As recentes mudanças promovidas pelo governo Lula no Programa Médicos pelo Brasil (PMpB), criado em 2019 pelo governo Bolsonaro com o objetivo de especializar médicos e contratá-los sob regime CLT, vão contra a legislação.
Essas alterações afetam cerca de quatro mil profissionais que atuam em áreas remotas e vulneráveis no Brasil e colocam em risco a qualidade do atendimento nessas regiões.
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Raphael Câmara Medeiros Parente, conselheiro do Conselho Federal de Medicina (CFM), alerta que “se o governo não cumprir o que está na lei, os médicos vão acabar pedindo demissão, e as comunidades ficarão sem assistência”.
Ele explica que os médicos do PMpB foram aprovados em concurso para cumprir uma carga horária de 60 horas semanais durante dois anos e, então, obter o título de especialista em Medicina de Família e Comunidade (MFC).
No entanto, no final do processo, em outubro, o Ministério da Saúde anunciou que os médicos não receberiam mais o título de especialista e, ao invés, farão um teste eliminatório neste ano.
“Caso algum médico não seja aprovado, poderá permanecer no mesmo local [de trabalho] como bolsista do Programa Mais Médicos [não mais do Programa Médicos pelo Brasil]”, explicou o Ministério da Saúde, em nota enviada ao jornal Gazeta do Povo.
“Isso é um desrespeito com esse grupo, que aceitou o apelo de cuidar dos brasileiros diante da promessa de contratação pela CLT”, diz o presidente do CFM, José Hiran Gallo. De acordo com ele, não há previsão em edital ou na legislação para a mudança anunciada pelo governo, o que a torna ilegal.
Segundo Raphael Câmara, essa transição para o Mais Médicos prejudica os profissionais, pois esse programa não oferece estabilidade ou benefícios trabalhistas, como FGTS, INSS e férias, ao contrário do PMpB, que contrata em regime CLT com melhores condições.
“O Mais Médicos trabalha com bolsas e tem rotatividade muito alta, enquanto o PMpB seleciona profissionais por concurso, os especializa na área e contrata em regime CLT, com estabilidade, melhores salários e garantia de que o médico não será demitido por qualquer motivo”, diz Câmara, que era Secretário de Atenção Primária à Saúde em 2021, quando o programa saiu do papel efetivamente.
Já a Associação Médicos Pelo Brasil (AMPB), que representa os médicos do PMpB, pontua que essa tentativa de aprimorar o conhecimento e a carreira dos profissionais em busca de melhor atendimento aos cidadãos parece estar sendo ignorada.
“Uma total hipocrisia de quem fala tanto em direitos trabalhistas e direitos sociais”, diz o médico Carlos Camacho, presidente da instituição.
Criada em 2022, a AMPB luta pela valorização da carreira federal em MFC, independentemente dos governos. “Tínhamos receio de que o Programa Médicos pelo Brasil fosse desconstruído por ter sido feito pela oposição”, diz Camacho. “E estamos vendo isso acontecer.”
Ele destaca que os médicos do PMpB cumpriram uma jornada de 60 horas semanais durante dois anos — mais de seis mil horas de trabalho —, mas agora estão sem a titulação prometida. “Na prática, já está indo para três anos, sem encerramento do processo.”
Médica de São Paulo cumpriu regime de 60 horas semanais por dois anos
A médica generalista Camila Ignácio, da zona leste de São Paulo, é uma das participantes do programa. Ela fez o curso entre 2023 e 2024 e garante que o conteúdo “foi excelente, baseado em competências do Médico de Família, com a supervisão de tutores clínicos e uma plataforma de estudos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)”.
À Gazeta, ela também relatou como foi extenuante ocupar 60 horas semanais para o programa, sendo 40 horas de atendimento a pacientes e 20 de estudos. “Essas horas de dedicação significaram menos tempo com meus amigos e familiares e menos horas de lazer, mas havia a motivação de me tornar especialista.”
