Pular para o conteúdo
publicidade
Ilustração: Shutterstock
Edição 175

Um método atemporal para resistir à tirania

A principal tarefa dos opositores da tirania moderna é educativa: desmistificar e dessacralizar o aparato estatal

Barry Brownstein
-

Se eu fosse resumir a mensagem inspiradora de Discurso da Servidão Voluntária, escrito no século 16 por Étienne de La Boétie, diria que não somos vítimas do mundo que vemos. Nós invertemos a causa e o efeito. A tirania não está acontecendo conosco; ela está acontecendo por nossa causa.

Será que estamos nos enganando sobre nosso papel em dar autorização aos nossos opressores? Como Murray Rothbard afirmou de forma brilhante em sua introdução ao discurso de La Boétie, “a tirania precisa necessariamente se basear na aceitação geral do público”.

Capa do livro Discurso da Servidão Voluntária, de Étienne de La Boétie | Foto: Divulgação

Pior ainda, estaria Aldous Huxley certo ao afirmar que as pessoas abraçariam alegremente sua própria opressão? Como Neil Postman escreveu no livro Amusing Ourselves to Death, “na visão de Huxley, nenhum Big Brother é necessário para privar as pessoas da própria autonomia, maturidade e história. Segundo ele, as pessoas passarão a amar sua opressão e a adorar as tecnologias que desfazem sua capacidade de pensar”.

Huxley escreveu: “A maior parte da população não é muito inteligente, teme a responsabilidade e não deseja nada além de que lhe digam o que fazer”.

Pintura de Aldous Huxley de 1928 | Foto: Reprodução/Wikimedia Commons

Se você não vive em São Francisco ou em outra cidade distópica, dê uma volta e observe como as pessoas são naturalmente cooperativas e pacíficas. Você pode se perguntar, como fez La Boétie:

“Como podem tantos homens, tantas aldeias, tantas cidades, tantas nações, às vezes sofrer sob um único tirano que não tem outro poder além do que lhe é dado, que só é capaz de prejudicá-los até o ponto em que esses homens estão dispostos a suportá-lo, que não poderia lhes causar absolutamente nenhum mal a menos que preferissem suportá-lo em vez de contradizê-lo?”

“Suportá-lo em vez de contradizê-lo” sempre foi uma tendência humana e algo com que estamos todos muito familiarizados.

O discurso de La Boétie foi influenciado pelo ensaio do filósofo grego Plutarco intitulado Sobre a Complacência. Michael Fontaine, professor de clássicos da Universidade Cornell, está trabalhando em uma nova tradução desse texto. Em uma série de palestras, uma delas pública, Fontaine explica que Plutarco explorou a disopia (não confundir com distopia). Disopia é tanto “sentir-se pressionado ou intimidado” quanto o “ato de ceder a um pedido inadequado ou impróprio”. Já não experimentamos todos a disopia quando alguém nos pede algo irracional e, contrariando nosso bom senso, acabamos fazendo mesmo assim?

Plutarco não estava necessariamente escrevendo sobre interações de coerção, em que a força é usada; o foco dele eram situações em que “você tem o poder de dizer não”. Talvez você tenha participado de uma reunião de trabalho em que alguém propôs que aqueles que não tomaram vacina fossem demitidos. Você puxou os aplausos? Você consentiu ao não se opor? Você ofereceu argumentos contra a obrigatoriedade da vacina para estudantes, para quem os riscos da vacina provavelmente superavam os benefícios? Você apoiou os direitos dos demais de tomar suas próprias decisões sobre saúde?

Estátua do filósofo Plutarco | Foto: Shutterstock

La Boétie observou corretamente que somos “traidores” de nós mesmos quando cooperamos com nossa própria opressão:

Aquele que domina sobre você tem apenas dois olhos, apenas duas mãos, apenas um corpo, não mais do que tem o homem mais humilde entre os números infinitos que habitam suas cidades; ele não tem nada além do poder que você lhe outorga para destruí-lo. Onde ele adquiriu olhos suficientes para espioná-lo, se você mesmo não os fornece? Como ele pode ter tantos braços para agredi-lo sem tomá-los emprestado de você?

La Boétie implorou: “Decida não mais servir”. E continuou: “Não peço que você coloque as mãos em um tirano para derrubá-lo, apenas que não o apoie mais. Então você o verá, como um grande Colosso cujo pedestal foi retirado, cair sob seu próprio peso e se despedaçar”.

Ele reconheceu que existem poucas pessoas no núcleo do poder, mas que esse núcleo emprega centenas, que empregam milhares, que hoje empregam milhões “para que sirvam como instrumentos de avareza e crueldade, executando ordens no momento certo”.

Hoje em dia, o governo tem seus tentáculos em toda parte e emprega uma parcela significativa da população. Como podemos revogar nosso consentimento? Se não pagarmos impostos, podemos ir parar num tribunal, mesmo que sejamos o Hunter Biden.

