Desde o século 19 até o presente, o Brasil teve intelectuais que dedicaram anos de suas vidas para definir o conservadorismo. Na época, o país contava com o economista e político baiano José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu, que traduziu para o português a obra Reflexões sobre a Revolução na França, de Edmund Burke, considerado o “pai do conservadorismo moderno”. Lisboa também difundiu seus textos no periódico Roteiro Brazílico — ou Coleção de Princípios e Documentos do Direito Político.
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Já no século 20, o Brasil teve o historiador e jornalista João Camilo de Oliveira Torres. Dentre tantos livros escritos por ele, está Os Construtores do Império. João Camilo trabalhou para definir o conservadorismo genuinamente brasileiro.
Hoje, no século 21, quem segue com esse trabalho é o professor e cientista político Bruno Garschagen. Em entrevista a Oeste, ele falou de seu mais recente livro: O Mínimo sobre Conservadorismo. A obra busca tratar da tradição conservadora brasileira.
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.
Qual é a importância de escrever sobre o conservadorismo no Brasil hoje?
Para quem como eu, que tem o trabalho de ensinar e esclarecer os pontos do conservadorismo, de trabalhar para elaborar o pensamento conservador brasileiro, e obviamente de defender esse conservadorismo, a importância de escrever é justamente para apresentar a uma audiência crescente — aquela que tem interesse sobre o assunto — e fazer esse trabalho pedagógico de apresentação qualificada do conservadorismo. Àqueles que não conhecem e têm uma visão distorcida sobre o tema, meu trabalho serve para dirimir essas dúvidas, para apontar erros e mostrar que o conservadorismo tem seu conceito e sua história, inclusive uma rica tradição no Brasil do século 19. Mostrar, portanto, que não é aquela caricatura muito criticada e pouco entendida por parte dos seus críticos.
No seu mais recente livro, O Mínimo sobre Conservadorismo, o senhor fala dos “elementos do conservadorismo”. Eles são os mesmos em todos os lugares?
Cada país tem a sua própria tradição política conservadora. Por essa razão, não é possível considerar o conservadorismo como sendo a mesma coisa em todos os países ocidentais. É um fenômeno distinto do que acontece com o liberalismo clássico e com o socialismo marxista, que são os mesmos em todos os lugares. Cada conservadorismo está necessariamente vinculado à história, às tradições, à cultura social e à política de cada nação. Sem esses fundamentos que vinculam a posição política conservadora ao país de origem, não há conservadorismo. Apesar da exigência desse vínculo local que singulariza cada tradição conservadora, há fundamentos comuns e essenciais que vinculam os vários conservadorismos.
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Quais são esses elementos?
Alguns desses fundamentos principais são tradicionalismo, organicismo, ceticismo e prudência. Em resumo, o tradicionalismo é o respeito que o conservador tem pelo passado (o sábio conselheiro) e pelas tradições virtuosas que nos foram legadas, e não toda e qualquer tradição, o que faz com que o conservador seja contrário à revolução, no sentido moderno do termo. O organicismo é a visão conservadora do indivíduo não como um ser individualista e atomizado, mas como ser social que vive, identifica-se e relaciona-se socialmente com as outras pessoas; tem como vínculo comum história, tradições, cultura, idioma, costumes, hábitos, normas, instituições. O ceticismo conservador é baseado na ideia de que o conhecimento político que se pode adquirir é limitado, deve ser prático e não exclusivamente teórico; está fundamentalmente vinculado à vida concreta em sociedade. A prudência, no conservadorismo, é a combinação da concepção de Aristóteles sobre virtude intelectual e virtude moral, ou seja, algo entendido como a virtude da boa deliberação e da escolha dos instrumentos adequados para garantir a retidão dos meios e dos fins pretendidos.
No livro, o senhor aborda as origens e os princípios que constituem o conservadorismo. Quando foi, de fato, o nascimento do conservadorismo?
Quando Edmund Burke era parlamenta pelo Whig, que depois se transformou em Partido Liberal. Nessa época, no século 18, os termos conservadorismo e liberalismo não eram utilizados no vocabulário político da Europa. As duas facções políticas na época de Burke eram os Whigs e os Tories. Os termos liberal e conservador só passaram a ser utilizados, no vocabulário político europeu, a partir do século 19. Neste momento, o Tory passa a ser chamado de conservador e o Whig passa a ser chamado de liberal. Um autor como Anthony Quinton qualifica Richard Hooker como o fundador da tradição Tory/conservadora, e a maioria dos autores qualifica Burke como o fundador do conservadorismo britânico moderno pela sua contribuição ao pensamento conservador por meio de suas reflexões sobre a Revolução na França. Embora fosse um parlamentar Whig, facção política que originou o Partido Liberal, Burke foi incorporado posteriormente pelos tories. Embora veja a inegável influência de Burke no pensamento conservador britânico e no conservadorismo de outros países (inclusive no Brasil), considero que seria mais adequado afirmar Benjamin Disraeli como o fundador do moderno conservadorismo britânico tanto pelas ideias quanto pela prática política como parlamentar e primeiro-ministro tory.
