Mesmo antes da morte de sir Rogers Scruton, em janeiro de 2020, ele já era considerado o maior pensador conservador dos últimos tempos. A sua partida apenas agregou aquela chancela final de autoridade intelectual misturado a flores de lápide.
No entanto, Scruton não era meramente status. Ele, de fato, produziu livros, artigos e conferências que trataram o conservadorismo com a profundidade, a erudição e a seriedade que o assunto demanda. Foi para os países comunistas, em plena Guerra Fria, ensinar filosofia conservadora —quando sua simples presença na região poderia custar-lhe a vida ou, no mínimo, causar um acidente diplomático.
Ele dominava a filosofia como um todo, principalmente a moderna, conhecia como poucos as nuances da produção filosófica do pós-renascimento à contemporaneidade
O escritor abdicou das pompas acadêmicas e dos adágios elogiosos do mainstream para defender os valores que julgava como corretos. Scruton ensinou e foi um genuíno conservador. Praticou a coerência filosófica como meio de virtude e uniu aquilo que ele definia como pilares do pensamento conservador: defesa intelectual dos valores tradicionais e prática efetiva dos valores defendidos.
Mas Scruton, como todo bom conservador, ia além do mero debate político. Ele dominava a filosofia como um todo, principalmente a moderna, conhecia como poucos as nuances da produção filosófica do pós-renascimento à contemporaneidade. Para mim, que fique registrado, seu melhor livro continua sendo Uma breve história da filosofia moderna: de Descartes a Wittgenstein. Poucos filósofos conseguiram ser tão profundos e, ao mesmo tempo, concisos sobre uma temática tão larga e, por vezes, abstrata.
Fato é que a sua morte deixou um vazio tanto de produção crítica específica sobre o pensamento conservador como um vazio de persona, um hiato simbólico ainda não plenamente substituído no mundo conservador quando o assunto é popularidade e profundidade na produção de críticas conservadoras. Talvez aquele que hoje mais se aproxime do que Scruton fazia e representava até a sua morte seja o também gigantesco pensador Thomas Sowell.
O colunista Roger Scruton
Poucos sabem, mas Roger Scruton também foi colunista de longa data de vários jornais e revistas na Europa e nos Estados Unidos. Seus textos eram disputados, polêmicos, e controversos em muitos sentidos, pois, pela própria dinâmica das colunas, não poucas vezes o escritor se dedicou a mostrar sua crítica do momento por meio de aspectos biográficos pouco ou nada tratados em livros e textos mais formais.
Não raro, esses ensaios e artigos publicados na imprensa completaram aquelas lacunas duvidosas sobre as convicções do autor que nos livros ficavam sem um esclarecimento mais profundo. Aí jaz a riqueza da obra Contra a Corrente: as melhores colunas, críticas e comentários, organizada pelo ex-editor e agente do filósofo, Mark Dooley. O livro foi lançado em junho de 2022 pela editora portuguesa Almedina, no selo Edições 70, tanto no Brasil como em Portugal.
Ele trata de criticar Donald Trump e Bill Clinton com a mesma elegância e agudeza com que analisa a história da queda do muro de Berlin
Mais do que um compilado de artigos, organizado em temas, Contra a Corrente é antes um baú raro para quem se denomina conservador e quer se aprofundar não apenas nas críticas sobre o conservadorismo, mas também observar um crítico conservador em plena ação de análise social. Sua desenvoltura ao criticar problemas cotidianos da política, internacional e nacional, é perceptivelmente a mesma para abordar temáticas mais abstratas e difíceis. Ele trata de criticar Donald Trump e Bill Clinton com a mesma elegância e agudeza com que analisa a história da queda do muro de Berlin e os paradoxos do direito natural.
Com textos que vão desde o seu dia a dia numa convivência bairresca em alguma festividade local, até a sua análise filosófica da problemática da arte moderna e seu esvaziamento de racionalidade, Scruton mantém o nível alto de erudição e acessibilidade às ideias filosóficas. Seus textos poderiam ser lidos com o mesmo entusiasmo, seja pelo pós-doc de história do pensamento ocidental de Princeton, como por um brasileiro curioso que trombou com a obra numa estante da livraria do shopping. Ambos entenderiam o cerne de suas análises e críticas e, caso não fossem convencidos por ele ‒ o que com certeza é uma tarefa árdua de autoengano ‒, com certeza seriam impactados por sua prosa, capacidade de análise e força argumentativa.
Mais detalhes sobre Contra a Corrente
O meu preferido dessa coletânea, com certeza, foi “A consciência conservadora”. Um tratado profundíssimo, de apenas três páginas. O que mais me surpreendeu, todavia, foi “O significado de Margaret Thatcher”, publicado primeiramente no The Times, em 2013, como um tributo à Dama de Ferro que, na ocasião, tinha acabado de morrer. No texto, encontramos Scruton em um tom conciliatório e revisionista, adotando claramente uma nova abordagem ante Margaret e seu significado de resistência e patriotismo, chegando a dizer que ela foi a maior mulher da política britânica desde a rainha Elisabeth I.
Para aqueles que não sabem, Scruton foi agudamente crítico ao governo de Margaret Thatcher e suas ações econômicas, que ele julgava ser o mantra e a religião da primeira-ministra, acima até mesmo de sua devoção patriótica com o Reino Unido e suas tradições. Em seu livro O que é conservadorismo?, lançado no Brasil, em 2015, pela editora É Realizações, ele aprofunda suas críticas ao liberalismo do governo da Dama de Ferro, sendo considerado por muitos uma das mais duras oposições abertamente conservadoras. O louvável esforço de caráter de um indivíduo em rever suas críticas é maior do que aquele necessário para teimar na defesa de um valor considerado inegociável. Mas esses são apenas dois textos que destaco entre os maravilhosos 57 escolhidos de forma brilhante por Mark Dooley para Contra a Corrente.
Como acontece com todos os gênios, suas críticas antigas ainda surgem frescas como se tivessem sido escritas hoje pela manhã
Em suas 235 páginas bem editadas, encontramos o sulco do desenvolvimento mais popular e cotidiano daquele que pode ser chamado sem medo de um dos maiores teóricos do pensamento conservador contemporâneo. E, com certeza, o mais profundo e articulado crítico conservador do século XX e XXI.
Com leitura agradável que pode ser feita naturalmente — sem a exigência acadêmica de uma leitura metódica —, administrada sob uma ou duas doses de artigos por dia, recomendo veementemente para aqueles que querem combater a futilidade, agregar conhecimento cultural real, e cercar-se pela áurea de um pensador competente, acessível e genial que infelizmente não está mais entre nós. No entanto, como acontece com todos os gênios, suas críticas antigas ainda surgem frescas como se tivessem sido escritas hoje pela manhã, um pouco antes de você as descobrir.
Excelente texto e excelente dica. Obrigado
Li muitas obras do Scruton. Vi todos os seus vídeos no YouTube. Todas as palestras. Me enriqueci absurdamente com suas idéias. Com certeza está ao lado de Cristo rezando para um futuro melhor para a sociedade ocidental.