Sem dúvida, um dos piores defeitos públicos é a covardia. Digo isso, é claro, com aquela sensação incômoda por entender que, possivelmente, eu poderia ser um covarde se a condição para alguma justiça ameaçasse a vida de meu filho, por exemplo. Nem todos são heróis o tempo todo, essa é uma das verdades nos épicos da literatura, de Ilíada a Senhor dos Anéis. Então, o é também na vida real; a fraqueza do homem está sempre presente, até mesmo nos mais astutos, aguerridos e corajosos. Mas, por vezes, a coragem de apenas um tem o poder de destravar rebeliões contra opressores, desestabilizar discursos oficiais, e, não raro, iluminar eras e se tornar heranças firmes de defensores dos valores primordiais da humanidade — como a liberdade.
Um desses corajosos foi um poeta inicialmente, e declaradamente, comunista, Óssip Mandelstam; poeta russo, dos raros ciclos autorizados pelos soviéticos nos anos de terror stalinista. Mandelstam foi um dos ditos poetas revolucionários dos tempos de Lênin, apoiou os bolcheviques de forma modesta, mas indiscutível. Com o passar do tempo, por ocasião do aumento da perseguição cultural por Stálin, em que cada intelectual que não repetisse à exaustão sua fidelidade ao ditador e ao partido, sem demora, era visto como espião ou capitalista. O referido poeta, assim, se via literalmente seco em sua arte de organizar a realidade, e a percepção da vida, em versos que transmitiam sinceridade e vanguarda literária que ele defendia na Rússia ‒ características essas unânimes nas poesias de Mandelstam, segundo os críticos literários.
De Mandelstam para Stálin, livro de Robert Littell que fortemente recomendo a todos sempre que possível, narra a saga de perseguição e luta interna desse poeta contra Stálin e o comunismo em seu ambiente de estufa mais agonizante — os anos de terror —, principalmente para aqueles que decidiam ser livres apesar da tirania estatal. Baseado em entrevistas — inclusive com a viúva do poeta que dá nome ao livro — e larga documentação original do espólio do poeta, Littell reconstrói, em forma de romance, os dias finais de Óssip Mandelstam, um homem que se cansou da censura, do medo e da insuficiência geral de liberdades da URSS, e decidiu, num arroubo de coragem matutina, compor um poema no qual, dilacerado física e metafisicamente pelos horrores da coletivização soviética, expõe as vísceras do absurdo genocida na União Soviética de seus dias, e, é claro, aponta Stálin como chefe desse morticínio. Eis o poema que feriu o Olimpo fétido do comunista Stálin — com tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra:
“Vivemos sem sentir o país sob os pés,
Nem a dez passos ouvimos o que se diz,
E quando chegamos enfim à meia fala
O montanheiro do Kremlin lá vem à baila.
Dedos gordurosos como vérmina gorda.
Riem-se-lhe os bigodes de barata,
Reluzem-lhe os canos da bota alta.
À volta a escumalha — guias de fino pescoço —
Nas vênias da semi gente ele brinca com gozo.
Um assobia, o outro geme, aquele mia,
Só ele trata por tu, escolhe companhia.
Como ferraduras, lei ‘trás de lei ele oferta,
Em cheio na virilha, olho e sobrolho e testa.
Cada morte que faz — crime malino
E o peitaço tem amplo, o ossetino”.
Reproduzo, especificamente, essa tradução, e não aquela contida no livro de Robert Littell, pois se trata de uma transposição direta do russo, publicada no livro Guarda Minha Fala para Sempre, da editora portuguesa Assírio & Alvim (por isso as perceptíveis acentuações portuguesas). O romance de Littell mostra-nos um poeta mirrado e até mesmo socialmente desconjuntado, que não carrega as características acentuadas de um de guerreiro viril das letras — como se vendia, por exemplo, Ernest Hemingway nas décadas de 1930 e 1940 nos EUA e Europa. No entanto, em um dado momento da história da ditadura comunista stalinistas, unindo a estafante ausência da mínima liberdade cultural, política e até privada, e a cada dia mais insuportável escassez de comida — gerada pela coletivização —, Mandelstem junta uma afrontosa e incontrolada rebeldia, regada pela ressaca matutina de vodca com intempéries sexuais proibidas da noite anterior, e escreve em um papel amassado o supracitado poema que seria a causa de sua prisão em 1934. “Dedos gordurosos como vérmina gorda”, “Riem-se-lhe os bigodes de barata”, e o meu verso preferido “Cada morte que faz — crime malino, E o peitaço tem amplo, o ossetino”.
O livro, escrito em forma de romance, traz vida para um daqueles heróis anônimos da liberdade ainda pouco conhecido no Ocidente; é verdade que Mandelstem era comunista, mas era antes um homem que percebeu que a tirania contra a liberdade afogava as camadas mais profundas e dignas do homem — aqueles que vêm antes das cascas ideológicas — num éter de pobreza cultural, indignidade existencial e ditadura política.
Diante da ditadura, da tirania, o covarde acaba comprando sua ruína a prazo, pois ele só adia a sua queda. Alguns, todavia, escolhem a coragem que ilumina, que traz inspiração e coroa de ombridade não só a biografia do corajoso, mas ao seleto hall daqueles que não se curvaram ante os déspotas. Um homem que cai pela sua coragem na defesa de valores primordiais torna-se um farol perene, um tônico que refrigera as almas daqueles que se encontram hoje densificados sob os “dedos gordurosos” de ditadores malditos. E pararei aqui porque esse livro não merece spoilers, merece ser lido sem nenhuma dica para onde as linhas de Littell nos levarão. Uma obra, enfim, que merece ser redescoberta no Brasil, já que seu lançamento pela Editora Record data de 2010, e nunca foi sequer sombra de sucesso por esses lados; um dos livros mais impactantes que li sobre aqueles dias de terror comunista sob Stálin; confesso que, a história daqueles dias, vista sob uma perspectiva de “primeira pessoa”, intensificou tudo, fez com que o drama natural se multiplicasse durante a leitura. Littel, fez um trabalho digno de Pulitzer — sem exageros —, mas quem ousaria premiar um autor que escancara assim a gangrena histórica e existencial do comunismo, não é mesmo?
Leia também: “República Soviética do Brasil”, artigo de Rodrigo Constantino publicado na Edição 203 da Revista Oeste
Obrigado pela dica, muito bem vinda. Aproveito a oportunidade para recomendar o livro “Tchevengur” traduzido somente agora para o português. O autor Andrei Platônov me parece um caso bem similar ao nosso Ossip.
Sei, agora temos que estar lendo estupidezes de um poeta comunista.. NADA QUE VEM DO COMUNISMO PRESTA, EM RESPEITO AOS MAIS DE 120 MILHOES DE SERES HUMANOS TRUCIDADOS VAMOS DEIXAR A ESCORIA COMUNISTA QUIETA NA TUMBA.