Nestes tempos paradoxais em que nos encontramos a cada esquina com petistas e assemelhados que se consideram donos da bola, como proceder quando temos de desenvolver trabalhos políticos em cenário dominado por eles? Esse tipo de ação é possível. Vou trazer aqui um caso concreto, acontecido no século XIX, com um dos teóricos mais importantes do liberalismo democrático: Alexis de Tocqueville (1805–1859).
Tocqueville não foi um acadêmico, embora, pela sua formação de advogado na Universidade de Paris, valorizasse o respeito que o pesquisador da área social devia ter pelos fatos históricos. O nosso personagem bem que tentou seguir o caminho da magistratura, mas, no exercício da profissão de juiz (que inicialmente tentou na pequena cidade de Versalhes), deparou-se com uma limitação natural: faltavam-lhe os dotes de um grande orador, condição que era essencial, naqueles tempos, para o desempenho da função de magistrado.
Alexis preferiu o caminho das viagens de estudo, da escrita de ensaios e da atividade parlamentar, como deputado à Assembleia Nacional pela região onde seu pai, Jean-Bonaventure Clérel, conde de Tocqueville (1772–1856), tinha o castelo da família, na Normandia. Na gestão pública, o pai de Tocqueville trabalhou como prefeito de várias cidades francesas, tendo realizado projetos de inclusão econômica, que se traduziram na criação do Banco dos Pobres em várias localidades. O nosso autor acompanhou essas atividades, familiarizando-se com as políticas locais de estímulo à poupança para operários e trabalhadores rurais pobres.
Dessa experiência, bem como de suas viagens de estudo à América, à Inglaterra, à Itália etc., Tocqueville deixou a sua Memória sobre o pauperismo (1835). Destacava nela que a melhor forma de lutar contra a pobreza não era apresentando aos pobres uma fácil solução messiânica, caída do céu, como pretendiam os socialistas, mas criando caminhos concretos para tirá-los da pobreza, mediante soluções moderadas e realistas que respondessem aos ideais comunitários dos corpos intermediários de origem feudal. Em relação a eles, cito este pequeno trecho que se encontra na Democracia na América, no início do primeiro livro: “As instituições comunais são, para a liberdade, o que as escolas primárias são para a ciência”.
A natural limitação de Tocqueville para a oratória foi subsanada com trabalho e empenho: o jovem deputado e futuro ministro de Negócios Exteriores (1849) na Segunda República presidida por Luís Napoleão Bonaparte (1808–1973) passou a escrever todos os seus discursos e a prepará-los com afinco, com detalhadas pesquisas sobre os temas em pauta. Essa foi a base para a escrita da sua grande obra, na qual resplandecem ensaios de inegável vigor como A Democracia na América (em dois volumes, publicados em 1835 e em 1840), Souvenirs (1848) e O Antigo Regime e a Revolução (1856), além de uma riquíssima correspondência, como a mantida com o filósofo utilitarista inglês John Stuart Mill (1806–1873).
Entre 1839, quando se elegeu deputado pela primeira vez, e 1851, quando o presidente da Segunda República, Luís Napoleão Bonaparte (1808–1873) deu o golpe de Estado fechando o Parlamento para se tornar Imperador da França, Tocqueville atuou como deputado de tendência de centro-esquerda (no contexto da época) no Parlamento. Participou durante sete meses, em 1849, como ministro dos Negócios Estrangeiros da Segunda República, integrando o gabinete conservador presidido por Odilon Barrot (1781–1873) diretor do Partido da Ordem. Colocou em prática uma política aberta e firme em face do autoritarismo de Luís Napoleão, agindo sob o princípio de não fazer aquilo que conspirasse contra as suas convicções. Tocqueville constatou, com surpresa, como o presidente Luís Napoleão soube respeitar as suas convicções éticas.
Duas contribuições ressaltam na passagem de Tocqueville pelo Ministério dos Assuntos Exteriores: em primeiro lugar, a formulação de uma nova política colonial e, em segundo lugar, as exigências apresentadas ao papa como condição para a França lhe garantir o seu apoio contra as investidas dos revolucionários italianos.
Quanto ao primeiro item, Alexis de Tocqueville formulou uma nova política colonial para a França, que levasse em consideração não apenas as expectativas do governo, mas também garantindo aos colonizados, na Argélia particularmente, a defesa das suas propriedades e da sua expectativa de melhora na condição de vida.
Naquilo que dizia respeito às relações do governo com a Santa Sé, Tocqueville defendeu o apoio da França para o papa conseguir manter a sua autoridade sobre os Estados Pontifícios, com a condição de que o pontífice Pio IX criasse mecanismos de representação política dos seus súditos no Parlamento. Após o papa ter evidenciado a sua aprovação à exigência apresentada por Tocqueville, o Exército francês (uma força de sete mil homens que ocupavam Roma) garantiu a segurança do soberano pontífice. Tudo desandou pouco tempo depois, quando o papa recuou. Alexis de Tocqueville, católico por tradição, sentiu-se traído na sua fé e nas suas convicções liberais.
Leia também: “A tragédia na educação”, reportagem publicada na Edição 202 da Revista Oeste
*Ricardo Vélez-Rodríguez nasceu em Bogotá, na Colômbia. É conselheiro do Instituto Liberal. Foi ministro da Educação do Brasil em 2019. Formado em filosofia (licenciatura, mestrado e doutorado), pesquisa a história das ideias filosóficas e políticas no Brasil e na América Latina.
Exatamente meu caro Professor Doutor!
Não ao “fishing expedition”, e sim ao ensinar a pescaria consistente, duradoura, que de fato traz mudanças concretas aos cidadãos!
Show de TOCQUEVILLE!
Seco e direto ao ponto. Vélez-Rodríguez deveria ser ministro da Educação até hoje.