Estudante de uma escola pública da periferia, Camila se tornou a primeira médica da família e estava ansiosa para prestar a prova de titulação. Ela conta que chegou a passar na residência tradicional em Medicina de Família antes de ingressar no PMpB, mas desistiu da vaga para fazer a especialização do programa do governo federal, com vaga garantida em regime CLT.
“Confiei que uma entidade da magnitude do Ministério da Saúde cumpriria o prometido e que o médico deixaria de ser um eterno bolsista”, diz Camila.
➡️ A ministra Nísia Trindade anunciou, nesta tarde, a integração dos programas Médicos pelo Brasil e Mais Médicos, fortalecendo o cuidado nas áreas que mais precisam.
— Ministério da Saúde 🩵 (@minsaude) November 26, 2024
Mas o período de dois anos de curso com carga horária extensiva terminou e ela descobriu, no fim de 2024, que não receberia a titulação esperada e que até mesmo quem já tinha esse título antes de ingressar no programa poderia ser eliminado, sem contratação. “Me sinto enganada”, lamentou a paulista de 33 anos, que diz ter sido “desesperador” acompanhar as informações divulgadas pelo governo.
Associações de medicina comentam as mudanças no Médicos pelo Brasil
Fernando Sabia Tallo, conselheiro titular da Associação Médica Brasileira (AMB) na Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM), também criticou as mudanças. “Mais uma vez, o médico brasileiro é passado para trás”, disse ela em vídeo publicado nas redes sociais.
De acordo com Tallo, a Lei 13.958 dá aos bolsistas que cumprissem todas as etapas do programa o direito de fazer a prova para obter título de especialista.
Em nossa gestão foi criado o Programa Médicos pelo Brasil, extinto pelo atual governo, que garantia vínculo empregatício (CLT), com isso maior probabilidade de fixar esses profissionais em áreas remotas. Em 2022, foram contratados para o programa 5 mil médicos a mais para a… pic.twitter.com/ku9Nz0zO8a
— Marcelo Queiroga 🇧🇷🇧🇷 (@mqueiroga2) December 6, 2024
Ele explica que a prova de título de MFC é prestada no Brasil em três situações: por médicos que desempenharam a função durante quatro anos, por profissionais que tenham cursado residência credenciada pela CNRM, ou por quem concluiu uma residência similar, certificada pela sociedade da especialidade.
No PMpB, o governo federal tentou realizar a terceira opção com um currículo semelhante à residência em MFC. Porém, Tallo aponta que o programa “não foi vinculado diretamente à Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC)”, o que é exigido nesses casos.
Então, como “nenhuma outra entidade tem autoridade para fazer um curso que dê direito à prova de título, surgiu o problema”, diz o conselheiro da AMB, ao afirmar ainda que todas as titulações precisam ser autorizadas pela associação, e que a entidade deve cumprir as normas vigentes. “A posição tecnicamente é essa.”
Desrespeito e incerteza! O governo Lula mudou as regras do Médicos pelo Brasil, deixando 4 mil médicos sem titulação e direitos. Quem atuou em áreas vulneráveis agora enfrenta a precarização no Mais Médicos. A AMPB já acionou a Justiça! #MédicosPeloBrasil pic.twitter.com/XclE5Xf5GU
— Dra. Mayra Pinheiro (@dramayraoficial) February 3, 2025
Em nota encaminhada à Gazeta do Povo, a AMB diz que o assunto está em análise pelo departamento jurídico. “Tão logo tenhamos posição definida a respeito, iremos divulgá-la.”
Entretanto, o médico anestesista Diogo Leite Sampaio, vice-presidente da AMB na época do lançamento do PMpB, informa que a associação participou da elaboração do programa, que surgiu da necessidade de especialistas em Medicina da Família para regiões remotas e vulneráveis.
De acordo com Sampaio, a AMB percebeu que o programa Mais Médicos, criado em 2013, pelo governo de Dilma Rousseff, não atendia às necessidades relacionadas à atenção primária e que municípios de áreas remotas e de vulnerabilidade precisavam urgentemente de especialistas em Medicina da Família que se fixassem nessas regiões.