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Qual a real contribuição de João Camilo de Oliveira Torres para o conservadorismo brasileiro?
A contribuição de João Camilo de Oliveira Torres é crucial. Sem o seu livro Os Construtores do Império, os conservadores brasileiros de agora, e aqui eu me incluo, não conheceriam a nossa tradição conservadora do século 19. Essa obra permite que conservadores do século 21 possam ter um parâmetro e um conhecimento do que foi essa tradição — além de terem acesso a uma história e uma perspectiva de um conservador sobre essa tradição. A maior parte das obras primárias e secundárias só é encontrada em sebos e as que estão disponíveis são de marxistas e críticos do conservadorismo. João Camilo é o único conservador brasileiro do passado que tem uma obra disponível e de fácil acesso a qualquer pessoa neste século XXI. Por isso, João Camilo é um autor fundamental para qualquer conservador de hoje, e para qualquer pessoa, que pretenda estudar o conservadorismo brasileiro do século XIX.
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No Brasil e na Inglaterra, os conservadores foram protagonistas de importantes reformas sociais. No Brasil de hoje, com tanta instabilidade, como os conservadores devem encarar as reformas?
Primeiramente, acredito que o conservador no Brasil deve ter a noção clara de que o país tem um sistema disfuncional, portanto, não dá para repetir um discurso que existia no século 19, quando havia um período de estabilidade política. Era um regime que acondicionava, de forma adequada, a prática política conservadora, o que não é o caso deste atual regime. O Estado Brasileiro, que ainda é varguista, é anti-conservador por natureza. Nnão dá para falar de “preservação das instituições” no sentido que um conservador brasileiro do século 19 falaria ou que um conservador inglês diria.
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Ao seu ver, não há espaço nem para a defesa de uma reforma política?
A única reforma que um conservador no Brasil pode defender, porque realmente resolveria a origem de muitos problemas políticos, seria uma reforma completa do regime por meio da mudança da forma de governo. O presidencialismo republicano, que é um regime revolucionário desde o seu início, já demonstrou o seu fracasso completo. Obviamente, um conservador pode defender mudanças sob o regime atual para evitar que problemas piores. Mas o conservador deve saber, de antemão, que esse tipo de reforma é só um paliativo, não vai mudar a origem do problema.
O Mínimo sobre Conservadorismo mostra que a abolição da escravatura contou com o protagonismo de estadistas associados ao conservadorismo. Qual foi a importância desse grupo no processo?
A importância dos conservadores para a abolição da escravatura no Brasil foi fundamental. Todas as leis abolicionistas foram aprovadas sob governos conservadores com apoio e votos do Partido Conservador. É importante esclarecer que tanto no Partido Conservador quanto no Liberal existiam alas abolicionistas e outras que eram gradualistas e escravocratas. Uma parte desta ala, que não era abolicionista, defendia mudança gradual e não a abolição total naquele momento. Havia outra ala que era escravocrata, que nem pensava na abolição.
E qual foi o desfecho das batalhas dessas alas?
Felizmente, as alas abolicionistas foram vencedoras, pressionaram os gradualistas para que as legislações como a Lei do Ventre Livre e a Lei dos Sexagenários fossem aprovadas. É uma infâmia que a abolição tenha demorado tanto para acontecer, pois a perspectiva conservadora mais correta naquele momento da história era a abolição desde o início do Brasil independente. A abolição naquele momento teria permitido a construção de soluções e a incorporação dos ex-escravos na sociedade brasileira. Também teria evitado vários problemas, que se aprofundaram na República e que até hoje a sociedade brasileira enfrenta ou tenta enfrentar.
Dá para imaginar como seria o Brasil de hoje caso o país tivesse nascido de forma independente sem a escravidão?
Creio que se a abolição tivesse sido feita logo naquele momento, já teríamos resolvido vários problemas ligados ao racismo e a questões sociais e econômicas. Talvez a monarquia nem tivesse sido derrubada pelo golpe militar republicano.
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