As fraudes em licitações para desviar milhões de reais de dinheiro público e depositá-las no bolso da maior facção criminosa do país, o Primeiro Comando da Capital (PCC), atingiram mais cidades paulistas do que se imaginava. A informação foi divulgada pelo portal UOL, nesta segunda-feira, 20.
O esquema, que se estendeu por anos, usava empresas ligadas a um integrante da facção e incluía pagamento de propinas a agentes públicos.
Entre 2016 e 2023, mais de R$ 251 milhões em dinheiro público foram parar em CNPJs ligados ao PCC, mostram dados do Tribunal de Contas do Estado (TCE). Ao menos 25 prefeituras e câmaras municipais, além de uma fundação cultural do Estado, firmaram contratos com empresas do esquema.
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O operador do crime, segundo investigação do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), é Vagner Borges Dias, membro da facção conhecido como Latrell Brito, que se apresentava como empresário e músico de pagode. Ele está foragido.
Brito é o criador do Grupo Safe, formado por ao menos sete empresas registradas em nome dele e no de laranjas. Ele usava as empresas para vencer licitações que incluíam documentos falsos, simulação de concorrência e corrupção de agentes públicos, informou o MP-SP.
Empresas lavavam dinheiro para o PCC
As empresas também serviriam para lavar dinheiro do tráfico de drogas e de outros crimes cometidos pelo PCC. Pelo menos uma delas teve como representante outro membro da facção: Márcio Zeca da Silva, condenado em primeira instância por tráfico de drogas.
Latrell Brito mantinha um grupo de WhatsApp para combinar lances em pregões eletrônicos e presenciais com servidores, secretários municipais e políticos em mandatos eletivos.
Ele definia a empresa do grupo que venceria a licitação e como abordaria concorrentes legítimos para convencê-los a desistir das disputas, mostram as provas. Mensagens encontradas no celular de Brito sugerem que o plano foi concebido pelo próprio PCC.
“Sou Comando”, escreveu Latrell Brito, em mensagem de WhatsApp encontrada pelo MP-SP. “Sempre fui Comando.”
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Em abril, o Grupo de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do MP-SP deflagrou a Operação Munditia para desvendar o esquema do PCC nas administrações de cidades paulistas. A Justiça de São Paulo acolheu a primeira denúncia, de crime de organização criminosa, contra 17 pessoas.
Agora, o foco da investigação do MP-SP será a corrupção de agentes públicos. Três vereadores acusados de participar do esquema foram presos: Flavio Batista de Souza (Podemos), de Ferraz de Vasconcelos; Ricardo Queixão (PSD), de Cubatão; e Luiz Carlos Alves Dias (MDB), de Santa Isabel. Esses políticos ajudaram as empresas do PCC a vencer licitações em suas respectivas cidades em troca de propinas, segundo a investigação.
O suborno era pago em dinheiro vivo e em transferência por Pix em suas próprias contas bancárias e dos respectivos parentes. Os promotores investigam se houve vazamento que permitiu a Latrell Brito escapar da prisão.
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As cidades com contratos com as empresas do PCC são as seguintes: Poá, Santa Isabel, Arujá, Buri, Ferraz de Vasconcelos, Itatiba, Peruíbe, Caieiras, Cubatão, Guararema, Guaratinguetá, Pedro de Toledo, Sorocaba, Jaguariúna, Mogi das Cruzes, Franca, Guarujá, Pindamonhangaba, Araraquara, Guarulhos, Campinas, Atibaia, Nazaré Paulista, Suzano e São Vicente, além da Fundação Cultural Cassiano Ricardo (localizada em São José dos Campos).
Esquema alcançou o metrô de SP
O esquema alcançou também o metrô de São Paulo, conforme reportagem publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo. O contrato de R$ 41 milhões foi alvo de debates entre membros do PCC sobre quem receberia parte da propina.
Latrell Brito afirmou, em mensagens do WhatsApp, que um funcionário do metrô havia obtido o contrato para ele. Todos os contratos firmados, em sua maioria de mão de obra terceirizada na área de limpeza e serviços gerais, são investigados pelo MP-SP e por técnicos do TCE.
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A Vagner Borges Dias ME, apesar de ser classificada como microempresa — cujo limite de faturamento anual é R$ 360 mil —, firmou contratos milionários com diversas prefeituras. Obteve contratos com valores empenhados em mais de R$ 315 milhões com prefeituras e câmaras municipais paulistas e recebeu mais de R$ 211 milhões entre 2016 e 2023.
Apesar do valor milionário, a ME entrou em recuperação judicial e foi alvo de vários processos trabalhistas. O MP-SP afirma que o processo de recuperação é uma fraude.
As empresas do PCC têm mais de 30 processos em que são consideradas inadimplentes pela Justiça do Trabalho. O motivo é falta de pagamento de salários dos funcionários terceirizados.
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Isso ocorreu em Campinas e em Araraquara, por exemplo. Essas prefeituras firmaram contratos milionários de prestação de serviços com a empresa do integrante do PCC e negam irregularidades no processo licitatório. Campinas, governada por Dario Saadi (Republicanos), pagou quase R$ 19 milhões à microempresa em nome de Vagner Borges Dias. Os pagamentos foram feitos em 2022 e 2023.
