(J.R. Guzzo, publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 8 de dezembro de 2021)
Tornou-se comum nos últimos tempos, e com toda a razão, dizer que o Supremo Tribunal Federal (STF) não tem limites. Seja lá quais forem as decisões que toma, mesmo as mais extravagantes ou as francamente contrárias ao que está escrito nas leis, todo mundo engole e fica por isso mesmo — o que só tem levado o STF a ir dobrando as suas apostas. Por que não? Se os ministros deitam e rolam, e ninguém fala nada, eles vão continuar deitando e rolando, cada vez mais.
Um ministro chegou, inclusive, a mudar sozinho a Constituição: numa extraordinária palestra em Lisboa, recentemente, criou no Brasil um novo Poder, o Poder Moderador, e declarou que ele está sendo exercido pelo STF. Quer dizer: não só o tribunal decide tudo, da nomeação do diretor da Polícia Federal à prisão de um deputado em pleno exercício de seu mandato, como governa o Brasil de hoje, além e acima dos três outros Poderes. Não houve nenhuma objeção.
A realidade, porém, não é bem essa. O STF está mandando em tudo, sim, mas só enquanto o restante do sistema político aceita que mande; se alguém disser “não”, a coisa pode mudar de figura. Não tinha acontecido até agora. Mas aconteceu, e o resultado foi uma surpresa geral: uma ordem do STF, mais uma, simplesmente não foi cumprida pelo Congresso, e o tribunal engoliu a desobediência. Acharam, é claro, uma explicação amarrada com barbante para dizer que não foi “bem assim”, mas foi.
Essa primeira derrota do STF, que todos fazem questão de fingir que não foi derrota, deu-se em torno da lei das “Emendas Parlamentares” — que equivale, mais ou menos, à criação de um orçamento federal privado cuja execução ficará a cargo de deputados e senadores. A ministra Rosa Weber não gostou da lei. Anulou o que o Congresso havia aprovado, deu a si própria o poder de dizer como as leis devem ser feitas e achou — todos acharam — que o STF, mais uma vez, estava dando uma ordem ao Legislativo e que o Legislativo, mais uma vez, iria abaixar a cabeça e obedecer.
Só que não funcionou — enfim não funcionou. Pela primeira vez na atual encarnação do STF, Câmara e Senado se recusaram a cumprir uma decisão formal dos ministros. Com certeza, nesse episódio específico, eles foram longe demais na fé cega em seus poderes. Acreditaram que podiam, também, mexer nos interesses materiais diretos dos parlamentares, e não podem; isso, simplesmente, está acima da capacidade do STF, ou de qualquer força humana presente na Terra. Resultado: dessa vez quem deu as ordens foi o Congresso. O tribunal, cuja característica maior não é a coragem pessoal dos seus integrantes, recolheu o flap e ficou quieto.
Naturalmente, os parlamentares arrumaram uma maquiagem apressada na lei, que não muda nada em sua essência, para fazer de conta que estavam levando em consideração o despacho da ministra. Mas foi só isso — troca de seis por meia dúzia, ou mudança na ordem dos fatores que não altera o produto e, no fim, não convence ninguém. O fato é que o STF anulou a lei e o Congresso manteve a lei em vigor. E agora: como é que fica? Fica que o Supremo só manda, mesmo, quando tem pela frente quem está à procura de ordens para obedecer. Na primeira vez em que encontrou resistência, cedeu na hora.
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