É possível frequentar a Universidade e, ainda assim, ser cristão? A religiosidade é compatível com o ambiente acadêmico? Há, de fato, perseguição religiosa — especialmente contra os cristãos — no campus universitário? Afinal, a fé é incompatível com a inteligência? Convidamos um especialista para nos ajudar a entender essa realidade.
Joel Gracioso tem mestrado e doutorado em filosofia pela Universidade de São Paulo e especialização em teologia. O acadêmico tem experiência no ensino de filosofia e teologia, com ênfase em história da filosofia medieval, patrística, ética, antropologia filosófica, filosofia da religião e teologia cristã oriental. Gracioso estuda o final da antiguidade e o período medieval — e suas relações com o pensamento contemporâneo.
Membro de organizações internacionais de pesquisa em filosofia, o professor Gracioso leciona na Academia Atlântico; ele também é autor de livros e artigos sobre filosofia e teologia. Acerca da perseguição religiosa no âmbito acadêmico, Gracioso afirmou que “se isso continuar, nós teremos uma universidade que não é mais livre para buscar o conhecimento, para buscar a verdade; ela passa a ser um instrumento de poder”.
Confira abaixo os principais trechos da conversa:
Hoje, os currículos acadêmicos ignoram completamente a Filosofia Cristã, e tratam a religião e a ciência como antagônicos. Esse antagonismo é irreconciliável?
Infelizmente, o antagonismo entre religião e ciência é estimulado por algumas pessoas. Na realidade, não é que haja um antagonismo obrigatório, necessário entre ciência e religião — a prova disso é que, no decorrer da história, nós temos filósofos e também cientistas que foram pessoas altamente religiosas, que admitiam a existência de Deus. Porém, no Brasil, muitos departamentos foram construídos — e hoje estão inteiramente dominados — por pessoas que têm a mentalidade positivista e antirreligiosa. O pensamento positivista foi e ainda é bastante forte no Brasil especialmente na formação de base do ambiente acadêmico. É a mentalidade de que o progresso é resultado do avanço científico, e que a religião só contribui para o regresso da sociedade, porque ela está presa a supostos costumes obscurantistas e a crendices. Isso não é assim. A grande prova de que a Fé e a Razão podem e devem caminhar juntas, apesar de serem realidades distintas, é que a própria questão da Fé pressupõe a questão da Razão. Tal antagonismo só existe porque alguns querem que ele exista. É perfeitamente possível ser religioso e cientista e vice-versa.
Como a adoção das ideias da Escola de Frankfurt pela Universidade afeta o currículo e, consequentemente, a formação dos estudantes?
A Escola de Frankfurt, evidentemente, teve falhas. Em sua base, há elementos do pensamento de Marx, Freud, Hegel e, às vezes, até de Nietzsche. A partir dos anos de 1960, o pensamento frankfurtiano foi se tornando presente de maneira intensa nos meios universitários, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos — e também no Brasil. De fato, conforme as ideias e as concepções desses autores foram adquirindo predominância, elas passaram a interferir de maneira direta no currículo. Ou seja, de modo progressivo foi se estabelecendo uma preocupação de se ter disciplinas e orientações que gerassem uma mentalidade revolucionária em todos os aspectos. E revolucionária tanto no sentido político — vide a questão da esquerda — como também no sentido dos costumes. Daí a crítica à concepção de família, no sentido natural e tradicional; na maneira de ver o homem e a mulher; na maneira de entender a afetividade da sexualidade humana. Assim, uma verdadeira agenda foi imposta, o que implicou a reforma curricular. O currículo da formação das crianças, jovens e adolescentes passou a ser construído não mais a fim de incentivar a busca pela verdade, mas sim para mostrar os conflitos de interesses que permeiam a sociedade, os conflitos de poder e, portanto, a fim de emancipar determinadas minorias e, com isso, gerar uma nova consciência nos estudantes. O cânone clássico foi trocado por outras obras para modificar o viés formativo dos estudantes.
