavan; The Dying Citizen, de Victor Dave Hanson; Reason, Faith, and the Struggle for Western Civilization de Samuel Gregg; e entre os traduzidos cito apenas três como exemplo, O Suicídio do Ocidente, de Jonah Goldberg; A Barbárie, de Michel Henry; e A Guerra contra o Ocidente, de Douglas Murray. Este último, o que destaco hoje nesta coluna.
A guerra contra o Ocidente
Douglas Murray é um exímio argumentador, é um daqueles autores de cujas conclusões você, mesmo sendo um progressista, dificilmente conseguirá discordar de forma lógica. Além de muito articulado, dono de uma escrita macia e fluida, ele fundamenta suas posições de forma que não deixa o texto engessado nem interrompe suas conclusões a fim de mostrar a cada estrofe as entrelinhas academicistas de suas firmações — característica profundamente enfadonha e insegura de muitos analistas conservadores que temem cancelamentos e rechaços midiáticos. O primeiro livro que li de Murray foi The Madness of Crowds: Gender, Race and Identity, de 2019; uma porrada absurda no identitarismo progressista, um dos livros mais fáceis e bem argumentados de serem lidos sobre o tema até o momento.
O segundo, para meu deleite, foi A Guerra contra o Ocidente, com certeza um dos que mais me mercaram neste ano. Dividido em quatro grandes temas, “Raça”, “História”, “Religião” e “Cultura”, o autor mostra-nos como o Ocidente está esfarelando todas as suas grandezas e defesas valorativas nesses setores. A política neomarxista e identitária está conseguindo implodir paulatinamente tudo através da ruína desses quatro temas.
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Raça: segundo Murray, raça e gênero se tornaram os óculos pelos quais vemos tudo atualmente, não mais conseguimos pensar, agir nem argumentar de forma razoável, através de uma percepção factual da realidade, sem antes perguntar aos ideólogos se estamos sendo racistas e transfóbicos nesse processo. Uma válida crítica política se torna convenientemente racista porque não reza a cartilha dos movimentos negros; uma oposição científica ao identitarismo, por mais que bem fundamentada, sem demora se verte no mais abjeto preconceito transfóbico. Um ditadura de taxações.
História: estamos reescrevendo a história sob um roteiro tão politicamente contaminado, bizarro, quanto mentiroso, afirma o autor. Olhamos para o passado e só enxergamos mazelas, erros e memórias que devem se esquecidas ou ressignificadas em nome de um bem ideológico abstrato; todavia, contraditoriamente, devemos absorver aquela história reescrita pelos ideólogos da causa, versão do roteiro que beneficia a ideologia oficial. Desta forma, Stálin talvez não tenha sido tão mal como o Ocidente afirma, Castro foi um humanista incompreendido, e, quiçá, Mao tenha suas virtudes e benefícios que devemos redescobrir.
Religião: a religião — principalmente a cristã e judaica — se refere então a uma infecção moral que devemos extirpar da sociedade, não ao estilo marxista clássico, mas por meio da ressignificação das doutrinas e dos ensinamentos clássicos, e, é claro, por meio da tomada de espaço entre seus pares batinados. Isto é, deve-se transformar a religião numa bazuca ideológica que, no processo de corromper e destruir a visão clássica de cristianismo e judaísmo, produz fiéis políticos em vez de piedosos cristãos.
Cultura: e, por fim, a cultura deve ser um éter ideológico constante na vida dos indivíduos. Através da propaganda massiva, do controle midiático, governamental e universitário, deve-se transformar a visão ideológica progressista tão perene, impregnar de forma tão profunda a realidade com a ideologia oficial, do outdoor ao meio-fio, da pregação nas praças à pregação do púlpito, da embalagem de um lanche ao livro pré-escolar, que não ser progressista se torna quase impossível, quando não, coisa de maluco e extremista. A ideia fundamental, então, trata de dominar e sufocar todos os defensores dos velhos princípios, da ideia de liberdade à moda clássica ocidental e transformar tudo e todos em uma espécie de prisioneiros sem algemas, em insetos na gelatina.
Com toda a certeza, entre os livros que li nos últimos tempos sobre a temática — e, acredite, não foram poucos —, esse é o mais claro e, na minha opinião, efetivo em defender os valores ocidentais, ao mesmo tempo em que nos mostra os erros absurdos do progressismo. Após finalizar a leitura, nós nos sentimos partícipes de uma espécie de manicômio, pois, o que Douglas Murray traz de novo ao debate — além da clareza extrema como afirmado acima — é a exposição de como o identitarismo e as demais pautas progressistas são uma espécie de delírio coletivo, em que as premissas mais básicas do iluminismo — a última grande atualização ocidental junto do capitalismo — são descartadas em nome de uma seita política que despreza a razão e as inferências lógicas mais básicas e evidentes, tal como um drogado em pleno delírio a gritar que na verdade é o Rei Charles, apesar de toda obviedade e constatação simples do que realmente ele é: um dependente químico alucinado, só que, nesta analogia, um dependente ideológico igualmente alucinado.
Editado pela Faro editorial — sob o selo Avis Rara — e traduzido por Fernando Silva, A Guerra contra o Ocidente mostra-nos que a guerra cultural contra o Ocidente é profundamente real. É, inclusive, uma das realidades mais cortantes e urgentes de serem estudadas com afinco pelos que ainda se importam com fatos, valores e com os seus netos. Se até ontem a guerra cultural era vendida sob a cobertura de “teoria da conspiração conservadora” pelos especialistas e pelas mídias tradicionais, agora que a insanidade progressista vaza pelas bordas da realidade é preciso mais do que dizer que tal batalha existe, é necessário urgentemente dissecá-la com esmero, fundamentos e claridade, e é justamente isso o que faz Douglas Murray nesse livro.
Sem dúvidas, ele é um dos mais esgrimados conservadores da atualidade. E não se trata aqui de gastar adjetivos a esmo na promoção de ideias conservadoras, trata-se antes de identificar um conservador da nova leva que merece ser lido e guardado na prateleira dos sensatos a serem consultados quando a mentira começa a parecer verdade, quando a distorção passa a ser vendida como ortodoxia e benefício social.
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