Ilustração: Tithi Luadthong/Shutterstock

À primeira vista, a análise de La Boétie pode não oferecer nenhum caminho viável para derrubar os tiranos da atualidade. Mas veja de novo. 

Precisamos revogar nosso consentimento dos apologistas do Estado. Rothbard explica:

“La Boétie destaca o fato de que esse consentimento é manipulado, em grande parte, pela propaganda política transmitida à população pelos governantes e seus apologistas intelectuais. Os dispositivos — de pão e circo, de mistificação ideológica — que os governantes usam hoje para enganar as massas e obter seu consentimento continuam os mesmos dos tempos dele. A única diferença é o enorme aumento no uso de intelectuais especializados a serviço dos governantes. Mas nesse caso a principal tarefa dos opositores da tirania moderna é educativa: despertar o público para esse processo, desmistificar e dessacralizar o aparato estatal.”

Nos dias de hoje, pode não ser fácil revogar o consentimento em relação ao governo. No entanto, podemos fazê-lo em relação aos cortesãos contemporâneos do governo — acadêmicos, jornalistas, especialistas, influenciadores e executivos que, como Rothbard escreveu, “enganam as massas para obter seu consentimento”.

Murray Rothbard, professor e economista do século 20 | Foto: Reprodução/Instituto Liberal

Esses “apologistas” costumam tratar as pessoas com desrespeito. Eles se apresentam como oráculos e dizem que você não tem capacidade para entender seus dogmas. Apelam para a própria expertise e autoridade, mas oferecem poucas evidências. Eles cobiçam dinheiro e poder, não obtidos servindo aos consumidores, mas dominando-os. Os princípios que permitem à humanidade prosperar não significam nada para eles. O antídoto é ignorá-los ou abrir a cortina para expor sua retórica vazia. Desligue a televisão e passe suas noites de verão com seus entes queridos ou com um bom livro que fortaleça sua coragem moral.

Nem os tiranos nem os apologistas agem com integridade. Desenvolver nosso caráter respeitando a autonomia dos outros é um caminho para a liberdade

Fontaine, traduzindo Plutarco, nos convida a superar nossa disopia, prestar atenção à nossa tendência de “agradar” e recuperar a capacidade de dizer não.

La Boétie propôs um caminho para encontrarmos nossa coragem moral. Ele observou que os tiranos nunca são amados nem são amorosos. A verdadeira amizade, ele observou, “nunca se desenvolve exceto entre pessoas de caráter, e nunca cria raízes a não ser pelo respeito mútuo. Ela floresce não tanto pelas gentilezas, mas pela sinceridade”. Temos certeza de nossos amigos quando temos “ciência de sua integridade”.

Nem os tiranos nem os apologistas agem com integridade. Desenvolver nosso caráter respeitando a autonomia dos outros é um caminho para a liberdade. Plutarco argumentou, e La Boétie teria concordado, que “ceder exacerba os problemas em vez de solucioná-los”. Não haverá uma solução ao estilo O Mágico de Oz. Não podemos simplesmente bater os calcanhares três vezes e voltar à “terra da liberdade”. Apenas ler Étienne de La Boétie não liberta ninguém. Como escreveu o poeta William Blake, nossas algemas são forjadas pela mente. Com uma mudança de mentalidade, nos tornamos imunes à nossa disopia. À medida que mais pessoas revogarem seu consentimento, um futuro distópico poderá ser evitado.

Retrato de Étienne de La Boétie | Foto: Reprodução/Wikimedia Commons

Barry Brownstein é professor emérito de economia e liderança na Universidade de Baltimore. Ele é autor de The Inner-Work of Leadership, e seus artigos têm sido publicados em veículos como Foundation for Economic Education e Intellectual Takeout. Para receber seus artigos, visite mindsetshifts.com

Leia também “Como a arrogância ameaça a liberdade”

5 comentários
  1. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    ”Desenvolver nosso caráter respeitando a autonomia dos outros”. Exatamente.

  2. Valesca Frois Nassif
    Valesca Frois Nassif

    Alguém já utilizou a expressão “ prisão mental”. Acho perfeita para a situação. E a citação de Huxley mencionada no artigo mais q perfeita: realmente a maioria de nós gosta de ter quem lhe diga o q fazer . Infelizmente. Excelente artigo!

  3. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Excelente artigo retratando o estágio em que o mundo se encontra atualmente.
    Eu não tenho nenhum desejo de terceirizar minha vida a nenhum tirano.

  4. Claudio Jorge
    Claudio Jorge

    Bom dia. Ótima percepção do autor. Link perfeito com a situação política do pais que pode ser tranferida para nosso cotidiano. Temos que mudar a maneira de pensar para construir uma nação.

  5. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Excelente

Anterior:
Imagem da Semana: encalhe das baleias na Austrália
Próximo:
O capitalismo woke e seus idiotas úteis
Newsletter

Seja o primeiro a saber sobre notícias, acontecimentos e eventos semanais no seu e-mail.