“Foi algo excepcional para aquele momento, e depois voltaríamos a valorizar a residência médica tradicional”, diz ele. O médico também ressalta que o Congresso Nacional sancionou a lei para estabelecer o programa, e que “a lei é superior às normas”.
https://t.co/8NR8frfSDk
— el hombre pulpo (@coproduto) February 3, 2025
Eu fico bem feliz que essa matéria saiu, porque essa situação está afetando diretamente pessoas da minha família.
Os fatos são claros e alarmantes:
1. Médicos que ingressaram legalmente em um programa público estão sendo punidos pela mudança de…
A SBMFC, que pode certificar residência similar à tradicional para a titulação de especialista, também apoiou a iniciativa e participou da elaboração do programa. Em 28 de agosto de 2019, o então diretor da instituição, Daniel Knupp, afirmou no Senado que a entidade estava disposta a oferecer a prova aos profissionais que concluíssem a carga horária de trabalho e estudos exigida pelo PMpB.
“Acreditamos que esse curso será suficiente para formar profissionais com as competências necessárias para atendimento à população nos serviços de atenção primária”, disse Knupp, à época.
A instituição também chegou a emitir uma nota técnica em relação ao programa, em agosto de 2019, reconhecendo o contexto nacional de déficit de especialistas em MFC e pontuando que “a formação proposta, composta por curso de especialização com duração de dois anos e carga horária de 60 horas semanais” seria suficiente, desde que tivesse “apoio pedagógico da SBMFC”.
No entanto, em nota enviada à Gazeta na última semana, a diretoria atual da Sociedade informa que, embora tenha existido esse entendimento inicial, não foi realizada a “construção conjunta do Projeto Político-Pedagógico do curso com a SBMFC” e nem o monitoramento e avaliação.
De acordo com Raphael Câmara, que atuou como secretário de Atenção Primária à Saúde na época, as gestões das entidades mudaram depois da assinatura da lei, e o encerramento do prazo de dois anos para titulação dos médicos se deu no governo Lula, que “não têm interesse em continuar o programa por questão ideológica”.
A SBMFC, no entanto, aponta que tem posicionamento resultante do não atendimento dos critérios. Além disso, reitera que a titulação de especialistas em MFC para médicos sem residência exige quatro anos de atuação na área. Portanto, os profissionais bolsistas do PMpB ainda não possuem a experiência exigida.
Diante disso, a responsável pela administração dos programas médicos governamentais – AgSUS –, esclarece que a prova agendada para abril deste ano será realizada “em parceria com a SBMFC”, mas sem caráter de titulação.
A agência informa em seu site oficial que, depois do exame, os profissionais aprovados serão contratados com vínculo trabalhista no programa Mais Médicos, e não mais do PMpB.
A situação causa temor de entidades como a AMPB, que vê o novo exame como tentativa de aplicar uma prova de nível dificultado para que mais profissionais sejam eliminados e não tenham acesso à carreira.
O CFM também acompanha o caso com preocupação, já que, segundo o conselheiro Raphael Câmara, a prova tradicional da SBMF tem em torno de 90% de aprovação, e esse não é o porcentual esperado para o novo teste. “Infelizmente, podem fazer uma prova impossível que tem caráter eliminatório, então o médico não poderá fazer outra.”
O Ministério da Saúde, no entanto, disse em nota à Gazeta do Povo que o exame será baseado “exclusivamente nos conteúdos estudados pelos médicos ao longo dos dois anos de especialização”.
Diante da incerteza, a AMPB entrou na Justiça para solicitar à AgSUS e ao Ministério da Saúde a suspensão desse teste e a realização da prova de título prevista na lei. “Ou seja, uma prova de título realizada pela SBMFC para habilitar o profissional como especialista em medicina de família e comunidade”, informa o advogado Rafael Studart.
O caso segue na Justiça.