A notícia de que a juíza Ana Lúcia Todeschini Martinez, do Cartório Eleitoral de Santo Antônio das Missões e Garruchos (RS), quer proibir a bandeira do Brasil é mais uma das notícias que, de tão esdrúxula, em vez de uma revolta popular, causa uma paralisação absoluta. Um rigor mortis intelectual.
A bandeira nacional proibida? Por que é propaganda política antecipada? A juíza falou fora dos autos e com riqueza de detalhes assustadora. Isto não poderia ser considerado propaganda política, além de ferir a Lei Orgânica da Magistratura Nacional, a Lei Complementar nº 35, de 14 março de 1979?
Pela mesma interpretação da juíza proibidora (“Cortem-lhes os mastros!”), podemos proibir a sua própria fala.
Para começar, porque uma juíza não pode sair emitindo opiniões pessoais, com todo um plano encadeado de proibições (até já ansiando por “multas pesadíssimas!”). Há uma lei (ao menos para aquela época em que as leis estavam acima de determinados juízes) a ser cumprida a mais por juízes do que por nós. E ela não permite um plano de atuação política — é este o termo — para um juiz.
Notou que, sem perguntar, sem nunca ter ouvido falar da dita juíza até anteontem, fica facílimo apostar em quem ela vai votar? Isto é atuação político-partidária. Pergunte a qualquer linguista ou especialista em linguagem e discurso. Até eu posso verbalizar um “vou votar no fulano e acho melhor você votar também”. Uma juíza de cartório eleitoral, não.
Em segundo lugar, porque não há uma única lei que permita que a juíza Ana Lúcia Todeschini Martinez afirme algo do gênero. Claro, mais uma vez, talvez estejamos sendo os pré-iluministas obscurantistas que ainda acreditam em coisas ultrapassadas, como juízes terem de aplicar a lei, em vez de inventar o que lhes der na telha e pronto.
Não há lei nenhuma que permita que um juiz saia por aí dizendo que a bandeira é propaganda eleitoral, que água é propaganda eleitoral, que respirar é propaganda eleitoral e assim sucessivamente. Estamos numa era de disputas interpretativas, e a interpretação oficial e estatal, chancelada por grandes vozes da sociedade, é a que vai colocar gente na cadeia. Nada hoje é mais urgente do que a luta pela interpretação da realidade. Vale para a Constituição, vale para órgãos sexuais.
Em terceiro, e isto é importantíssimo para o Brasil do século 21, porque devemos ter uma lei para nos reger a todos, e não uma vontade, um ímpeto, um impulso, um trejeito, uma firula, uma mania, um desejo, um arroubo, um ataque, um elã de um juiz. Se o juiz deseja um resultado, se o juiz é gremista, se o juiz gosta de passas no arroz, sentimos muito, mas a lei está acima do juiz. E principalmente das passas.
Em quarto, porque a juíza parece se escorar não na lei, mas em termos retirados de redes sociais, como “polarização”, para sair proibindo aquilo que não gosta, como um símbolo pátrio. Passou da hora de proibir mídia, redes sociais e palavrinhas da moda como se fossem fontes do Direito, acima até da Constituição.
Passe meia hora em uma rede social de feed “aberto” e conte quantas vezes verá alguém, sobretudo jovem, querendo proibir alguma coisa. O jovem no Brasil não pode ser levado a sério.
E em quinto, e mais sério ainda, porque a bandeira nacional é, ora, um símbolo nacional, e parece que qualquer guri na 4ª série primária já sabia disso há três décadas, mas anda difícil explicar para nossa elite pensante, atuante e proibizante hoje. Já pensou proibir o Hino Nacional? O mapa do país? A camiseta da Seleção? Bom, melhor não dar ideia…
Já é dificílimo contar para um estrangeiro que o Brasil possua algo como um Tribunal Eleitoral (assine Oeste para ler o artigo de Branca Nunes, “A Justiça Eleitoral é coisa nossa”). Decisão sobre como votar é uma decisão política, e não judicial. E é curioso ver como o povo deseja um modelo e, em nome da democracia, a Justiça Eleitoral quer impor o modelo diametralmente oposto.
Mas pior ainda é ter de explicar o Tribunal Eleitoral com torcida. O Tribunal Eleitoral que parece julgar se você é o candidato que o Tribunal quer que ganhe. Que não tem poder investigativo, e já exigiu, de ofício, que mídias sociais suspendam monetização de canais de um lado do espectro político. Algo completamente ilegal — mas afirmar a legalidade de um ato pode nos colocar como perseguidos pelos tribunais que não cumprem a lei.
Se é para definir a própria bandeira nacional como “propaganda” (qualquer especialista, ou melhor, qualquer pessoa com senso do ridículo sabe que algum candidato é que simboliza os anseios da bandeira, e não o contrário), devemos fazer uma lista de proibições do outro lado também.
Vamos lá. Estão proibidas como campanha eleitoral as camisetas vermelhas. A barba malfeita. A mortadela. O cheiro de sovaco vencido. O comunismo. Aula de Paulo Freire na faculdade. Aliás, aula de todos os marxistas, “progressistas” e iluministas. Show de funk. Funkeira dando entrevista. Roubar celular. Roubar estatal. Comprar deputado.
Ah, espere. Parece que isso já é proibido. Ou era, até ser legalizado por certo tribunal.
Por fim, já íamos nos esquecendo. Teríamos de proibir como propaganda eleitoral um certo tribunal em Brasília.
Para que vivamos em uma Democracia de Verdade, antes, temos de proibir a CENSURA.