(J.R. Guzzo, publicado no jornal Gazeta do Povo em 10 de março de 2022)
Em sociedades democráticas bem-sucedidas, nas quais existem verdadeiros tribunais superiores de Justiça — e não repartições públicas que obedecem a ordens de ditaduras, ou grupos de ação política e outras degenerações patológicas — funciona com bastante precisão um mecanismo chamado “jurisprudência”. Trata-se, em linguagem comum, do histórico das decisões tomadas ao longo do tempo pelos magistrados — o conjunto de suas sentenças, manifestações e despachos, cuja linha tende a se repetir caso após caso, no passado e no presente. A jurisprudência é um instrumento essencial para a prestação da Justiça. É o meio mais poderoso, mais acessível e mais compreensível para todos — advogados, clientes, governos e a população em geral — terem uma informação fundamental em qualquer democracia: como a Justiça está aplicando a lei neste ou naquele assunto. É isso que fornece aquela que talvez seja a marca mais importante de uma Justiça responsável, decente e lógica — a previsibilidade.
Isso não existe no Brasil de hoje. Num país em que o Supremo Tribunal Federal se transformou há muitos anos num centro de atividade política, onde o que vale são os desejos, as posições ideológicas e os interesses pessoais dos ministros, a Justiça superior decaiu para uma situação exatamente oposta à que deveria ter: sua característica principal, hoje, é ser imprevisível. É um recuo para um estágio primitivo das sociedades, onde o cidadão não conta com a proteção sistemática da lei. O que funciona, unicamente, é a vontade de quem tem o poder de mandar na Justiça naquele momento — o faraó, o ditador ou, no atual caso brasileiro, o ministro do Supremo. Justiça que depende das vontades pessoais dos juízes não é Justiça. É essa coisa que temos hoje por aqui.
Não se trata de um ponto de vista; é a conclusão dos fatos objetivos, à disposição de todos e do conhecimento geral. Há exemplos diários. Fato: o ministro Edson Fachin afirmou publicamente, num despacho ao presidente Luiz Fux, que o trabalho da Justiça no combate à corrupção “tem sido pautado pela legalidade constitucional”. Fato: três meses depois, em março de 2021, tomou a prodigiosa decisão de anular todas as ações penais contra o ex-presidente Lula por um detalhe burocrático miserável — CEP errado, no seu entender. Ou seja: tudo estava perfeitamente legal num dia, segundo o ministro, mas de repente virou ilegal, segundo o mesmo ministro. Prever o quê, desse jeito?
Fato: dias atrás o ministro Gilmar Mendes disse, também em público, que a Operação Lava Jato tinha obtido confissões por meio de “tortura” — o que transforma os criminosos em vítimas e a autoridade judiciária em autora de crime previsto no Código Penal Brasileiro. Fato: o ministro Gilmar Mendes, em 2015, declarou que a Lava Jato era um modelo de virtude, e que o PT dos governos Lula e Dilma estava executando um processo para se perpetuar no poder através do roubo de dinheiro público; calculou, até, em quantos bilhões eles tinham metido a mão até aquele momento.
Esse é o tipo de “jurisprudência” que se pratica no Brasil de 2022. É esse o valor da palavra dos ministros do Supremo.
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