(J.R. Guzzo, publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 26 de outubro de 2022)
O Brasil está ficando cada vez mais viciado no consumo de uma droga perigosa — passou a acreditar que é possível, e recomendável, defender a democracia violando a Constituição e as leis do país. É o que faz quase todos os dias o sistema STF-TSE: impôs a ideia e a prática de que a “democracia”, tal como é definida por seus ministros-proprietários, é um valor que está acima de qualquer outra consideração, incluindo toda a legislação em vigor, as liberdades públicas e os direitos individuais. A partir daí, vale tudo: se um ministro decide, sozinho ou com seus colegas, que a “democracia” está sendo posta em risco por isso ou por aquilo, ele dá a si próprio poderes de fazer o que bem entende para “salvar o país”. O resultado é que não há mais lei no Brasil. Há, unicamente, o que o STF-TSE decide; a lei, hoje, é a vontade de quem está lá dentro.
Não há sinais de cura para isso. Ao contrário: os ministros são cada vez mais incentivados pelas classes intelectuais, as almas “equilibradas-moderadas-civilizadas” e a elite que se considera “progressista”. Recebem aplausos públicos a cada ilegalidade que praticam – quanto mais grosseira a ilegalidade, maior o aplauso. São louvados em manifestos de defesa das “instituições” e do “estado de direito”. Impuseram, em flagrante desrespeito à Constituição, a censura à imprensa; receberam, em resposta, uma proclamação de apoio de milhares de jornalistas — um caso único no mundo. Eliminaram a liberdade de expressão nas redes sociais, mantém preso há mais de um ano um chefe político de direita, sem culpa formada e sem data para julgamento, e bloqueiam rendimentos financeiros legítimos de comunicadores que entram na sua lista negra de “inimigos da democracia”. A cada uma dessas coisas foram saudados como heróis da pátria. Por que, nesse caso, haveriam de parar?
Toda a questão se resume, quando se olha para as realidades objetivas, a uma pessoa: o presidente Jair Bolsonaro. Ficou estabelecido pela dupla STF-TSE, e por todas as forças que os apoiam, que “democracia”, no Brasil, significa impedir Bolsonaro de continuar na presidência, por todo e qualquer meio que se possa acionar. É isso — e só isso. E a legalidade? O alto Judiciário se convenceu que a legalidade é coisa secundária, que tem de ser ignorada se isso ajudar na queda de Bolsonaro; mais que secundária, pode atrapalhar. Em nome da “democracia”, então, a legalidade que se exploda. E os cidadãos que apoiam o presidente e querem votar nele? Mesma resposta: a vontade dessa parte da população não pode valer, porque não combina com a definição de democracia feita pelos ministros, ou jornalistas, ou pessoas “lúcidas”, ou advogados do grupo “Prerrogativas” ou, mais do que tudo, o ex-presidente Lula e o PT. É uma vontade “errada”; não pode valer, portanto. Ficamos assim: para salvar a democracia, é preciso destruir o sistema democrático. É a ideia do momento.