Hoje o maior ensaísta conservador vivo, na minha opinião, é Theodore Dalrymple — pseudônimo de Anthony Daniels — e o maior intelectual é Thomas Sowell. Já disse isso algumas vezes por aqui, eu sei. Enquanto o liberal negro norte-americano escreveu tratados profundos como Race and Culture, Wealth, Poverty and Politics, Intelectuais e a sociedade e Os ungidos, Dalrymple — com seu profundo conhecimento humanístico e clínico — consegue transformar uma erudição inveterada, da mais completa herança ocidental, em ensaios suscintos sem perder profundidade, técnica de escrita e capacidade analítica.
Aliás, a definição de ensaio ainda é plenamente disputada entre intelectuais da área, e, desde Michel de Montaigne, ainda não há um consenso do que faz um ensaio ser ensaio puro, mas, com certeza, duas de suas características são a capacidade de transcorrer temas profundos com facilidade que não se verte em simplismo e, além disso, em discorrer com argúcia e propriedade sobre os mais variados assuntos. Essas duas características, definitivamente, Theodore Dalrymple esbanja e samba na cara de seus críticos.
Li, é verdade, quase tudo que ele escreveu e foi traduzido — além de muitos ensaios esparsos que encontrei pela internet. Estou lendo agora o último de seus lançamentos no Brasil, Falso positivo, sobre a falsa ciência surgida em tempos de Covid e o que ela significa num espectro civilizacional e propriamente científico. Dalrymple colabora com veículos como The Times, The Daily Telegraph, The Observer e The Spectator. O escritor é psiquiatra aposentado e um erudito em tempo integral. Ele costura suas análises sobre os fundamentos dos valores filosóficos ocidentais e sobre a mais prática — quase pragmática — percepção e atuação psiquiátrica de quem já viajou, como médico ativo e observador nato, aos quatro cantos do globo, da América Latina e África, ao Leste Europeu sovietizado e extremo Oriente, tendo como um de seus hobbies declarados conhecer países governados por ditadores. Com tais capacidades conectadas, a de um filósofo moroso e um analista prático, ele consegue aliar aquela profundidade à exame rápido de seus ensaios.
Antes mesmo de Jordan Peterson surgir para o mundo, em 2017, Theodore Dalrymple já aliava uma percepção conservadora à psicologia prática
O primeiro livro que li dele foi A vida na sarjeta. Eu me recordo de passar de ensaio a ensaio num ritmo forte e interessado. Os textos tratavam de assuntos complexos sobre pessoas que amotinaram suas existências em escolhas erradas, em banditismos e vadiagens — além daquelas que se tornaram vítimas desses —, geralmente com reflexões filosóficas e psicológicas de fundo, mas, ao mesmo tempo, de fácil compreensão. Dalrymple tratava dos costumes, ideias e discursos com os quais se deparou ao tratar e conversar com pessoas que juravam firmemente serem meras vítimas sociais de forças que estão além delas e de seus controles — aliás, A faca entrou é outro livro dele que complementa esse que agora indico. A impressão que eu tinha quando li A vida na sarjeta, recordo-me bem, é de que o autor conseguiu argumentar com profundidade e referência sobre temas que raramente, nos dias atuais, pensaríamos estarem baseados em algo além de um senso comum familiar ou “preconceitos” citadinos.
O segundo livro que li, aliás, tem a ver com “preconceitos”, a saber: Em defesa do preconceito. Confesso que é de longe o meu preferido. Na obra, o ensaísta inglês consegue trazer para o debate cotidiano assuntos delicados como feminismo e os tratos de saúde dados a dependentes químicos, e analisá-los sob uma perspectiva conservadora, de senso comum mesmo, todavia, fundamentada tanto na sabedoria da literatura quanto na mais sofisticada medicina psiquiátrica, mostrando-nos que os “preconceitos” são, antes, um instrumento extremamente útil aos indivíduos. Eles são dispositivos de percepção e julgamento rápido em circunstâncias que exigem uma leitura imediata de uma situação. O preconceito é toda a envergadura da sabedoria humana tornada reflexo intelectual cotidiano nos indivíduos, uma ferramenta indispensável desde a mais tenra infância à mais longínqua velhice, sendo incutido e bem cultivado no mais indobrável tradicionalista católico até o mais aguerrido militante progressista.
Antes mesmo de Jordan Peterson surgir para o mundo, em 2017, Theodore Dalrymple já aliava uma percepção conservadora à psicologia prática. Ao contrário de Peterson, que hoje está para um cristão ortodoxo — talvez a caminho do catolicismo romano —, Dalrymple, apesar de assumir que suas ideias são profundamente inspiradas na filosofia e simbologia cristãs, afirma-se um agnóstico convicto em vários ensaios — principalmente em seu livro Qualquer coisa serve.
Pois bem, pela manhã, recomendo sempre um café forte e os ensaios de Theodore Dalrymple, é o que faço habitualmente. E, se me permitem um plano de leitura para os que começarão a lê-lo agora, O prazer de pensar, A vida na sarjeta e Nossa cultura… ou o que restou dela são dignos de um começo completo na arte de um dos mais competentes ensaístas modernos. E se quiserem se aprofundar um pouco mais, tem o seu excelente romance Tanto por fazer. Todas as edições brasileiras foram lançadas pela competente É realizações, isso é digno de nota pois, lá, em 2005, era preciso muita coragem para lançar Dalrymple num país que mal sabia o que era “conservadorismo”, e que, quando ouvia tal palavra, achava que era coisa de Hitler.
Quando Dalrymple se for, com certeza ficará uma lacuna imensa entre os ensaístas conservadores. Um hiato que dificilmente será plenamente ocupado por outro ‒ assim como ficou o vão filosófico deixado por Roger Scruton. Eis um autor que merece nossas horas de leituras, que merece nossas estantes, nossas considerações e referências: mais Theodore Dalrymple, sempre que possível.
Sim, caro Pedro Henrique, Dalrymple é o grande mestre ensaísta vivo. Em um patamar próximo se encontram Christopher Hitchens e Olavo de Carvalho. É minha trinca favorita.