Chamar atenção para a importância de autores cristãos, como São Tomás de Aquino, na Universidade pode ser um caminho para solucionar o problema da perseguição religiosa?
Sim, muitas coisas podem ser feitas a fim de colaborar e mostrar que ser religioso, ser cristão, ser católico não é resultado de uma pessoa, não é resultado de uma vida, de alguém que escolheu abrir mão da sua inteligência, da sua razão. Ter Fé não é abrir mão da própria inteligência, e São Tomás de Aquino é um grande exemplo disso. Falar sobre o pensamento de São Tomás, mostrar a sua metodologia, o modo como ele abordava a relação entre Fé e Razão certamente ajudaria muito a resolver o problema. Da mesma forma que o estudo de alguns padres da Igreja, como Santo Agostinho, ajudaria muito também a mostrar que essa visão que mostra as pessoas esclarecidas como só aquelas que não têm Fé é uma bobagem. É perfeitamente possível ser uma pessoa que pensa, que investiga, que questiona, que busca a verdade e ao mesmo tempo reconhece a importância da Fé na vida do indivíduo humano. E São Tomás é um grande exemplo disso. Ser cristão e ter Fé não é ser ingênuo, mas é ter a coragem de levar a inteligência humana às suas últimas consequências.
Atualmente, a perseguição vem disfarçada por termos como “cancelamento” ou suposto combate à “desinformação”. Quais riscos essa censura pode acarretar na universidade?
Infelizmente, hoje nós vivemos um período bastante complicado, no qual as liberdades de pensamento e de expressão estão bastante comprometidas. No ambiente acadêmico os riscos são enormes, porque esse tem de ser um ambiente de liberdade. Ou seja, as questões, os problemas têm de ser colocados por quem quer que seja. Todos devem ter o direito de apresentar as suas propostas, hipóteses e teorias; o seu modo de ver as coisas. Assim, o ato de tolher a liberdade de expressão no ambiente acadêmico prejudicará de forma direta a pesquisa, por exemplo. As pessoas não poderão mais pesquisar determinados temas, a questão do debate, da divergência só poderá acontecer de uma maneira bastante restrita — seguindo a cartilha que outros determinaram. Portanto, isso mata a essência do mundo acadêmico. Quem está lá tem de ter a liberdade para pesquisar, questionar, para apresentar o seu ponto de vista. Claro, tudo feito seguindo as devidas exigências: se você é livre para expressar a sua interpretação do mundo, você é obrigado a demonstrar, a comprovar que isso é verdadeiro — correndo o risco de ser punido se mentir. Se isso continuar, nós teremos uma universidade que não é mais livre para buscar o conhecimento, para buscar a verdade; ela passa a ser um instrumento de poder.
Mostrar aos universitários o propósito original da “instituição de ensino superior” pode ser uma forma de destruir essa atmosfera de desprezo pelo cristianismo no ambiente acadêmico?
O surgimento das universidades no mundo medieval, principalmente no início do século 13, é um acontecimento extremamente importante que mostra que a Igreja, de fato, não tinha nada contra a ciência em si, o conhecimento em si. O que a Igreja questionava era um certo tipo de fazer ciência. Porém, uma ciência que nos conduza, de fato, a descobrir o sentido da vida, o fundamento último da realidade, isto é, que nos leve até o Criador é a verdadeira ciência. Portanto, mostrar para as pessoas que as instituições de ensino superior têm sua origem no esforço da Igreja ajuda a quebrar o preconceito que existe em torno dessa questão. Muitas pessoas acreditam que a universidade surgiu de uma forma inteiramente laicizada a fim de combater a Fé e o pensamento religioso. A bem da verdade, quem criou a universidade com o propósito de se debater, discutir e buscar a verdade foi a própria Igreja. Assim, o esclarecimento de tudo isso certamente ajudaria as pessoas a perceberem que elas foram manipuladas.