Ao UOL, a prefeitura afirmou que o contrato “era para a prestação de serviços de limpeza, asseio e conservação predial, incluía mão de obra, mais recepção, portaria e zeladoria e atendeu a diversas secretarias”.
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Ainda segundo a nota da prefeitura, houve apenas um contrato firmado com a Vagner Borges Dias ME, que venceu uma licitação com 37 empresas. O contrato começou a valer em fevereiro de 2022 e foi finalizado em janeiro de 2024.
“Esta contratação respeitou todas as regras da lei de licitações”, informou a Prefeitura de Campinas. “Não existem indícios de falta de lisura ou transparência no processo.”
A Vagner Borges Dias ME teve seu pagamento suspenso durante o contrato por não quitar os salários dos trabalhadores terceirizados.
“O valor foi repassado pela prefeitura aos trabalhadores, diante de orientação da Secretaria de Justiça”, informou a Prefeitura de Campinas. “Os pagamentos foram assumidos pelo município entre maio de 2023 e janeiro de 2024 com os recursos do próprio contrato para que não houvesse descontinuidade dos serviços.”
Um processo tramita na 8ª Vara do Trabalho de Campinas. A prefeitura informou que efetuou o depósito judicial do saldo por causa da empresa para pagamento dos débitos decorrentes de ações trabalhistas.
“Sobre a operação do Gaeco, a Prefeitura de Campinas não foi notificada porque não está envolvida no processo de investigação”, afirma a administração municipal.
Todos os contratos firmados pelas empresas envolvidas com órgãos públicos serão analisados, inclusive o da cidade de Campinas, conforme resposta oficial do MP-SP e do TCE.
Facção criminosa recebeu mais de R$ 10 milhões em Araraquara
Já Araraquara, administrada por Edinho Silva (PT), pagou mais de R$ 10 milhões, em 2021 e 2022, à mesma microempresa. O contrato era de terceirização dos serviços de limpeza da Secretaria de Educação.
“Todos os documentos exigidos no processo foram apresentados”, informou a Prefeitura de Araraquara. “E, após cumprir os trâmites legais, a empresa assinou contrato, permanecendo como terceirizada da prefeitura até 2022, quando o mesmo foi finalizado em virtude do seu vencimento.”
Conforme a Secretaria Municipal da Educação de Araraquara, “(…) a empresa trouxe uma série de problemas à municipalidade, em razão de sucessivos atrasos nos pagamentos dos seus funcionários, os quais a própria secretaria e também a Procuradoria-Geral da Prefeitura buscaram resolver em ação conjunta com Ministério Público do Trabalho.”
“O processo licitatório foi lícito”, informou a administração de Araraquara. “E,= de acordo com a lei de licitações, assim como em todos os demais atos administrativos da Prefeitura de Araraquara, que age com lisura, transparência e rigor na gestão do dinheiro público.”
Parte fundamental do esquema era a cooptação de funcionários das prefeituras e de políticos com mandatos eletivos. Um dos vereadores presos por envolvimento no esquema, Ricardo Queixão fazia pedidos insistentes de propina a Latrell Brito.
Ele chegou a justificar que precisava comprar um terno para sua posse como presidente da Câmara Municipal de Cubatão. Na manhã de 12 de novembro de 2020, Queixão ligou para o criminoso do PCC e cobrou o pagamento. Não foi atendido e resolveu enviar mensagens por WhatsApp.
“Meu brother”, escreveu Queixão. “Não esquece de mim, não. Temos muita coisa para alinhar no próximo mandato.”
Em 29 de dezembro daquele ano, três dias antes da posse, Queixão fez novo pedido. “Vê se consegue agilizar o pagamento para mim, tenho de comprar terno para posse e agilizar outras coisas para minha presidência.”
Latrell Brito pediu que o vereador enviasse o número de uma conta e, num áudio, apontou o pagamento a funcionários como motivo do atraso. Queixão enviou os dados bancários de sua mulher e, em outra oportunidade, a chave Pix do filho. Os pagamentos giravam em torno de R$ 2 mil a R$ 5 mil
Queixão admitiu em audiência judicial que recebia uma “ajuda” de R$ 5 mil mensais de Latrell Brito. Ele chorou durante o depoimento. Outro vereador, Flavio Batista de Souza (Podemos), chegou a reclamar da porcentagem que receberia em troca de ajudar Latrell Brito a conseguir um contrato, no valor de R$ 267 mil, com a Câmara Municipal de Ferraz de Vasconcelos. O vereador cobrou 7% do total, o que corresponderia a cerca de R$ 18,6 mil.
“Então, essa sua matemática está errada, viu como você é ruim de matemática?”, perguntou Souza. “Como é que você ganha tanto dinheiro e não sabe fazer conta?”
O político foi buscar a propina, paga em dinheiro vivo, na sede da Mova Empreendimentos, em Mogi das Cruzes, de acordo com a investigação do MP-SP. A defesa do vereador não foi encontrada para comentar.